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As múltiplas vozes narrativas de Jane Eyre: romance e filme

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Abstract

O que acontece com a voz de quem narra quando a narrativa muda de língua, tempo, espaço e/ou meio? Para examinar tal questão, adotamos como exemplo uma tradução para o português e uma adaptação cinematográfica do romance Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë. No plano da tradução interlingual, várias questões se colocam, como quando a narradora-personagem se dirige ao leitor. Como traduzir esse ‘reader’, que em português necessariamente terá marcação de gênero? A quem Jane se dirige? Já no filme de Robert Stevenson (1943), a narradora desdobra-se: a voz de Joan Fontaine em voice-over divide a tarefa narrativa com a câmera. A partir de conceitos narratológicos de Booth (1980) e Genette (1995) e dos estudos de Kozloff (1988) a respeito do uso de voice-over no cinema, examinamos a hipótese de que tradução e adaptação pressupõem ajustes significativos na voz narrativa.
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https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v44p138-156
TradTerm, São Paulo, v.44, junho/2023, p.138-156
Número Especial IV Jota
www.revistas.usp.br/tradterm
As múltiplas vozes narrativas de
Jane Eyre: romance e filme
Jane Eyre’s multiple narrative
voices: novel and film
Cynthia Beatrice Costa
Lenita Maria Rimoli Pisetta**
Resumo: O que acontece com a voz de quem narra quando a narrativa muda de língua,
tempo, espaço e/ou meio? Para examinar tal questão, adotamos como exemplo uma
tradução para o português e uma adaptação cinematográfica do romance Jane Eyre
(1847), de Charlotte Brontë. No plano da tradução interlingual, várias questões se
colocam, como quando a narradora-personagem se dirige ao leitor. Como traduzir esse
reader, que em português necessariamente terá marcação de gênero? A quem Jane
se dirige? Já no filme de Robert Stevenson (1943), a narradora desdobra-se: a voz de
Joan Fontaine em voice-over divide a tarefa narrativa com a câmera. A partir de
conceitos narratológicos de BOOTH (1980) e GENETTE (1995) e dos estudos de KOZLOFF
(1988) a respeito do uso de voice-over no cinema, examinamos a hipótese de que
tradução e adaptação pressupõem ajustes significativos na voz narrativa.
Palavras-chave: Voz narrativa; Tradução; Adaptação cinematográfica; Voice-over;
Jane Eyre.
Abstract: What happens to the voice of the narrator when the narrative moves from
one language, time, space, and/or medium to another? To examine this issue, we
exemplify with a translation into Brazilian Portuguese and a film adaptation of the
Professora adjunta do curso de Tradução do Instituto de Letras e Linguística da Universidade
Federal de Uberlândia. Possui doutorado em Estudos da Tradução e pós-doutorado na área de
adaptação cinematográfica. E-mail: cynthia.costa@ufu.br
** Professora titular do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É livre-docente, com doutorado em Linguística
e pós-doutorados nas áreas de teoria e tradução literária. E-mail: lenitarimolip@usp.br
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novel Jane Eyre (1847), by Charlotte Brontë. In terms of interlingual translation,
several questions arise, for example, when the narrator addresses the reader. How do
we translate this vocative “reader”, which in Portuguese necessarily has a gender
mark? Whom is Jane addressing? In Robert Stevenson's film (1943), the narrator is
multiplied: Joan Fontaine's voice in voice-over shares the narrative task with the
camera. Based on BOOTH (1980) and GENETTEs narratological concepts (1995), and on
KOZLOFFs studies on the use of voice-over in films (1988), we examine the hypothesis
that translation and adaptation presuppose significant adjustments in the narrative
voice.
Keywords: Narrative voice; Translation; Film Adaptation; Voice-over; Jane Eyre.
Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë, é um Bildungsroman
1
narrado pela
personagem-título. A conversa que ela desenvolve com os leitores colabora para
a construção de uma relação de confiança ao longo das dificuldades descritas,
de sua origem como órfã maltratada à descoberta de um segredo terrível da
parte do homem que ama, até a reviravolta do recebimento de uma herança
inesperada e do reencontro com o amor que compõem seu final feliz.
A história de Jane, narrada ao modo autobiográfico, pode ser lida como
a da busca por uma voz, ou de uma gradativa “convergência”
2
(PETERS 1991:217)
entre a protagonista narrada (“eu narrado”, ou erzähltes ich) e sua narradora
(“eu narrante”, ou erzählendes ich), que vai se concretizando à medida que a
heroína avança na aprendizagem da vida (GENETTE 1995:251-252).
3
Jane evolui
até ser capaz de narrar a si mesma. Partimos, assim, já de uma dupla presença:
a de Jane madura, dona da voz narrativa, e a de Jane em processo de
amadurecimento, que é narrada pela outra. A essa duplicidade, acrescenta-se
a interação, pois Jane não evolui sozinha; sua voz é concebida em um espírito
de diálogo, tornando-se “uma voz capaz de confrontações dialógicas com outras
vozes narrativas”
4
(PETERS 1991: 219).
O diálogo faz-se presente, ainda, em sua peculiar relação com quem a
lê, isto é, com o narratário. Jane dirige-se à entidade reader com enorme
1
De origem alemã, o termo Bildungsroman é usado para identificar um conjunto de romances
com foco na formação pessoal do protagonista, cujas experiências resultam em um crescimento
positivo (cf. CHASE 1984; MAYNARD 2002).
