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A MATEMÁTICA NO PENSAMENTO DAS AUTORIDADES TRADICIONAIS (SOBAS) COM RESPEITO A FORMA DO ONDJANGO NO CUITO-BIÉ. Um olhar a Geometria plana

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Abstract

O presente artigo apresenta uma abordagem relativa ao descongelamento de uma matemática nativa e intuitiva congelada no pensamento das autoridades tradicionais do município do Cuito cujo processo de interpretação matemática sugere uma atividade motivacional e significativa no ensino-aprendizagem da Geometria plana, baseada no contexto do aluno. O resultado matemático apresentado permite uma descolinização cultural conducente à um possível entendimento por parte do aluno de que a Matemática não é algo completamente estranho importada de fora de África. As ideias matemáticas extraidas na base de uma conversa informal com as autoridades tradicionais do município do Cuito podem contribuir para a otimização do Processo de Ensino-Aprendizagem na cadeira de Geometria Plana. Palavras-chave: Ondjango, problema isoperimétrico, Geometria plana.
A MATEMÁTICA NO PENSAMENTO DAS AU-
TORIDADES TRADICIONAIS (SOBAS) COM
RESPEITO A FORMA DO ONDJANGO NO
CUITO-BIÉ
Um olhar a Geometria plana
Ezequias Adolfo Domingas Cassela, MSc
Mestre em Matemática para Professores pela
UBI-Portugal
Docente da Escola Superior Pedagógica do
Bié-Angola
ezequias.cassela@ubi.pt
https://orcid.org/0000-0001-7703-0097 .
Resumo
O presente artigo apresenta uma abordagem relativa ao descongelamento de uma matemá-
tica nativa e intuitiva congelada no pensamento das autoridades tradicionais do município
do Cuito cujo processo de interpretação matemática sugere uma atividade motivacional e
significativa no ensino-aprendizagem da Geometria plana, baseada no contexto do aluno.
O resultado matemático apresentado permite uma descolinização cultural conducente à um
possível entendimento por parte do aluno de que a Matemática não é algo completamente
estranho importada de fora de África. As ideias matemáticas extraidas na base de uma
conversa informal com as autoridades tradicionais do município do Cuito podem contribuir
para a otimização do Processo de Ensino-Aprendizagem na cadeira de Geometria Plana.
Palavras-chave: Ondjango, problema isoperimétrico, Geometria plana.
Abstract
This article presents an approach related to the thawing of native and intuitive mathema-
tics frozen in the thinking of the traditional authorities of the municipality of Cuito whose
mathematical interpretation process suggests a motivational and significant activity in the
teaching-learning of flat geometry, based on the student’s context. The mathematical re-
sult presented allows a cultural decolinization leading to a possible understanding on the
part of the student that Mathematics is not something completely foreign imported from
outside Africa. The mathematical ideas extracted from an informal conversation with the
traditional authorities of the municipality of Cuito can contribute to the optimization of the
Teaching-Learning Process in the subject of Flat Geometry.
key-words: Ondjango, isoperimetric problem, plane geometry.
