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Personalismo e pastoral. De uma abordagem filosófica à ação pastoral

Authors:
  • FACULDADE CATOLICA DO AMAZONAS

Abstract

O artigo visa resgatar para a reflexão pastoral alguns temas da filosofia personalista elaborada nos anos trinta e quarenta do século passado pelo filosofo francês Emmanuel Mounier. Equilíbrio entre vida interior e abertura ao social, entre vida ativa e contemplativa, e valorização da liberdade responsável são alguns dos tópicos da filosofia personalista que podem contribuir para o debate eclesial contemporâneo.Abstract: The article hopes to rescue some themes of the personalistic philosophy developed in the 1930s and 1940s by the French philosopher Emmanuel Mounier. The balance between inner life and the openness towards the social, between active and contemplative life, and the appreciation of responsible freedom are some of the topics from the personalistic philosophy that may contribute to the contemporary ecclesial debate.
PERSONALISMO E PASTORAL: UMA ABORDAGEM
FILOSOFICA Á AÇÃO PASTORAL
[Artigo publicado na REB 4/2008]
De Pe Paolo Cugini1
Introdução
No ano 2005, na ocasião do centenário do nascimento do filosofo francês Emmanuel
Mounier, em vários lugares do mundo e também no Brasil, foram organizados eventos
culturais para a comemoração. O pensador francês - nascido em Grenoble no ano de
1905 e falecido em Paris em 1950- dedicou toda a sua breve e intensa existência, para
elaborar uma reflexão filosófica que soubesse conciliar força especulativa e atenção a
realidade histórica.
Fundador de Esprit2- revista cultural e política cujo objetivo era tecer um diálogo
com a sociedade francesa e européia, para buscar soluções possíveis a grande crise
econômica, política e cultural, que estava afetando o mundo Ocidental nos anos Trinta
Mounier conseguiu manter um diálogo aberto e crítico com todas os componentes
da sociedade. Criticado pela Igreja Católica3, pela sua abertura, considerada
excessiva, aos partidos e movimentos de esquerda e ao mesmo tempo questionada
pelos mesmos partidos de esquerda por causa da posição dura e extremamente crítica
de toda a equipe da Revista para com os acontecimentos que naquela época turbulenta
envolviam a União Soviética e os países do leste europeu, Mounier soube manter
constantemente o seu olhar atento e fixo no centro do seu interesse: a pessoa humana.
O “Personalismo Comunitário4 tornou-se assim uma filosofia, fruto de uma longa e
atenta reflexão à condição da pessoa no caminho da história, na escuta constante do
“evento” do tempo presente. É por este cunho existencial e, ao mesmo tempo,
experiêncial, que achamos interessante tentar uma reflexão que envolve a ação
pastoral da Igreja, no desejo de uma vida pastoral sempre mais pensada e menos
deixada aos impulsos emotivos e extemporâneos dos agentes de pastoral.
1 Paroco de Tapiramutà-BA e professor de filosofia na FAFS (Faculdade Arquidiocesana de Feira de Santana-BA).
2 O primeiro numero da revisata “Esprit” foi publicado o primeiro de outubro 1932. O melhor estudo que ainda hoje se
encontra sobre a historia e o conteudo da revista “Esprit”, sobretudo no periodo da direção de Mounier (1932-1950) è:
Michel Winock, Histoire politique de la revue Esprit, Seuil, Paris 1975.
3 Logo no começo da atavidade de “Esprit”, Mounier foi avisado pelo padre Plaquevent – um amigo do mesmo Mounier
que nos ambientes eclesiasticos estava sendo realizada um inquerito sobre a sua revista. Os problemas apresentados
eram estes: não era considerata positiva a colaboracão com os não catolicos; também negativa era considerada a
colaboração com o movimento esquerdista de “Troisiéme Force”, no final era considerada preocupante a escassa
consideração que “Esprit” estava manifestando com a posição oficial da Igreja.