2
Essas e outras traduções ao longo do artigo foram feitas por nós. Texto fonte: “convergence”.
3
Propomos aqui um paralelo com a descrição que Gérard Genette faz de Em busca do tempo
perdido (1913), de Marcel Proust, como Bildungsroman.
4
“into a voice capable of dialogical confrontations with other narrative voices”.
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frequência, convidando-nos a uma relação íntima com ela; mesmo hoje,
armados com as ferramentas da teoria pós-estruturalista, psicanalítica e pós-
colonial
5
(STERNLIEB 1999: 453), sentimo-nos impelidos a participar do jogo
proposto pela narradora. Há uma palpável “preocupação de estabelecer ou de
manter com ele [narratário] um contato, ou um diálogo” (GENETTE 1995:254).
Considerando a função da narrativa como a de “contar uma história” por
meio de um determinado “ponto de vista” com maior ou menor distanciamento
por parte de quem conta (GENETTE 1995: 159-160), abordamos a protagonista
Jane Eyre como detentora da voz central do romance, dotada de alto
envolvimento emocional com tudo o que diz. Sua narrativa é autodiegética,
porque, como heroína-narradora, ela desfruta do privilégio de narrar (GENETTE
1995: 246). Ainda pode ser considerada uma agente narradora, pois produz
“efeitos mensuráveis no curso dos acontecimentos” (BOOTH 1980: 169).
Este estudo concentra-se nos efeitos que a tradução e a adaptação
cinematográfica têm sobre essa narradora confiável, ou “fidedigna”, isto é, que
atua de acordo com a moral da autora implícita (BOOTH 1980: 174).
Inevitavelmente, a voz de Jane é modificada nesses processos, por dois motivos
principais: na tradução, porque a língua portuguesa exige que ela defina com
quem está falando; na adaptação, porque sua voz e seu ponto de vista têm de
ser recriados por meio de recursos cinematográficos.
Com base no exemplo de Jane Eyre, levantamos possibilidades de como a
narradora-personagem é modificada quando a narrativa em que ela habita e
constrói muda de língua, contexto e/ou meio.
Ah! Romântico leitor!
Como narradora-protagonista, Jane Eyre é “altamente confiável”
6
(WOOD, 2009, n.p.). Ao longo do romance, ela fala sobre si e sobre outras
personagens, relata diálogos inteiros, filosofa e, o que é particularmente
5
“armed with the tools of post-structuralist, psychoanalytic, and postcolonial theory”.
6
“highly reliable”.
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relevante para a presente discussão, dirige-se com frequência ao(s)
narratário(s) ou à(s) narratária(s). Essa instância inscrita no texto
é um dos elementos da situação narrativa, e coloca-se,
necessariamente, no mesmo nível diegético; quer dizer que não se
confunde mais, a priori, com o leitor (mesmo virtual) de que o
narrador com o autor, pelo menos não necessariamente (GENETTE,
1995: 258).
Quem conversa com a instância reader, ou narratário, é a voz de Jane
madura. Esta controla toda a narração do romance, retratando as diferentes
vozes de Jane criança e jovem. Joan D. Peters (1991) aborda a modulação dos
discursos de Jane ao longo de sua trajetória como reflexo de seu
desenvolvimento verbal e, ao mesmo tempo, de seu ganho de uma voz dialógica
social de gênero (gender; feminino) e gênero (genre; literário), que termina o
romance amadurecida, não em estado de total acabamento, mas em
potencialidade (PETERS 1991: 233).
Nota-se o tom rebelde (e sinceríssimo) de Jane menina:
Eu não sou fingida: se fosse, diria que amo a senhora; mas declaro
que não a amo: detesto-a mais do que ninguém no mundo exceto John
Reed: e este livro sobre a Mentirosa a senhora pode dar para a sua
filha, Georgiana, pois é ela quem conta mentiras, não eu (BRONTË
1996: 53).
Em tradução de:
7
“I am not deceitful: if I were, I should say I loved you; but I declare I
do not love you: I dislike you the worst of anybody in the world except
John Reed; and this book about the Liar, you may give to your girl,
Georgiana, for it is she who tells lies, and not I” (BRONTË 2009: 38).
O possível problema da tradução de Liar, sem declinação de gênero, é
facilmente resolvido porque, no contexto da cena, sabe-se que Jane se refere
ao livro sobre Martha G que Mr. Brocklehurst, diretor do internato Lowood,
dera-lhe de presente antes de sua partida.
Adiante, em Lowood, Jane permanece rebelde, mas seu discurso vai
ficando gradualmente mais reflexivo:
Não, sei que devo pensar bem de mim; mas isso não é o suficiente;
se os outros não me amarem, eu prefiro morrer a viver; não suporto
ser e odiada, Helen. Olhe aqui, para conseguir um pouco de afeição
7
Toda a análise é feita com base na tradução Jane Eyre (1996), realizada por Lenita Esteves e
Almiro Pisetta para a editora Paz e Terra, escolhida entre mais de 20 traduções, sendo Esteves
uma das autoras deste artigo.
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verdadeira de você, ou da srta. Temple, ou de qualquer outra pessoa
que eu realmente ame, de bom grado me sujeitaria a ter o braço
quebrado, ou a deixar que um touro investisse contra mim, ou a ficar
atrás de um cavalo bravo e deixar que ele desferisse um coice contra
o meu peito... (BRONTË 1996: 99).