INTRODUÇÃO
A Matemática é uma ciência dinâmica que desde sempre emergiu de um processo de cons-
trução humana, o que faz dela uma obra humana. Ela surgiu através da atividade produtiva
do homem e vem sendo desenvolvida através das suas necessidades práticas. Desde muito
cedo, ela deu fortes evidências da sua existência em qualquer atividade desenvolvida pelo
homem, manifestou-se sempre de forma explicita ou implícita na forma de pensar do ho-
mem, influenciando a sua forma de ver o mundo. penetrou em qualquer domínio do esforço
científico e desempenhou um papel inestimável na Biologia, na Economia, na Sociologia,
na Engenharia e nas várias áreas do conhecimento científico-técnico. O pensamento mate-
mático no homem, parece ser algo que desde sempre se manteve adormecido dentro de si,
tendo despertado a partir do momento em que o homem estabeleceu contacto com a Natu-
reza, este ponto de vista tem sido reforçado pela ideia pautada no seguinte argumento de
Rogério S. Mol (2013. p.13), “o ser humano possui habilidades naturais para pensar noções
quantitativas rudimentares: muito e pouco, grande e pequeno, lento e rápido”. Este pen-
samento remete-nos à ideia que associa a origem da matemática com a origem humana. É
dizer, a matemática aparece com o homem. Desde os primórdios das civilizações humanas
que o homem deu conta de um mundo criado por Deus na base de uma linguagem matemá-
tica cuja forma planetária e a sua constituição são completamente cognoscíveis e dignas de
matematização. Se quer promover com este artigo a ideia de que a matemática surge pela
abstração desta realidade criada, e que há nexos entre o seu desenvolvimento e o desenvol-
vimento sociocultural da sociedade. Esta ideia é reforçada por vários investigadores que
conduziram estudos que visam divulgar a existência da matemática em determinadas cultu-
ras específicas, como é o caso de Rosa e Orey (2010), ao afirmarem que “(...) A Matemática
é um empreendimento cultural enraizado na tradição. Ela não foi concebida como uma lin-
guagem universal, porque seus princípios, conceitos e fundamentos foram desenvolvidos de
maneira diferenciada pelos membros de grupos culturais distintos”. (p.869) Em concordân-
cia com o descrito anterior, num artigo da Revista Online PRIMUS (2015), dois Professores
da Universidade Estadual de San Diego Na Califórnia, defendem a integração da Arte no
programa de uma disciplina de licenciatura de Fundamentos de Geometria. Nos seus ar-
gumentos sublinham que “uma das grandes ambições da Matemática é o visionamento de
entidades e espaços intangíveis, mas que se podem expressar por símbolos e aproximações
materiais”. De realçar que se poderia manter a clarividência da afirmação substituindo na
frase a palavra Matemática pela palavra Arte. Entretanto, a perspectiva deste artigo é a de
que se deve tirar partido dessa filosofia quando pensamos no ensino da matemática acadé-
mica, em particular no da Geometria. Tal como na expressão artística, o autor deste artigo
concorda que o percurso de Educação Matemática de cidadãos intervenientes numa soci-
edade global não deve passar pela alienação das suas culturas de origem. Pelo contrário
os contextos culturais podem ser integrados no processo de aprendizagem e melhorar a sua
eficácia. Neste sentido, as escolas devem primar por um Processo de Ensino-Aprendizagem
que se relacione com o contexto sociocultural e produtivo do aluno, de tal forma que se
possam levar discussões nas aulas relativas aos problemas da prática social, isto porque o
aluno, o seu ambiente e a sua cultura não existem isoladamente. A aprendizagem da Mate-
mática torna-se interessante quando corresponde às necessidades práticas que emergem da
cultura do aluno, ou seja aquela construída a partir da ação do homem na satisfação das suas
necessidades. Por esta razão se desenvolve neste artigo uma abordagem inerente a matemá-
tica no pensamento de autoridades tradicionais da tribo umbundo com respeito a forma dos
ondjangos no Cuito-Bié/Angola, tendo como base a geometria plana.
Face a esta descrição, apresenta-se, em seguida, um breve resumo sobre o conceito do ond-
jango, seguindo-se da entrevista feita as autoridades tradicionais sobre a forma do Ondjango
e o seu processo de matematização.
Significado do Onjango na tribo Umbundo
O Onjango é uma designação de origem Umbundu (in Dicionário infopédia, 2003). Paulo
Dias (2014), inspirado nos escritos de Martinho Kavaya (1980) afirma que:
"(...) Onjango é um lugar sociocultural central na vida comunitária das sociedades
angolanas tradicionais é, antes de tudo, casa de ekongelo (reunião). Trata-se de assem-
bleia exclusiva masculina; o Onjango parece radicar nas antigas sociedades secretas de
homens. As mulheres cujos maridos se reúnem no Onjango intervêm apenas preparando
a comida a ser partilhada entre todos. Nesse espaço são discutidos diferentes assuntos
da comunidade através do diálogo de igual para igual, mediado por olosekulu (anciãos),
valendo-se essa conversa de diferentes formas de enunciação: palavra cântico, palavra
música, palavra provérbio. (Ibdem, 2014, p.345)
De realçar que face ao valor cultural do Onjango na comunidade umbundo, existe ma-
temática escondida na adoção da sua forma, conforme se constata da entrevista feita as
autoridades tradicionais do Cuito-Bié.