4 E’ o titulo de um artigo que apareceu na revista “Esprit” no 1933 e que foi colocado como capitulo de um libro do
mesmo Mounier, que coletava una serie de artigos publicados em “Esprit” nos primeiros anos de atividade. O nome do
livro è o seguinte: "“Révolution personaliste e comunautaire (1935), traduzido em italiano com o tittulo: Rivoluzione
personalista e comunitaria, Ecumenica, Bari 1984.
2
Folhear as páginas da filosofia mounieriana na busca de indicações para uma ação
pastoral mais fiel e coerente com o Evangelho de Jesus, não é forçar uma reflexão
teórica puxando-a no campo da prática. O Personalismo é de fato, uma filosofia
encharcada de vida e, ao mesmo tempo de autêntica, pois autêntica e sincera foi a
busca do pensador francês de uma vida cristã encarnada na história, fiel ao mistério da
Encarnação que, desde o tempo dos estudos universitários, o fascinou5. Tentaremos
então, nas páginas seguintes, esboçar uma reflexão que ajude entender o quanto uma
reflexão filosófica, atenta aos problemas da história e da vida e aberta ao
transcendente, pode contribuir para iluminar a ação pastoral, entendendo esta não
como uma mera prática, mas como uma resposta a um apelo que nos precede e que
exige fidelidade e amor.
1. A dialética de interioridade e objetividade
Ao longo de toda a sua obra, Emanuel Mounier frisa constantemente um dado que,
além do mais, é uma preocupação: a necessidade de manter em harmonia o
movimento de interiorização da pessoa, com o movimento de exteriorização. De fato,
segundo o filosofo francês, a pessoa vive numa constante ameaça: de fechamento em
si mesmo ou de dispersão no mundo. Entre exterioridade e objetividade deve, então,
existir um relacionamento dialético, uma circularidade para que não aconteça que a
pessoa se perca na vida ativa ou nas profundidades da vida interior. Estas ameaças se
tornam tais, somente quando a pessoa não consegue alcançar o equilíbrio. Antes,
porém, vida interior e exterior, são consideradas pelo nosso Autor nos detalhes dos
seus itens positivos, que nos parece importante sublinhar, se quisermos depois
iluminar o campo da ação pastoral com a reflexão personalista.
Em primeiro lugar, a vida exterior. O primeiro movimento que na primeira infância,
revela o ser humano é um movimento para outrem6. A comunicação é percebida na
filosofia personalista como o dado primário da pessoa. De fato, se o amor é a vocação
original da pessoa, então para amar é preciso comunicar e, esta comunicação é
marcada por atos originários: que não tem equivalente em mais parte nenhuma do
universo7. Estes atos originais desvendam a pessoa no seu específico, ou seja, no seu
relacionamento com o outro. Mounier, na sua prosa existencial, enquanto apresenta o
universo pessoal, é constantemente preocupado em afastar uma acusação que o
acompanhou ao longo dos anos, ou seja, de levar a própria filosofia numa espécie de
individualismo fechado. Na realidade, a perspectiva da filosofia mounieriana leva
exatamente no lado oposto, apontando o caminho de saída da pessoa de si mesma para
se descentrar e, assim, tornar-se disponível para os outros. Na pessoa encontramos um
dinamismo que a leva ao encontro do outro, na doação de si mesmo, na generosidade,
gratuidade e na fidelidade. Estas são características que mostram a pessoa no
5 Nisso foi bastante influenciado pela obra de Charles Péguy(Orléeans 1873-Villeroy 1914), ao qual dedicou a primeira
obra da sua vida: Le pensée de C: Péguy (1931), tr.it. Il pensiero di C Péguy, Ecumenica Bari, 1987.
6 O personalismo, Centauro Editora, 2004 p 18
7 Ibidem.
3
incessante movimento rumo ao outro, também porque é no relacionamento gratuito e
fiel com o outro que a pessoa define a própria identidade.