Tradução de:
“No; I know I should think well of myself; but that is not enough: if
others don’t love me I would rather die than live — I cannot bear to
be solitary and hated, Helen. Look here; to gain some real affection
from you, or Miss Temple, or any other whom I truly love, I would
willingly submit to have the bone of my arm broken, or to let a bull
toss me, or to stand behind a kicking horse, and let it dash its hoof
at my chest —” (BRONTË 2009: 71).
Percebe-se, com base nos exemplos citados, como a tradução recria os
diferentes tons de Jane ainda criança. Em Gateshead Hall, onde não é bem-
vinda, Jane fala à sua tia em tom declaradamente desafiador, o que se
reconstrói em português brasileiro nas escolhas de “fingida” (deceitful),
“detesto-a” (dislike you) e “conta mentiras” (tells lies). Em Lowood, onde sabe
que está prestes a cair em total solidão (após a morte de sua amiga Helen), a
postura de Jane continua melodramática, mas seu discurso é mais poético e
calculado, o que se apreende no uso sofisticado da pontuação (adaptado para
um uso mais comum no português, mas ainda assim bastante formal), nas
analogias que ela propõe e no uso de advérbios, traduzidos por realmente
(truly) e por uma locução, “de bom grado” (willingly).
A terceira voz principal de Jane é a de sua versão narradora, que controla
todo o romance e coincide apenas em parte com sua voz de governanta adulta
ou seja, haveria, ainda, uma quarta voz. É na voz de narradora, talvez, que
se encontram os maiores desafios tradutórios, pois na sua modulação e na forma
como ela se dirige a nós conseguimos adentrar alguns aspectos importantes do
romance. Um deles, proposto por Lisa Sternlieb (1999: 453), diz respeito à
posição de confidante (confidente, a pessoa a quem se faz confidências) em
que ela nos coloca, espelhando a mesma posição em que Rochester a coloca.
Nós a ouvimos em silêncio assim como ela o ouvia em silêncio:
Tabela 1: Confidências de Jane
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Para o tradutor do inglês para o português é invariavelmente um dilema
quando uma palavra invariável como teacher, nurse ou secretary deve ser
traduzida. Existe até certa tendência a atribuir um gênero sem pensar muito,
de acordo com o status das carreiras, nestes três últimos exemplos. O termo
‘teacher será provavelmente traduzido por professora se os alunos forem
crianças. Essa situação pode dar até espaço para uma pequena militância,
atribuindo-se o gênero masculino a profissões tradicionalmente femininas,
colocando um secretário como subalterno de um poderoso empresário, por
exemplo.
No caso do “reader” de Jane Eyre, o tradutor (termo que, é óbvio,
usamos aqui genericamente), poderia pensar em algumas bases para a sua
decisão sobre qual gênero atribuir à palavra reader, neutra em inglês. Se o
público leitor fosse predominantemente composto por mulheres, como poderia
pensar alguém em nossos dias, em vista de Jane Eyre ser a história de uma
mocinha, talvez se justificasse a tradução por leitora. Acontece que o
público leitor da era vitoriana era definido de acordo com classes sociais e
poder aquisitivo, e não segundo o gênero (BARRETT 2012: N.P.).
Além do mais, o tradutor deveria se ater mais à cultura de chegada e
pensar nos possíveis leitores da tradução, mesmo que os leitores na época em
que o original foi publicado pertencessem predominantemente ao sexo
feminino, algo que não aconteceu com Jane Eyre.
Ao confidente
Tradução de
Leitor, embora eu pareça estar
confortavelmente acomodada, minha
mente não está muito tranquila ( BRONTË
1996: 133).
Reader, though I look comfortably
accommodated, I am not very tranquil in
my mind ( BRONTË 2009: 95).
(ah! romântico leitor, perdoe-me por
contar esta verdade nua e crua) (BRONTË
1996: 155).
(oh, romantic reader! forgive me for
telling me the plain truth!) (BRONTË
2009: 111).
A igreja, como o leitor sabe, ficava logo
além dos portões; o lacaio logo retornou
(BRONTË 1996:398).
The church, as the reader knows, was
but just beyond the gates; the footman
soon returned (BRONTË 2009: 287).
Leitor, eu me casei com ele (BRONTË
1996: 617).
Reader, I married him (BRONTË 2009:
449).
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Resta ainda o fato de esse romance ter sido publicado inicialmente com
um pseudônimo masculino, Currer Bell. Anne, Charlotte e Emily Brontë
publicaram inicialmente seus livros como os irmãos Bell (Acton, Currer e Ellis).
Só depois da morte de duas das irmãs a verdadeira identidade de Currer Bell
foi gradualmente sendo revelada (BARKER 2010: 809-840). Embora traços de uma
suposta identidade feminina fossem sendo identificados nas obras de
Charlotte Brontë, principalmente após a publicação de seu segundo romance,
Shirley (1849), as resenhas publicadas sobre Jane Eyre identificavam o autor
não só como homem, mas como rude.
As três Brontës publicaram seus romances de estreia no mesmo ano,
1847. No entanto, diferentemente das obras de suas irmãs, a de Charlotte fez
um sucesso instantâneo.
