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CABEÇA
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SANIDADE ANIMAL
luir para um quadro agudo, altamente con-
tagioso, pela eliminação de micobactérias
viáveis através de excreções e secreções.
O quadro clínico é caracterizado pelo de-
senvolvimento de lesões granulomatosas
purulentas, caseosas e/ou caseocalcárias,
onde ocorre infiltração linfocitária e, tipi-
camente, circunscrição do agente etioló-
gico. Estas lesões situam-se, sobretudo, na
cadeia linfática, com afinidade para linfo-
nodos e/ou órgãos específicos consoante a
espécie. Quando as lesões se localizam no
aparelho respiratório, o contágio ocorre por
via oronasal, entre animais que contactem
entre si, no entanto, a bactéria pode tam-
bém ser excretada pelo sistema digestivo/
/excretor através de fezes e urina que po-
dem contaminar o solo, vegetação ou água,
favorecendo a transmissão indireta via am-
biente, nomeadamente pontos de alimen-
tação ou de abeberamento e pastagens. No
caso dos animais selvagens ou dos animais
criados em regime extensivo, o contacto
pode intensificar-se na época de estiagem
devido à redução dos pontos de água, con-
duzindo a maior agregação animal e maior
probabilidade de transmissão.
Implicações da tuberculose bovina
na saúde animal, segurança
alimentar e socioeconomia
A tuberculose em bovinos raramente apre-
senta sinais clínicos específicos, apesar de
se poder registar uma deterioração pro-
gressiva da condição corporal e emaciação
do animal afetado. Face à inespecificidade
de sinais, o controlo da doença consiste na
deteção precoce e remoção atempada dos
animais infetados para minimizar a trans-
missão do agente aos restantes.
Esta é uma doença de notificação obriga-
tória, que constitui risco para a saúde pú-
blica, e cujo agente pode ser transmitido ao
Homem através da ingestão de alimentos
de origem animal contaminados, nomeada-
mente leite não pasteurizado e carne pouco
cozinhada, ou pelo contacto direto com ani-
mais infetados. Neste âmbito, os produtores
Figura 1 – Principais marcos na investigação e controlo de tuberculose animal em Portugal
Tuberculose animal: diagnóstico,
epidemiologia, investigação e controlo
A tuberculose animal é uma doença infeciosa crónica de progressão lenta que afeta
bovinos e outras espécies de mamíferos, podendo também afetar o Homem. Na Península
Ibérica, a doença é mantida num sistema multi-hospedeiro, no qual os agentes etiológicos,
Mycobacterium bovis
e
M. caprae
, circulam de forma endémica em populações de ungulados
selvagens e domésticos.
Portugal tem registado progressos expressivos no controlo da doença desde a implementação
à escala nacional do programa de erradicação, no entanto, subsistem vários aspetos por
investigar na interface bovinos-fauna silvestre e são necessárias medidas de intervenção
adaptadas a cada cenário epidemiológico.
Mónica V. Cunha, Ana C. Reis, André C. Pereira,
Beatriz Ramos, Teresa Albuquerque e Ana Botelho
INIAV, I.P.
Nuno Santos . CIBIO-UP
Tuberculose animal
A tuberculose animal (TB) é uma doença in-
feciosa causada por
Mycobacterium bovis
e,
menos frequentemente, por
Mycobacterium
caprae
, que tipicamente afeta bovinos. Esta
bactéria pode infetar várias outras espécies
de ungulados domésticos e também selva-
gens, carnívoros ou marsupiais, com pre-
valências que variam consoante a região
geográfica, a composição da comunidade de
vertebrados e o maneio. Esta doença de pro-
gressão lenta pode apresentar longos perío-
dos de latência, no entanto, em condições de
imunossupressão do hospedeiro, pode evo-
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SANIDADE ANIMAL
pecuários, agricultores, profissionais de
matadouro e caçadores estão entre os gru-
pos com maior risco de contrair a infeção.
Apesar das diversas medidas em curso que
visam a erradicação da tuberculose bovina,
do melhoramento das condições de maneio
pecuário e da pasteurização do leite, que
contribuíram para diminuir a transmissão
ao Homem, todos os anos são reportados ca-
sos de tuberculose humana de origem zoo-
nótica em países da União Europeia.