O realismo filosófico de Mounier, não esquece que a comunicação da pessoa para
com os outros, não acontece num clima poético, mas é constantemente solapada para
uma série de obstáculos que a ameaçam e, estes se encontram dentro e fora de nós.
sempre algo em nós – escreve Mounier – que resiste essencialmente a todo
esforço de reciprocidade”8, uma espécie de vontade, que puxa o relacionamento
com o outro para baixo.
Existe na pessoa uma espécie de opacidade irredutível, que podemos chamar de
egocentrismo ou de egoísmo, que estorva a autêntica relação interpessoal. É por isso
que, se de um lado a pessoa percebe em si um élan natural de se doar paro o outro, do
outro lado sente dentro de si uma força que a leva a si fechar, uma barreira que se
levanta e não permite uma comunicação autêntica. E assim, sempre que formamos
uma nova reunião de reciprocidade, família, pátria, corpo religioso, etc., cedo esta
vai alimentar um novo egocentrismo”9.
A pessoa, além de ser comunicação, é também interioridade. Cada pessoa adverte em
si a necessidade de se recuperar, de “recuar para depois saltar melhor10.
A dimensão pessoal do sujeito, aponta para um vocabulário que desvende as riquezas
deste mundo desconhecido11. Interioridade é antes de qualquer coisa segredo, o
contrario da vida exibida, sem profundidade, das pessoas totalmente atraídas pela vida
exterior. Nessa altura, a reflexão de Emanuel Mounier, retoma as considerações que
Martin Heidegger fazia em Ser e temposobre a vida inautêntica12. A singularidade
da pessoa, o seu ser original, se percebe nas profundezas da vida interior, na qual a
pessoa colhe o seu segredo, a sua mesma originalidade, que desabrocha na sua
vocação.
O segredo íntimo da pessoa é expresso, também, naquela palavra muitas vezes
esquecida na cultura contemporânea: o pudor. Escreve Mounier: O pudor é o
sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões, nem ameaçada
em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência no momento que esta
totalmente se manifestasse13.
O sentimento do pudor protege a pessoa para que não se identifique com os seus
dados exteriores. O pudor, para ser cultivado, necessita de intimidade ou, em outras
palavras, da vida privada. A este nível, segundo o filósofo francês, é necessário
desmistificar o privado, pois é a mesma vida pessoal que o exige. A reflexão não
somente um olhar interior sobre mim e minhas imagens; é também intuição, projeto
de nós próprios14.
8 O personalismo, cit. p23
9 O personalismo,cit. p26
10 Ibidem.
11 E’ bom salientar que estas reflexões de cunho psicologico, encontram-se de uma forma mais elaborada num trabalho
que Mounier realizou na epoca da segunda guerra mundial, no periodo em que se encontrava preso. Cf E. Mounier,
Traité du caracter (1947), tr.it. Trattato del carattere, Paoline Alba 1950. Este texto foi editato varias vezes.
12 Martin Heidegger, Ser e tempo, 2 voll, Vozes, Petropolis 2001.
13 O personalismo, cit. p 34
14 Ibidem.
4
Tudo isso quer dizer que, aprimorar a dimensão interior da pessoa não é tempo
perdido, como se fosse um luxo para poucos. A interioridade é um dado antropológico
inegável, que deve ser cultivado desde a infância. Por isso, segundo Mounier, a
família e a sociedade devem colaborar para que a pessoa encontre os espaços
necessários para amadurecer na interioridade. Quanto mais a pessoa souber cuidar da
própria interioridade, tanto mais os atos que ela realizar serão firmes.
A existência pessoal vive, então, na perspectiva da filosofia personalista, nesta
circularidade entre interioridade e exterioridade. A grande dificuldade é manter em
harmonia estas duas dimensões da pessoa. Dimensões que são visíveis também a nível
social, naquilo que Mounier chama de pólo político e pólo profético. Na vida
cotidiana encontramos dois tipos de pessoas: o ativo e o espiritual. Nenhuma ação
poderá ser viável se recusar a contribuição da vida espiritual. É indispensável
salienta Mounier – para uma ação bem combinada, a existência destes dois tipos de
homem, o político e o profeta, e a articulação que entre eles se estabelecerá. Caso
contrário, o profeta perder-se-á em vãs imprecações e o tático deixaria se arrastar
em manobras várias15.