8
De qualquer forma, as três obras chocaram os críticos
contemporâneos. Janet Barker, biógrafa das irmãs Brontë, traz uma lista dos
qualificativos atribuídos a Jane Eyre por resenhistas da época:
Jane Eyre combina dureza masculina, rudeza e liberalidade de
expressão, o Sr. Rochester é dono da profanidade, da brutalidade e
do jargão do libertino misantrópico e o livro como um todo expressa
“uma total ignorância dos hábitos da sociedade, um gosto
extremamente grosseiro, e uma doutrina paganista da religião
(BARKER 2010: 138-139).
9
Essas informações biográficas e sobre a recepção do livro poderiam guiar
o tradutor na decisão de escolher leitor ou leitorapara ‘reader. O uso de
leitor poderia ser justificado por uma acepção inclusiva, que suporia tanto
homens quanto mulheres. Esse foi o motivo da escolha por leitor na tradução
analisada aqui. Por outro lado, o tom confessional da madura narradora Jane,
que estabelece um contato direto com cada leitor ou leitora, fazendo deles
confidantes individuais, talvez justificasse a escolha de leitora. De qualquer
forma, dois aspectos são praticamente indiscutíveis: se o tradutor adotasse
leitores, que seria mais inclusivo do que leitor ou leitora, seria destruído
o contato tête-à-tête que a narradora estabelece com o leitor; além disso, o
8
A primeira tiragem do livro, provavelmente de 250 exemplares foi publicada em 16 de outubro
de 1847, já tinha se esgotado três meses depois. Na época, havia planos de uma reimpressão
em janeiro e outra em maio (BARKER 2010: 719).
9
Jane Eyre combines masculine hardness, coarseness, and freedom of expression, Mr
Rochester possesses the profanity, brutality, and slang of the misanthropic profligate and the
whole book expresses a total ignorance of the habits of society, a great coarseness of taste,
and a heathenish doctrine of religion’”.
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tradutor deveria fazer uma escolha (leitor ou leitora) e se ater a ela, usando
o mesmo termo em todas as ocorrências de reader em inglês (que não são
poucas). Dilemas tradutórios como esse, impostos pelo não paralelismo
sintático entre as línguas, precisam ser resolvidos, mesmo que os tradutores
muitas vezes não tenham certeza de terem feito a escolha certa.
My name is Jane Eyre…
O longa-metragem de Robert Stevenson, de 1943, é uma entre as mais
de 30 adaptações de Jane Eyre feitas para o cinema e a televisão. Estrelado por
Joan Fontaine como Jane Eyre e Orson Welles como Rochester, o filme
influenciou palpavelmente versões audiovisuais posteriores, sobretudo no que
diz respeito à caracterização da protagonista tanto física quanto emocional
e à direção de arte de traços góticos.
Um recurso adotado por Stevenson, no entanto, era característico
daquela fase do cinema hollywoodiano e deixou de ser usado com o tempo: em
oito ocasiões ao longo do filme, ouve-se a voz de Jane lendo trechos de um
romance enquanto vemos, na tela, os mesmos trechos (exceto na última vez,
em que só ouvimos a voz). Nesta primeira ocorrência, ela se apresenta ao iniciar
a leitura:
Captura de tela I: Jane lê sua história para os espectadores
@ Twentieth Century Fox, Jane Eyre (1943)
A leitura é “de um romance” e não “do romance Jane Eyre”, porque se
trata de uma espécie de ilusão criada pelo filme: esse não é o início do romance
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de Brontë, mas um texto criado pelos roteiristas para apresentar a narradora-
protagonista e seu contexto de forma sucinta.
A primeira narradora com a qual os espectadores do filme têm contato,
portanto, é a do voice-over.
10
Este é um recurso narrativo cinematográfico que
implica uma presença de uma voz e uma ausência de imagem. Ou seja,
ouvimos, mas não vemos, quem está falando. A voz “vem de outro tempo e
espaço do discurso” e indica que “alguém se encontra no ato de comunicar uma
narrativa isto é, relatando uma série de acontecimentos para um público”
(KOZLOFF 1988: 2)
11
.
A próxima Jane que vemos (2min20seg) é Jane criança, portanto não
pode ser aquela que estava narrando. Cria-se, assim, uma dupla dimensão: a
do presente da narrativa e a do outro lugar de onde fala a narradora em voice-
over. Esta segunda, embora distante porque não a vemos, como que cria
intimidade conosco (KOZLOFF 1988: 2), pois é como se estivesse nos
confidenciando sua história e ela tem a autoridade para tanto, afinal, quem
melhor para contar a própria história? (GENETTE 1995: 196). Cabe a ela,
portanto, recriar a intimidade cultivada pela narradora do romance quando se
dirige ao seu leitor-confidente como “reader”. Sua próxima entrada
(7min48seg) relata o horror de sua chegada ao internato Lowood.
Haverá, ainda, uma terceira Jane adulta, que nos é apresentada
visualmente ao ser chamada pelo conselho diretor do internato (21min04seg).
Aqui vemos Joan Fontaine, ouvida desde o primeiro minuto do filme, pela
primeira vez. Fecha-se, assim, um triunvirato de Janes que governam, ao
mesmo tempo, a narração, o ponto de vista e o protagonismo do filme, como
uma estratégia adaptativa de reconstruir a narradora-personagem do romance
de Brontë.
Passa-se, então, um intervalo relativamente longo até sua próxima
entrada em voice-over (36min43seg), ao falar sobre o caráter de Rochester.