Entrevista feita as autoridades tradicionais sobre a forma do Ondjango
O registo que se segue é a parte do diálogo que se teve com 4 sobas do Bairro Cambulu-
cuto. A conversa informal foi desenvolvida com base na língua umbundo. Foi feita uma
única questão cujas respostas concorrem para um ponto comum.
-Investigador: Porquê que todos Onjangos têm esta forma (circular) e não outra?
-Sobas: Risos..."Momo oyo ya tandavala enene okuti vosi vasuamõ"o que significa que é
a mais espaçosa (tem maior área) congregadora de um maior número de pessoas.
Interpretação matemática da resposta dada pelos sobas
A resposta dada peos sobas está em conformidade com um problema muito antigo associado
a seguinte questão: de entre as curvas de perímetro Pqual é a que encerra maior área?
A razão da discussão promovida em torno deste problema está ilustrada na lenda de Dido e
da fundação da cidade de Cartago que aparece referida no cântico Ida obra épica "Eneida",
escrita pelo poeta romano Virgílio (70 a.c. a 19 a.c).
Como foi referido, desde a antiguidade que se sabe que esta curva é a circunferência, no
entanto, a demonstração rigorosa deste resultado é relativamente recente (apresentada pela
primeira vez por H. A. Schwarz em 1890). Não é a demonstração de Schwarz que vamos
apresentar, mas sim um método introduzido por J. Steiner e explicado em Urakawa (1990,
pp.117-119), chamado de simetrização. Efetivamente, este método é ainda hoje aplicado na
resolução de muitos problemas variacionais.
O argumento de Steiner (em traços gerias) reside no seguinte:
1. Seja Dum domínio plano e Ca curva que o encerra. Considera-se uma reta l. Preten-
demos obter uma curva C`, simétrica relativamente a `e com o mesmo perímetro de C.
Esta curva C`é obtida do seguinte modo: tomemos uma perpendicular `0a`; seja Ma
interseção entre `e`0e considerem-se os pontos M1eM2, em `0, de tal modo que Mseja
o ponto médio do segmento M1M2e cujo comprimento é igual ao da interseção de `0com
a curva C. Repetindo este processo para as várias retas perpendiculares a `e secantes à
curva Cobtemos o domínio plano D`cuja curva que o encerra é a C`, tal como se ilustra
na seguinte figura.
2. Pelo princípio de Cavalieri, que diz que: (...)"Se duas porções planas são tais que toda
reta secante a elas e paralela a uma reta dada determina nas duas porções segmentos
de reta cuja razão é constante, então a razão entre as áreas dessas porções é a mesma
constante"(Lula[?] p.22), a curva Cl, encerra a mesma área que a curva C, mas o compri-
mento Llda curva Clé menor do que o comprimento Lde C.
3. Demonstraremos de seguida que LLl. Consideremos os dois trapézios N1N0
1N0
2N2e
M1M0
1M0
2M2, ilustrados na figura abaixo.
Na figura temos |M1M2|=|N1N2|e|M0
1M0
2|=|N0
1N0
2|. Por simetria, temos também
|M1M0
1|=|M2M0
2|. Aplicando a desigualdade triangular, resulta que
2|M2M0
2|≤|N1N0
1|+|N2N0
2|
Fazendo M0
1eM0
2"muito próximos"de M1eM2, respetivamente, e tomando a soma do
comprimento de todos esses segmentos, (método de exaustão) obtemos LLl.
4. Procedendo do mesmo modo relativamente ao domínio plano D`e a curva C`, tomando
uma outra reta não paralela a `, vamos obter uma nova curva com um novo eixo de si-
metria. Se repetirmos recursivamente o processo, no limite, vamos obter uma curva com
infinitos eixos de simetria, isto é uma circunferência com a mesma área da superfície ori-
ginal, mas com menor perímetro. Mais à frente mostraremos que isto é suficiente para
concluir que, de entre todas as curvas com comprimento fixado, a circunferência é a que
encerra maior área.