A tuberculose animal representa elevado
impacto económico, devido às elevadas
perdas de produção pecuária e de rejeição
de carcaças em matadouro. Este problema
é transversal a diferentes explorações de
bovinos, independentemente da sua aptidão
(leite, carne ou reprodução). Impacta tam-
bém, com menor expressão, as explorações
de caprinos e ovinos, suscetíveis à infeção
por
Mycobacterium caprae
. A TB causa ain-
da a perda de mercados internos e externos
da União Europeia, por restrição do comér-
cio de animais e produtos derivados e pelo
custo direto do controlo da doença para os
orçamentos de alguns Estados-Membros,
incluindo Portugal, onde existe um plano
de erradicação em curso.
Programa de controlo
de tuberculose nos bovinos
Portugal tem um programa de erradica-
ção de tuberculose nos bovinos desde 1987
(Fig.1), baseado no teste e abate dos efeti-
vos, cuja responsabilidade de implementa-
ção e acompanhamento é da Direção-Geral
de Alimentação e Veterinária (DGAV).
Este programa assenta: (1) na deteção em
vida de animais infetados nas explorações
através da prova de intradermotuberculini-
zação dupla comparada (IDTC) ou o teste
do interferão-gama; (2) no abate sanitário
compulsivo dos animais suspeitos com res-
petiva indemnização aos produtores; e (3)
no diagnóstico laboratorial subsequente.
Existem outras medidas adicionais, como
os testes de pré-movimentação, a vigilância
sanitária em matadouro e a classificação
sanitária obrigatória dos efetivos e regiões.
Portugal tem registado progressos expres-
sivos no controlo da doença desde a imple-
mentação à escala nacional do programa de
erradicação aprovado pela União Europeia
em 1992 (Decisão do Conselho 92/299/CE)
(Fig. 2). Os valores de prevalência têm per-
manecido baixos na última década, eviden-
ciando-se algumas diferenças regionais en-
tre a região Norte, com valores percentuais
de prevalência mais baixos, em comparação
com as regiões Centro e Alentejo (dados de
2017, DGAV). A região do Algarve é a única
reconhecida, desde 2012, como região ofi-
cialmente indemne de tuberculose (Deci-
são 2012/204/EU), sendo aplicado um plano
de vigilância específico para a manutenção
deste estatuto.
Com a diminuição progressiva dos níveis
de prevalência ao longo dos anos, alcançada
através do programa de erradicação, a vigi-
lância ativa da tuberculose bovina é atual-
mente ajustada à realidade epidemiológica
das diferentes regiões, bem como ao históri-
co e aptidão das explorações. Para um con-
trolo eficiente da doença, o rigor de aplica-
ção e interpretação da prova de IDTC é de
importância crucial para a deteção precoce
e efetiva dos animais infetados e implemen-
tação das medidas de controlo necessárias,
evitando assim a propagação do agente infe-
cioso e protegendo a saúde pública.
Tuberculose no mundo
O progressivo controlo da tuberculose ani-
mal, através de rigorosas campanhas de tes-
te e abate dos bovinos infetados, permitiu
tornar vários países oficialmente indemnes
(e.g. Alemanha e França), circunscrevê-
-la a algumas regiões (e.g. Itália) ou baixar
os níveis de prevalência para valores resi-
duais (e.g. Bulgária ou Roménia). Contudo,
quando a infeção se instala em populações
silvestres, como o texugo (
Meles meles
) no
Reino Unido e Irlanda, javali (
Sus scrofa
) e
veado (
Cervus elaphus
) na Península Ibé-
rica, o marsupial opossum (
Trichosurus
vulpecula
) na Nova Zelândia, o búfalo-
-africano na África do Sul (
Syncerus caffer
)
e o veado-de-cauda-branca (
Odocoileus
virginianus
) nos Estados Unidos da Améri-
ca, a sua eliminação torna-se mais comple-
xa e desafiante, conduzindo à necessidade
de combinar diferentes estratégias de inter-
venção, desde o reforço da biossegurança
à eliminação massiva de animais em áreas
infetadas, ou à vacinação em zonas-piloto.