Novamente, o trecho correspondente do livro (roteirizado, pois não se trata de
10
Nos anos 1940, o uso do voice-over popularizou-se no cinema hollywoodiano, sobretudo, em
filmes de guerra, filmes noir e, como no caso de Jane Eyre, adaptações literárias (KOZLOFF
1988: 34).
11
“comes from another time and space of the discourse (…) relates to the content of the
speech: someone is in the act of communicating a narrative that is, recounting a series of
events to an audience”.
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um trecho ipsis litteris da obra de Brontë) é focado e iluminado na tela, o que
se repete quando Jane se questiona sobre o mistério da torre (52min17seg), ao
se declarar apaixonada por Rochester (1h17min30seg), ao ir embora para
Gateshead Hall após a decepção com Rochester (1h25min38seg) e ao sentir que
deve voltar para Thornfield (1h32min02seg). O filme termina com um último
voice-over de Jane, mas sem a imagem da página sendo lida em vez disso, a
câmera mostra o casal caminhando em direção ao horizonte, sob o crepúsculo
(1h35min55seg).
Nota-se, com base no que foi descrito no parágrafo anterior, que as
interferências da voz de Jane intensificam-se após o clímax, ou seja, a partir
do momento em que surge a desconfiança sobre a presença de alguém na torre
de Thornfield e, mais marcadamente, após a ascensão, queda e nova ascensão
de sua paixão por Rochester. Essa cadência pode ser explicada pela necessidade
de mais insight sobre a personagem à medida que ela é confrontada com
dilemas morais graves. Ao conversar conosco, Jane esclarece possíveis dúvidas
nossas com relação aos seus sentimentos, colocando-nos a seu favor.
Além do uso do voice-over, há estratégias tipicamente cinematográficas
para manter o ponto de vista encerrado em Jane, de modo que saibamos que
tudo que acontece ali perpassa o seu olhar. Em um filme, porém, fechar o
ponto de vista em uma só personagem não é tarefa fácil nem desejável, uma
vez que, salvo exceções, pode ficar cansativo para o público. Por isso,
escapes do seu ponto de vista. Além das tomadas de transição, feitas para
mostrar paisagens, caminhos percorridos e fachadas de edifícios, há momentos
breves em que Jane não está presente e, por isso, não poderia saber o que está
acontecendo. Por exemplo: o médico chega a Lowood para examinar Helen
(16min10seg); o diretor de Lowood fala ao conselho a portas fechadas
(20min40seg); Rochester entra com seu cachorro em Thornfield, enquanto Jane
está entretendo Adèle (38min52seg); Rochester tranca a porta do corredor que
leva à ala da torre enquanto Jane está em seu quarto (47min); após mandar
Jane para fora do aposento, Rochester conversa com o médico e com um
paciente atacado em circunstâncias misteriosas (1h05min09seg).
Por outro lado, o filme se utiliza de estratégias para indicar que Jane
está ciente do que se passa mesmo quando não parece estar presente. Isso
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acontece, por exemplo, quando o médico repreende o diretor do internato por
sua negligência para com Helen Burns, e Jane logo aparece ouvindo às
escondidas (16min56seg). Bem adiante, já próximo à conclusão, o filme recorre
a um truque: depois de Jane se retirar para dormir, Rochester e sua
pretendente Blanche conversam no jardim (1h11min34seg); após os vermos
passeando pelas alamedas, descobrimos que Jane estava ouvindo atrás de um
muro (1h13min31seg). Ela precisava saber da potencial ligação amorosa entre
os dois para conseguir, na cena seguinte, declarar-se de coração aberto,
proferindo uma das passagens mais célebres do romance, localizada no capítulo
XXIII, quase palavra por palavra:
Do you think, because I am poor, obscure, and plain that I am
soulless and heartless? I have as much soul as you, and full as much
heart! And if God had gifted me with, well, some beauty, I should
have made it as hard for you to leave me, as it is now for me to leave
you (JANE EYRE 1943, 1h16min 30seg; grifos nossos).
Passagem original:
Do you think, because I am poor, obscure, plain, and little, I am
soulless and heartless? You think wrong! I have as much soul as
you, and full as much heart! And if God had gifted me with some
beauty and much wealth, I should have made it as hard for you to
leave me, as it is now for me to leave you (BRONTË 2009, p. 253;
grifos nossos).
Observa-se, assim, como pequenas modificações são feitas pelos
roteiristas no texto do romance e impactadas pela interpretação da atriz,
orientada pelo diretor para que encaixá-lo em um novo contexto. Para melhor
analisar essas diferenças, colocamos aqui a passagem do romance traduzido:
Acha que, porque sou pobre, obscura, simples e pequena, não
tenho corpo nem alma? Está enganado! Tenho alma tanto quanto o
senhor, e um coração repleto como o seu! E se Deus me tivesse dado
alguma beleza e muita riqueza, eu teria feito como que fosse tão
difícil para o senhor me deixar, como é difícil para mim agora deixá-
lo (BRONTË 1996: 351).
E como ela ficaria com as modificações operadas no roteiro:
Acha que, porque sou pobre, obscura e simples, não tenho corpo
nem alma? Tenho alma tanto quanto o senhor, e um coração repleto
como o seu! E se Deus me tivesse dado, bem, alguma beleza, eu teria
feito com que fosse tão difícil para o senhor me deixar, como é difícil
para mim agora deixá-lo.