Uma ação pastoral que saiba acatar esta reflexão, deve aprender a criar espaços para
que a pessoa, na vida da comunidade, encontre a possibilidade de valorizar estas duas
dimensões da vida pessoal: o diálogo, ou seja, a tendência espontânea a sair de si
mesmo e, do outro lado, a vida íntima, a interioridade. Se o mesmo Mounier revela
que dificilmente encontram-se numa pessoa estas duas características
antropológicas bem harmonizadas, é fora de questão que a pessoa viva dentro de si
esta dialética. Acompanhar a pessoa na vida da comunidade para que possa
amadurecer a sua personalidade, sem frustrar nenhuma das dimensões do universo
pessoal, pra chegar a valorizar aquilo que a mesma natureza doou, é um grande
objetivo da vida pastoral. O exemplo, o encontramos em Jesus que sabia escutar,
acompanhar, aconselhar e orientar os seus discípulos para que amadurecesse neles
uma vida pessoal íntegra. Infelizmente, a tendência que amiúde encontra-se nas
paróquias e nos movimentos, é a valorização de um dos elementos da vida pessoal,
desvalorizando o outro. E, assim, encontramos os espiritualistasque vivem de
oração e de momentos de interioridade, em um fechamento interior que beira a
psicose. Do outro lado, encontramos os “ativos”, que acham a ação o verdadeiro
caminho que Jesus apontou, mistificando desta maneira uma própria incapacidade de
viver uma vida interior. O Personalismo comunitáriode Mounier, ensina que vida
interior e vida ativa são elementos que devem ser constantemente cultivados ao longo
da vida, para não correr o risco de uma vida pessoal castrada, forçados a
supervalorizar aquele elemento que mais se conforma a própria atitude pessoal,
desvalorizando o outro.
Se a vida privada não é um luxo, mas uma exigência intima das pessoas, então a ação
pastoral deve ajudar as pessoas, para descobrirem esta dimensão tão necessária para o
amadurecimento da própria vocação. Identificar interioridade com individualismo
egoístico, é perder de vista a essência da vida pessoal que, para realizar atos
15 O Personalismo, cit. p. 98.
5
autênticos, precisa entrar em si mesma, aprender a se escutar, discernir os próprios
sentimentos, avaliar o leque de possibilidade que uma ação exige. Uma paróquia, um
movimento que ajuda os seus componentes a aprimorar a própria interioridade talvez,
ao longo dos anos, perceberá uma vida comunitária mais atenta a acolher os outros,
mais disposta ao dialogo. O profeta e o homem da ação devem poder conviver não
apenas na mesma pessoa, mas também na mesma comunidade, de qualquer tendência
ela seja.
2. Pessoa e liberdade
Um elemento central do discurso personalista de Mounier é a liberdade. A época na
qual o filósofo francês resolveu elaborar as linhas diretrizes da filosofia personalista,
era extremamente delicada. De um lado, a Europa estava saindo da segunda guerra
mundial, que tinha abalado a estrutura da sociedade no sentido mais profundo16. Do
outro, a filosofia existencialista de Sartre17, que estava no auge nesta época,
considerava a liberdade como um dado absurdo, levando as extremas conseqüências o
niilismo nietzschiano da morte de Deus. Por fim, um grande questionamento sobre a
liberdade pessoal estava sendo posto pelas famosas “purgas” stalinianas que, na
União Soviética e nos países do leste europeu, estava sendo aplicada provocando
milhões de vítimas inocentes. Perante um quadro deste, Mounier advertiu a urgência
de indicar o sentido autêntico da liberdade pessoal.
Em primeiro lugar, Mounier lembra que a liberdade não é uma coisa, um objeto e
também não é simples manifestação espontânea. De fato, se tantos erros aparecem
cada vez que se fala de liberdade, é porque amiúde é considerada como algo de
sovrapessoal, de absoluto, sem uma clara ligação com a realidade. Cada vez que a
filosofia mitologisa a liberdade, colocando-a num patamar divino, ou abaixando-a aos
ínferos, provoca na história, ou seja, no plano da realidade, os horrores que acabamos
de citar acima.