Os estudos publicados sugerem que a vaci-
nação diminui os níveis de excreção, mas
não evita o estabelecimento da infeção. A
vacinação de bovinos é proibida na União
Europeia, uma vez que interfere com os
métodos de diagnóstico, nomeadamente o
teste de IDTC usado em vida. A administra-
ção da vacina na fauna silvestre é também
Figura 2 – Evolução dos indicadores epidemiológicos relativos à tuberculose em bovinos, em Portugal continental (2005 e 2017)
[Adaptado do Relatório Técnic o de Sanidade Animal, DGAV (2017)]
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SANIDADE ANIMAL
atualmente interdita na União Europeia,
apesar de terem sido autorizados alguns
estudos-piloto, que implicam validar um
sistema de administração e distribuição da
vacina, bem como a avaliação do seu impac-
to ambiental.
Tuberculose em caça maior
em Portugal
A TB é uma doença emergente nos ungula-
dos silvestres em Portugal, sendo a expan-
são a partir do núcleo de alta prevalência
no centro-sudoeste da Península Ibéri-
ca alimentado pelas elevadas densidades
destas espécies, as quais são promovidas
pelo maneio intensivo para fins económi-
cos associados ao turismo cinegético e co-
mercialização de carne de caça. Este tipo
de maneio inclui remoção de predadores,
confinamento (cercados), translocação, ali-
mentação e abeberamento artificiais, que
sustentam a transmissão animal a animal.
Para além das implicações óbvias em saú-
de animal, saúde pública e biodiversidade,
a manutenção da tuberculose em espécies
cinegéticas causa também avultados danos
no turismo cinegético, no comércio da car-
ne de caça e põe em causa o valor cultural,
recreativo e económico das montarias e dos
outros processos de caça dirigidos aos un-
gulados cinegéticos.
A vigilância irregular e não uniforme no
país, contudo continuada nalgumas re-
giões, nomeadamente no Alentejo e Beira
Interior, particularmente no concelho de
Idanha-a-Nova, evidenciou uma incidência
crescente de lesões suspeitas, confirmadas
laboratorialmente, em caça maior (veados
e javalis). Esta evidência, associada à ele-
vada densidade e expansão geográfica das
populações de ungulados silvestres, levou
a que a DGAV estabelecesse em 2011 uma
área epidemiológica de risco, através da
publicação do Edital n.º 1/2011. A zona de
risco inicialmente estabelecida compreen-
de concelhos das unidades territoriais do
Centro e Alentejo, estendendo-se ao longo
da região raiana. A aplicação do Edital obri-
ga a medidas específicas, nomeadamente o
exame inicial dos animais de caça maior
abatidos em ato venatório por um médico
veterinário designado, para identificação
de lesões sugestivas de tuberculose, reco-
lha de amostras dos animais suspeitos (com
lesões macroscópicas) para diagnóstico la-
boratorial e encaminhamento e eliminação
adequados de subprodutos e das peças de
caça suspeitas. Este exame inicial tem co-
mo principal objetivo detetar sinais que
possam indicar que o consumo ou manu-
seamento do animal constitui um risco sa-
nitário. O animal com lesões suspeitas deve
ser eliminado para salvaguarda da seguran-
ça alimentar e saúde pública. O exame ini-
cial não substitui a inspeção sanitária. As-
sim, a colocação no mercado para consumo
humano de espécimes de caça maior aba-
tidos em ato venatório obriga ao seu enca-
minhamento para um estabelecimento de
preparação de caça aprovado ou matadouro
licenciado para esse efeito, onde se efetuará
uma inspeção sanitária por médico veteri-
nário oficial.
O diagnóstico laboratorial
A execução analítica dos planos oficiais de
controlo de TB em bovinos e caça maior
(veado e javali) na área epidemiológica de
risco é realizada pelo INIAV, IP, Laborató-
rio Nacional de Referência de Saúde Ani-
mal, que tem a seu cargo a confirmação
laboratorial dos casos suspeitos, baseada
em testes histopatológicos, bacteriológicos,
moleculares e/ou imunológicos (Fig. 3).