Foram retirados, portanto, o adjetivo “pequena” (talvez por terem
suposto que Joan Fontaine não fosse tão miúda assim para se declarar
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‘pequena’); a acusação mais direta “Está enganado!”, porque, apesar de se
fortalecer, a meiga Jane de Fontaine nunca se torna nem vagamente agressiva;
e o comentário sobre a riqueza, pois o aspecto financeiro é, como um todo,
menos presente no filme de Stevenson do que no romance de Brontë.
O confronto com Rochester, a coragem de Jane de se declarar, está de
acordo com o que Peters (1991) lê como um processo de evolução dialógica por
que passa a narradora-personagem, processo esse presente no romance e no
filme, mas, como visto com base nas modificações acima, em menor grau no
segundo. A voz de Jane “narrada”, ou seja, a Jane do passado, encontra-se a
essa altura em pleno estado de consolidação ela consegue se posicionar
mesmo diante do homem que ama e teme. É menos firme no filme, porém.
Discussão: Jane multiplicada
Como se viu com base nos exemplos de Jane Eyre, um possível efeito da
tradução e da adaptação audiovisual de um romance é a modificação da voz
narrativa.
Conforme foi observado anteriormente, o romance traz pelo menos duas
Janes, uma narradora adulta que revisita seu passado e aquela mais jovem,
predominantemente criança, que vive esse passado. Embora o leitor faça a
distinção entre as duas pelo próprio andamento do enredo, diferenciando a
narradora que conta a história e a representação que essa narradora faz das
falas da Jane menina (como vimos em excertos citados acima, por exemplo: “—
Eu não sou fingida: se fosse, diria que amo a senhora; mas declaro que não a
amo”), percebemos que esta última, mesmo em tenra idade, articula muito
bem seus pensamentos e os expressa com eficiência.
Existe uma diferença discursiva entre Jane adulta e Jane menina. No
entanto, numa história que se passa na primeira metade do século XIX, a fala
das crianças não se assemelha à fala de crianças contemporâneas. Havia maior
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formalidade, e essa formalidade precisa ser reproduzida na tradução. Na
passagem a seguir, uma conversa entre a Sra. Reed e Jane ainda menina, temos
a ocorrência do you, que pode colocar armadilhas para o tradutor. Além disso,
temos uma intensa convergência entre a Jane adulta e a Jane menina, à medida
que, à fala reproduzida da menina, interpõe-se a voz da narradora que descreve
o estado de espírito dela a os impulsos que a fizeram agir como agiu.
What would Uncle Reed say to you, if he were alive? was my
scarcely voluntary demand. I say scarcely voluntary, for it seemed as
if my tongue pronounced words without my will consenting to their
utterance: something spoke out of me over which I had no control.
What? said Mrs. Reed under her breath: her usually cold
composed grey eye became troubled with a look like fear; she took
her hand from my arm, and gazed at me as if she really did not know
whether I were child or fiend. I was now in for it.
My Uncle Reed is in heaven, and can see all you do and think;
and so can papa and mama: they know how you shut me up all day
long, and how you wish me dead (BRONTË 2009: 29; grifos nossos).
Dada a distância etária e também hierárquica entre a Jane menina e a
Sra. Reed, esse “you” não poderia ser adequadamente traduzido por “você”,
já que em inglês o pronome pode ser usado indistintamente para a pessoa com
quem se fala, independentemente de sua posição ou importância. Aqui não se
trata exatamente de uma escolha forçada, como no caso de “reader”. A
questão é preservar na língua da tradução uma diferença de posições que está
patente na situação, mas não está explicitada na língua original. Essa diferença
se manifesta quando a Jane adulta continua chamando sua tia de “Mrs. Reed”,
mas não quando ela fala diretamente com a tia. A tradução deve contornar essa
dificuldade, empregando outro pronome de tratamento que não seja o
equivalente mais óbvio de “you”, “você”:
O que diria o Tio Reed se estivesse vivo? foi minha pergunta
quase involuntária. Digo quase involuntária, pois foi como se minha
língua tivesse dito palavras sem o meu consentimento: alguma coisa
em mim falou, sobre a qual não tive controle.
O quê? disse a sra. Reed, quase sem fôlego: seus olhos, em
geral frios e impassíveis, foram perturbados por uma expressão de
medo; ela tirou a mão do meu braço e fixou o olhar em mim como se
realmente não soubesse se eu era uma criança ou um demônio. Agora
eu ia até o fim.
Meu Tio Reed está no céu, e pode ver tudo o que a senhora
faz e pensa; assim como o papai e a mamãe; eles sabem como a
senhora me deixa trancada o dia todo e como deseja me ver morta
(BRONTË 1996: 42; grifos nossos).
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Aspectos como esse, juntamente com dilemas como o imposto pela
palavra reader no caso desse romance específico, ajudam a compor a
integridade da voz narrativa. Na tradução, os recursos nem sempre são os
mesmos, precisando ser adaptados às regras da outra língua, sob o risco de não
se reproduzir um efeito semelhante no texto de chegada. O que chamamos de
“voz narrativa” é um conceito complexo, que se vale de rias estratégias para
produzir um efeito convincente. Quanto mais atento estiver o tradutor a esses
componentes e ao modo como seus efeitos podem ser reproduzidos na tradução,
melhor será o resultado.