Partindo de uma curva Cque encerrra a área Ae perímetro L. Aplicando sucessivamente
o processo de simetrização em relação as diferentes retas `1,`2,`3,`4,...,`n, obtemos cur-
vas fechadas C1,C2,C3,C4,....Cn, no limite vamos obter uma circunferência C0e todas as
curvas Limitam a mesma área, enquanto o perímetro diminuirá progressivamente.
A=A1=A2=... =A(Co)
LL1L2... L(Co)
Consideremos uma circunferência de perímetro Le área Ac, a área da circunferência de
perímetro Lé obtida da seguinte forma:
sabendo que
L= 2πR (1)
Ac=πR2(2)
isolando o raio em (1) vem
R=L
2π
substituindo em (2) temos
Ac=πL2
4π2
Ac=L2
4π
L2
4πL2
o
4πAc> A0=A
Assim a curva Climita uma área menor do que a circunferência com o mesmo perímetro
L.
Logo de entre as curvas de perímetro La circunferência é a que encerra maior área.
Assim fica demonstrada a ideia partilhada pelas autoridades tradicionais que a circunfe-
rência encerra maior área de entre as curvas de igual perímetro. De ressaltar que o enqua-
dramento da ideia de perímetro fixo na construção do Onjango, tem a ver com a economia
do material necessário para a construção do mesmo.
O método utilizado por J. Steiner na obtenção do resultado anteriormente apresentado,
pode ser aplicado em outros problemas de contexto. Por exemplo, como obter área apro-
ximada do território angolano por um processo de simetrização que compara o território
angolano com polígonos com a mesma área e, no limite, com um círculo?
O mapa de Angola constitui a imagem bastante visualizada no seio dos alunos angolanos,
entretanto a sua linha de fronteira lhes é muito familiar.
Por se tratar de curvas fechadas, vamos obter a curva desejada sem olhar para a província
de Cabinda.
Com um número relativamente baixo de iterações deste processo podemos encontrar um
minorante e um majorante do raio relativamente próximos um do outro. Podemos trabalhar
por exemplo 4eixos de simetria correspondentes à Rosa dos Ventos: NS,EO,, NoSe,
NeSo , cujo processo é ilustrado nas imagens que se seguem.
Conclusão
As ideias apresentadas neste artigo dão conta de uma matemática nativa e intuitiva con-
gelada no pensamento das autoridades tradicionais do município do Cuito cujo processo
de interpretação matemática sugere uma atividade motivacional e significativa no ensino-
aprendizagem da Geometria plana, baseada no contexto do aluno. O resultado matemático
apresentado permite uma descolinização cultural conducente à um possível entendimento
por parte do aluno de que a Matemática não é algo completamente estranho importada de
fora de África.
Referências
[1] Apostol, T. M., Mnatsakanian, M. A., New Horizons in Geometry. MAA, Dolciani
Mathematical Expositions, 47, 2012.
[2] Urakawa, H., Calculus of Variations and Harmonic Maps, Translations of Mathematical
Monographs. Vol. 132, AMS. 1990.
[3] Rosa, M., A mixed-methods study to understand the perceptions of high school leader
about English Language Learnears (ELL): The case of mathematcs. Thesis (Doutorado).
College of Education , California State University, Sacramento. 2010.
[4] Dias, P., O lugar da fala conversas entre o jongo brasileiro e o ondjango angolano.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 59, p. 329-368, dez. 2014.
[5] Santos, M., R., Introdução à História da Matemática . Belo Horizonte
2013.
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  • T M Apostol
  • M A Mnatsakanian
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  • M Rosa
Rosa, M., A mixed-methods study to understand the perceptions of high school leader about English Language Learnears (ELL): The case of mathematcs. Thesis (Doutorado). College of Education, California State University, Sacramento. 2010.
Introdução à História da Matemática
  • M Santos
Santos, M., R., Introdução à História da Matemática. Belo Horizonte 2013.