Para um diagnóstico definitivo de tubercu-
lose, a Organização Mundial de Saúde Ani-
mal (OIE) exige a confirmação laboratorial
oficial através do isolamento da bactéria em
cultura e/ou deteção da bactéria em micro-
granulomas através do exame microscópi-
co de lesões características nos tecidos. O
isolamento em cultura do agente, realizado
em condições de biossegurança elevadas, é
um processo demorado (que pode exceder
três meses) devido ao crescimento muito
lento do microrganismo, com implicações
evidentes no sequestro sanitário das car-
caças e explorações suspeitas. Assim, o
desenvolvimento e validação de métodos
de diagnóstico mais rápidos, sensíveis e fiá-
veis, que permitam agilizar o algoritmo de
diagnóstico, a comunicação dos resultados
e, subsequentemente, reduzir o sequestro
sanitário das explorações, têm elevada rele-
vância e prioridade.
Investigação nesta temática
em Portugal
A par do apoio laboratorial à execução dos
planos de controlo, o INIAV e outras equi-
pas têm realizado estudos científicos que
permitiram confirmar a circulação endémi-
ca de
M. bovis
em caça maior. A modelação
espacial do risco de infeção com base em
métodos sorológicos, usando o javali como
espécie-modelo, e estudos não publicados
em carnívoros mediterrânicos evidenciam
a tendência de expansão geográfica da TB
para além dos limites estabelecidos na área
epidemiológica de risco.
Apesar da deteção ocasional do agente nou-
tras espécies, nomeadamente carnívoros e
aves necrófagas, os estudos realizados per-
mitiram confirmar os bovinos, o javali e o
veado como os hospedeiros de grande rele-
vância epidemiológica.
Os estudos liderados pelo INIAV em par-
ceria com a DGAV permitiram sustentar a
investigação epidemiológica de surtos em
explorações e casos de reinfeção após va-
zio sanitário associados a movimentação
animal. Têm ainda salientado a elevada di-
versidade genotípica de
M. bovis
nas espé-
cies de ungulados do território nacional e
mostrado a existência de genótipos comuns
com os de surtos ocorridos em Espanha. O
INIAV tem ainda colaborado com várias
entidades no estudo da dinâmica de movi-
mentos de bovinos de explorações positivas
Figura 3 – Fluxograma para análise molecular dos processos epidemiológicos subjacentes a tuberculose animal: Receção de amostras
com suspeitas de infeção tuberculosa, que são processadas para cultura em meio seletivo tendo em vista o crescimento preferencial
de micobactérias. As colónias de micobactérias são processadas para extração de ADN, que posteriormente é utilizado em técnicas de
biologia molecular para identificação da espécie (
M. bovis
ou
M. caprae
). Os isolados identificados são genotipados por técnicas clássicas
(
spoligotyping
e MIRU-VNTR), baseadas em zonas específicas do genoma, e analisados por métodos baseados em filogenética e análise
probabilística para determinar a relação evolutiva dos isolados e a sua relação espacio-temporal
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e a sua relação com parâmetros de análise
genética e de distância (Fig. 4).
Outros estudos recentes também realizados
em Portugal, nomeadamente pelo ICVS/
Universidade do Minho e pelo CIBIO, e em
Espanha sugerem que a contaminação e re-
siliência ambientais de
M. bovis
possam ter
um papel importante na transmissão indire-
ta, no entanto, a ausência de técnicas sensí-
veis e escaláveis tem impedido o isolamento
de
M. bovis
de matrizes ambientais, bem
como limitado a deteção da assinatura mo-
lecular das estirpes que circulam nessa in-
terface. Também foi demonstrada a existên-
cia de javalis e veados superexcretores, que
libertam no ambiente grandes quantidades
de micobactérias por via oral, fecal e uriná-
ria, e que exercem um papel epidemiológico
de enorme relevância, amplificando os pro-
cessos de transmissão direta e indireta.
Os estudos científicos levados a cabo têm
sido importantes para se conhecer e caracte-
rizar a situação da TB no terreno e para que
se possam adequar medidas de controlo sa-
nitário às zonas onde comprovadamente
M.
bovis
circula. Apesar da mitigação de alguns
fatores de risco ao nível das explorações pelo
maneio e reforço de medidas de biosseguran-
ça, a existência de reservatórios silvestres e
as densidades elevadas de algumas popula-
ções geridas artificialmente para fins cine-
géticos limitam grandemente o controlo de
TB em Portugal e noutros países europeus.