No caso da adaptação cinematográfica de Stevenson, o uso de imagens
do livro e da narração em voice-over reforçam sua ligação com a literatura,
como que subentendendo que a narradora do romance de Brontë se mantém no
filme. Por mais literária que possa ser considerada a técnica do voice-over no
cinema (sobre a controvérsia, KOZLOFF 1988: 17), entretanto, seu uso não aponta
para uma reprodução idêntica da narração do livro no formato filme, até porque
seria inviável o filme, afinal, possui também uma câmera que nos mostra a
própria Jane, ou seja, trata-se de um olhar externo a ela.
O voice-over, contudo, possibilita o estabelecimento de uma intimidade
entre público e personagem que talvez não fosse obtida facilmente de outra
forma, ainda mais no caso específico de uma adaptação audiovisual (97
minutos) de um romance com 38 capítulos, geralmente publicados com no
mínimo, 400 páginas. Colabora, ainda, para a compreensão do processo de
autoconhecimento por que passa Jane no decorrer da história, uma vez que,
enquanto ela fala de si para os outros (narratários) e com os outros
(personagens), está na verdade se descobrindo e se fortalecendo. Ao fazer de
sua protagonista também a narradora da própria vida, Jane Eyre livro e filme
abre a possibilidade de Bildung.
Nossa percepção do fortalecimento por que passa Jane tem relação com
o contraste entre a narradora atual, amadurecida, e a personagem do
passado, em constante sofrimento isto é, “estabelece-se um fio de
desenvolvimento implícito entre a Jane que sofre e a Jane que conta”
12
(CHASE
12
“a thread of implied development is established between the Jane that suffers and the Jane
that tells”.
152
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1984: 62). No longa-metragem de 1943, esse contraste é recriado por meio da
multiplicação de Janes: nós a vemos criança e adulta e a ouvimos no voice-
over. São, portanto, ao menos três Janes diferentes, desdobradas para dar
conta, ao mesmo tempo, de seu protagonismo na história, de seu ponto de vista
e da narração. Esta, realizada em primeira pessoa, é intermitente, o que
significa, porém, que a narradora não tem como ter controle sobre sua história
da mesma forma que tem no romance (KOZLOFF 1988: 43).
Um efeito curioso notado no filme de Stevenson é que tal é sua ênfase
na ligação com o romance de Brontë que somos, como público, levados a
acreditar que se trata da mesma história, com as mesmas personagens e, claro,
a mesma narradora-protagonista. O que não é verdade, e não apenas do ponto
de vista pragmático (um livro é um livro, um filme é um filme). Há modificações
significativas no enredo roteirizado por Stevenson em parceira com Aldous
Huxley e John Houseman (com colaboração, ainda, de Ketti Frings e Henry
Koster, este não citado nos créditos
13
). Essas mudanças removem todos os
modelos de comportamento feminino de Jane. Editam sua herança inesperada
e, o mais importante, alteram as circunstâncias que demonstram a conquista
de uma identidade independente por parte de Jane”,
14
lamenta Elisabeth Atkins
(1993: 54), apontando, ainda, para uma estanque separação entre bem e mal
característica do cinema da década de 1940. Linda Hutcheon de fato comenta
o rumor de que David Selznick, idealizador do projeto no estúdio Twentieth
Century Fox, “não se preocupou em preservar detalhes do romance Jane Eyre
(1847) ao adaptá-lo na década de 1940, pois, segundo uma pesquisa com o
público, poucas pessoas o conheciam” (2013: 168).
Apesar de tudo isso, a ilusão de similitude, ou até de substituição, entre
livro e filme é reforçada de variadas formas. O filme de Stevenson volta à sua
origem nas ocasiões em que mostra um livro aberto sendo lido, mas também de
outras maneiras. Logo de início, após a vinheta do estúdio, vemos na tela a
capa de um livro:
13
Jane Eyre (1943): IMDb.
14
“The screenplay writers remove all of Jane’s female role models: they edit Jane’s unexpected
inheritance; and most importantly, they alter the circumstances which demonstrate Jane’s
acquirement of an independent identity”.
153
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Captura de tela II: Abertura dos créditos
@ Twentieth Century Fox, Jane Eyre (1943)
Não há, assim, nenhuma possibilidade de o filme não ser entendido como
uma adaptação de uma obra literária (COSTA 2021: 20) inclusive, o nome de
Charlotte Brontë está antes do autor do filme (o diretor) e maior que o nome
de um dos produtores (William Goetz, visto no da imagem acima). Em
seguida, as páginas são viradas para exibir os créditos do elenco e da produção,
até chegar à primeira página da história que será contada e a câmera
aproximar-se em zoom para focar no primeiro parágrafo (1min25seg).
Em diversos momentos, é demandada leitura por parte do espectador,
um recurso comum no cinema que também remete à nossa inevitável relação
com a palavra escrita, mesmo em um contexto majoritariamente audiovisual:
a placa de Lowood (7min19seg); as placas penduradas nos pescoços de Jane
(rebellious, ou rebelde) e Helen (vain, ou vaidosa) em seu castigo imposto pelo
diretor do internato (15min27seg); a carta de emprego enviada a Jane em
Lowood (22min56seg); uma etiqueta de bagagem a ser enviada por navio em
nome de Mrs. Edward Rochester (Jane após o casamento, portanto) para Gênova
(1h18min24seg), o que indica a lua-de-mel que não se concretiza; o anúncio de
leilão público da propriedade e dos pertences da tia de Jane (1h30min51seg);
o início da carta que Jane escreve para Mr. Brocklehurst (1h31min09seg).