Evidências fornecidas por estudos
de epidemiologia molecular
em
M. bovis
O INIAV foi pioneiro na caracterização mo-
lecular dos isolados nacionais de
M. bovis
por
spoligotyping
e MIRU-VNTR, duas
técnicas de referência internacionalmen-
te aceites para a genotipagem de micobac-
térias (Fig. 3 e 4). Tem, desde 2008, e com
regularidade, determinado o perfil genotí-
pico de isolados oriundos de várias espécies
animais do território continental e dos Aço-
res, confirmando a predominância do clone
Europeu 2 e identificando vários genótipos
e
clades
não anteriormente descritos. A ca-
racterização molecular de
M. bovis
de di-
ferentes cenários epidemiológicos e contex-
tos espaciotemporais suporta a ocorrência
de episódios de transmissão intra e interes-
pecífica, quer à escala da exploração, quer à
escala da zona de caça. Estas evidências são
sugeridas pela sobreposição de perfis mo-
leculares e a relação genética próxima en-
tre isolados de diferentes hospedeiros, que
partilham o mesmo contexto epidemiológi-
co. Têm ainda sido identificadas algumas
situações de infeções mistas ou detetada a
ocorrência de fenómenos de evolução intra-
-hospedeiro durante o processo de infeção
(Fig. 4).
A análise Bayesiana de cerca de centenas de
isolados baseada em perfis de MIRU-VNTR
sugere a presença de cinco populações an-
cestrais de
M. bovis
, denominadas de M1 a
M5, que apresentam evidências de especifi-
cidade geográfica e algum tropismo por es-
pécies de hospedeiros específicos (Fig. 4).
A população M2 encontra-se significativa-
mente associada à região de Castelo Bran-
co, a M3 com Portalegre e a M5 com Beja,
enquanto ao nível dos hospedeiros apenas
se regista uma associação com significân-
cia estatística da população ancestral M4
com bovinos. Os isolados de
M. bovis
que
circulam em regiões distintas apresentam
uma maior diversidade genética, em relação
à diversidade observada nos isolados de di-
ferentes hospedeiros, o que reforça a ocor-
rência de transmissão interespecífica numa
mesma região.
No entanto, para clarificação de assinaturas
moleculares específicas de cada região geo-
gráfica e de cada espécie hospedeira, recor-
reu-se à sequenciação total de genomas, que
possibilita uma elevada resolução na defini-
ção destas assinaturas e um esclarecimento
inequívoco à escala individual do contex-
to epidemiológico. A aplicação de sequen-
ciação total de genomas a um grupo de 42
isolados permitiu reconstruir parcialmente
cadeias de transmissão, com sugestão de
eventos recentes de disseminação (Fig. 5).
Mycobacterium caprae
: um agente
patogénico que merece atenção
Mycobacterium caprae
é também agente
etiológico de tuberculose, com especial in-
Figura 4 – Ilustração esquemática dos diferentes níveis de complexidade epidemiológica à escala individual, populacional e regional.
Os hospedeiros estão ide ntificados pelas cores das popu lações ancestrais, com exceção do caso de infeç ão mista.
CB – Castelo Branco; PG – Portalegre
Figura 5 – Árvore de transmissão: reconstrução de cadeias de transmissão entre bovinos, veados e javalis, tendo como informação de
base o ano de isolamento, espécie hospedeira e região geográfica de animais positivos à TB nos distritos de Beja (BJ), Castelo Branco (CB)
e Portalegre (PG). As ligações estabelecidas têm por base o número de diferenças nucleotídicas (números indicados sobre as ligações)
detetados nos genomas dos isolados
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SANIDADE ANIMAL
cidência em caprinos. Os ovinos, bovinos (e
ungulados silvestres) são também suscetí-
veis à infeção, no entanto, para estes não es-
tá previsto um programa de controlo. Ape-
sar da menor incidência, a circulação de
M.
caprae
, que também pode infetar bovinos,
causa limitações à erradicação.