Ainda no início do filme, em Lowood, o diretor abre o livro de registros
de alunas, que é focado pela câmera nele, lemos a data de entrada de Jane
na instituição e seus conceitos em diferentes disciplinas ao longo dos anos, o
que nos mostra sua irregularidade no início e paulatino aprimoramento; seu
comportamento, entretanto, passa de ruim (bad) para apenas satisfatório
(satisfactory), enquanto os resultados em línguas e humanidades tornam-se
muito bons ou excelentes (20min26seg 20min41seg). É preciso que o
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espectador tenha interesse em (e habilidade para, dada a rapidez) ler o
conteúdo das páginas para notar tais sutilezas.
Hoje, quase 80 anos após o lançamento do filme, estratégias
hollywoodianas clássicas como essas parecem ocultar a tecnologia bastante
moderna empregada no cinema e ausente na literatura,
15
como a possibilidade
de mostrar uma coisa na tela enquanto outra é ouvida na trilha-sonora, já que
imagem e som foram gravados separadamente (JOST 2004: 73). A tecnologia
permitiu que no cinema Jane ganhasse, concretamente, uma voz ou muitas,
já que vem sendo periodicamente adaptada desde então.
Considerações finais
Jane Eyre possui uma forte voz feminina em primeira pessoa, que é
indissociável da relação emocional que leitores desenvolvem, potencialmente,
com o romance. E que, hoje, também integra nossa tradição cinematográfica
(KOZLOFF 1988: 41). Ao traduzi-la para outra língua/cultura ou adaptá-la para
outro meio, essa voz é repensada e recriada. Para tanto, diferentes estratégias
são adotadas.
Os tradutores da obra para outra língua precisam refletir e tomar
decisões que têm impacto sobre a obra como um todo e, obviamente, sobre o
desenho da voz narrativa. Como foi observado, uma dessas decisões concerne
ao termo reader, reiteradamente usado pela narradora e que cria um canal
de identificação direto entre ela e o leitor ou a leitora. Outros aspectos, como
o grau de formalidade dos pronomes de tratamento, também podem influenciar
a conjuntura do romance traduzido
Já quanto ao exemplo cinematográfico que abordamos, pode-se afirmar
que o longa-metragem de Stevenson se coloca como um filme-romance, pois,
embora se desvie do enredo de partida e mesmo de traços fundamentais da
própria Jane, é evidente que quer manter sua relação com a obra de Brontë
explícita e constante, exibindo imagens de um livro acompanhadas da narração
15
Curiosamente, Genette chega a sugerir que a literatura poderia ter adotado convenções
visuais, ao modo do cinema, como itálicos e normandos (GENETTE 1995: 236).
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em voice-over. O público é convidado a ver, ouvir e ler ao mesmo tempo
portanto, espera-se um narratário que seja espectador-ouvinte-leitor,
estabelecendo com ele uma relação literário-cinematográfica.
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Article
This essay argues that Jane Eyre (1847) is an elaborate confidence game in which Rochester takes Jane into his confidence in order to lie to her and that Jane responds by first masquerading as his confidante and then taking the reader into her confidence to lie to her as well. Jane's retrospectively informed narration must be seen as working against her naive, romantic plot. Brontë has not written a conventional marriage plot but rather a revenge novel in which Jane reveals secrets that the blinded Rochester cannot read. Jane actively and consciously uses Bertha to draw attention away from her own act of revenge. Unlike Bertha's terrifying ineptitude, Jane's revenge works because it is controlled, sustained, articulate, and above all disguised. I argue against a correlation between Jane's acquisition of speech and her development as the writer of her story. Jane never writes within the pages of her novel; it is crucial to her success that Rochester fall in love with a silent listener, a woman he believes has no story of her own.
The Brontës: Wild Genius in the Moors
  • J Barker
BARKER, J. The Brontës: Wild Genius in the Moors. 2 ed. London & New York: Pegasus Books, 2010.
Análise de adaptações cinematográficas baseadas em obras canônicas da literatura: os casos de Jane Eyre e Madame Bovary". In LIMA, Érica; PISETTA, Lenita Rimoli; VERAS, Viviane (org.). E por falar em tradução
  • C B Costa
COSTA, C. B. "Análise de adaptações cinematográficas baseadas em obras canônicas da literatura: os casos de Jane Eyre e Madame Bovary". In LIMA, Érica; PISETTA, Lenita Rimoli; VERAS, Viviane (org.). E por falar em tradução. Bauru: Canal 6, 2021: 14-28.
Discurso da narrativa
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GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. 3ª ed. Lisboa: Vega, 1995.
Florianópolis: Editora da UFSC
  • L Hutcheon
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. de André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.
Longa metragem, 97min
  • Jane Eyre
JANE EYRE (1943). Direção de Robert Stevenson. Roteiro de Aldous Huxley, Robert Stevenson e John Houseman. Longa metragem, 97min, preto e branco. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U6ferjKtrr8. Acesso em: 07 de mar. de 2022.
The look: from film to novel -an essay in comparative narratology". A Companion to Literature and Film
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JOST, F. "The look: from film to novel -an essay in comparative narratology". A Companion to Literature and Film, edited by Robert Stam and Alessandra Raengo. Blackwell, 2004: 71-80.
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MAYNARD, J. K. "The Bildungsroman". A Companion to the Victorian Novel. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2005: 279-301.