A tuberculose causada por
M. caprae
ape-
nas se encontra reportada em países euro-
peus, sendo Portugal, Espanha, Reino Uni-
do, Croácia, Áustria, Alemanha, Irlanda e
Itália os países com surtos identificados.
Esta particularidade epidemiológica em
Portugal constitui um potencial nicho de
investigação num agente patogénico que
não pode ser negligenciado e cujo escasso
conhecimento contrasta com o nível de in-
formação disponível para
M. bovis
.
No período temporal entre 2003 e 2014, fo-
ram notificados, em Portugal continental e
Açores, 55 casos de infeção por
M. caprae
em quatro espécies hospedeiras, nomea-
damente caprinos, bovinos, ovinos e java-
li, sendo a maioria dos casos detetados em
caprinos. A análise de similaridade genéti-
ca, realizada após a aplicação das técnicas
de genotipagem clássicas, agrupou os iso-
lados em três complexos clonais (CC1-3)
distintos, com uma distribuição geográfica
díspar, encontrando-se o CC1 significa-
tivamente associado ao Alentejo, o CC2 à
região Norte e o CC3 ao Alentejo e Açores
(Fig. 6).
Próximos desafios da investigação
O Projeto COLOSSUS –
ControlO de tu-
bercuLOSe na interface bovinoS-faUna Sil-
vestre com recurso a soluções inovadoras
inspiradas na natureza
(POCI-01-0145-FE-
DER-029783), com financiamento do FE-
DER e Orçamento de Estado, é liderado
pelo INIAV em colaboração com a FCUL
(BioISI) (PT), CIBIO (PT) e Universida-
de da Geórgia (EUA). Tem como objetivos
reconstruir a história demográfica de
M.
bovis
, inferir as cadeias de transmissão
em ungulados domésticos e selvagens, hie-
rarquizar o risco de infeção e identificar
espécie(s) e área(s) de intervenção priori-
tárias consoante o cenário epidemiológico,
reunindo informação relevante que infor-
me políticas públicas e dê suporte à deci-
são de autoridades oficiais, proprietários e
entidades gestoras.
No âmbito deste projeto, está em curso a
sequenciação completa dos genomas de
centenas de isolados de
M. bovis
obtidos
em Portugal de diferentes contextos epi-
demiológicos ao longo dos últimos anos.
Estão também a ser desenvolvidas ferra-
mentas quantitativas que permitam ajustar
os recursos ao risco, nomeadamente uma
aplicação computacional assente em mo-
delos de transmissão multiescala, capaz
de prever a eficácia de diferentes interven-
ções (por ex. remoção seletiva de animais,
medidas de biossegurança, vacinação, al-
teração de maneio, etc.). Estes modelos se-
rão baseados em simulações de surtos em
bovinos, surtos em populações silvestres,
e surtos nas diferentes interfaces, com in-
corporação de metadados e filodinâmica.
A análise comparativa de genomas tam-
bém permitirá elucidar aspetos da varia-
ção antigénica de
M. bovis
, o que poderá
ter implicações no diagnóstico em vida e
contribuir para o desenvolvimento de uma
estratégia eficaz que proteja os animais da
infeção. No âmbito do projeto COLOSSUS,
está ainda a decorrer o desenvolvimento
de uma nova abordagem que integra cito-
metria de fluxo, hibridação
in situ
e ampli-
ficação de genomas completos, tendo em
vista a quantificação da viabilidade celu-
lar e caracterização molecular de
M. bovis
ambiental, através da análise de matrizes
ambientais (solo, água, lama, etc.) recolhi-
das em áreas onde comprovadamente este
agente circula. A visão mecanística desta
componente indireta da infeção, em para-
lelo com a componente clínica, será valiosa
para entender o seu peso na manutenção
de
M. bovis
no ecossistema e para decidir
sobre as melhores opções de controlo con-
soante o cenário epidemiológico de cada
área afetada.
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Figura 6 – Distribuição dos isolados de
M. caprae
, agrupados
por complexo clonal e por região geográfica. A escala de cinzentos
representa a intensidade de amostragem; as zonas a branco não
foram amo stradas
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