Contra a sartriana identificação do homem com aquilo que faz, como se a liberdade
fosse pura matéria histórica18, Mounier aponta um caminho totalmente diferente. “Sou
dado a mim mesmo e o mundo antecede-me19.
Esta verdade simples, desvenda a idéia de que a liberdade é um dom que o homem
recebe, seja que ele olhe a realidade a partir do alto, que no plano da história. Além
disso, a pessoa não é uma idéia absoluta, mas é esta pessoa específica assim
constituída e situada em si própria, no mundo e perante os valores. Ser livre é, então,
aprender a aceitar aquelas que podemos definir como limitações naturais. Este
elemento da estrutura antropológica da pessoa, revela que a liberdade não é uma
16 Citare alcuni testi di storia.
17 A obra do filosofo e escritor Jean Paul Sartre (1905-1980), està serndo totalmente republicada na ocasião do sei
centenario de nascimento. Em modo especial queremos apontar as seguintes: O ser e o nada, Vozes, 2005, As palavras,
Nova Fronteira, 2005; A idade da razão, Nova Fronteira 2005.
18 Esta tese encontra-se em J.P.Sartre, O existencialismo è um humanismo, Bertrand, Lisboa 2004.
19 O personalismo, cit. p. 49.
6
quantidade, um peso externo, mas progride mediante obstáculos, opções e sacrifícios.
É isso, o dado existencial do universo pessoal, no qual é necessário colocar o discurso
da liberdade, se não quisermos correr o risco de absolutizá-la e fazer dela uma
entidade separada, alheia até da natureza e. assim, desnaturá-la.
Um fator fundamental, na perspectiva da antropologia personalista, é a abertura ao
transcendente. Nessa altura a pessoa percebe a liberdade como invocação, como
apelo, que exige uma resposta. É isso que a liberdade humana algo de intrépido.
Contra qualquer forma de liberdade que tente de adaptar-se ao mundo por medo de
ousar de realizar o chamado, ou contra a tentação de vender a própria liberdade por
um mínimo de segurança por causa das angústias e preocupações que a vida
apresenta, Mounier afirma a necessidade de uma loucura criadora” ínsito na
liberdade, que destroça as correntes do espírito de escravidão intrínseco a cada
homem.
“Um gosto passivo da autoridade que tem mais a ver com a patologia do que com a
teologia, cegas adesões as diretrizes dos partidos, indiferença dócil das massas
desorientadas, tudo nos denuncia a queda do homem livre: é preciso reconstruir a
espécie por estes formada. A liberdade é operária mas, sobretudo, divina20.
Assim entendida, a liberdade pessoal leva a pensar no duplo sentido, de opção e
disponibilidade. A liberdade se, de um lado, é capacidade de ruptura, de opção, do
outro, não se identifica só com isso, mas vai bem além. Liberdade é também adesão e
disponibilidade. Desta forma, é possível perceber que a liberdade não isola, mas une.
De fato, não leva por caminhos de arrogância e auto-suficiência, mas, pelo contrário
busca com responsabilidade a comunhão com os demais.
Estas poucas indicações mounierianas sobre a idéia de liberdade, elaboradas pela
filosofia personalista, podem nos ajudar a encontrar caminhos para que a ação
pastoral acompanhe a pessoa a viver o dom da liberdade.
Mounier conseguiu uma resposta positiva às análises niilistas do existencialismo
sartriano, colocando o discurso sobre a liberdade no plano transcendente. Se a pessoa
é livre, enquanto responde a um apelo que o precede e antecipa desde a eternidade,
quer dizer que a ação pastoral deve dirigir-se nesta direção, esforçando-se de colocar
as pessoas em contato com Deus. Por isso, todo o cuidado com o jeito de celebrar, de
realizar as liturgias é pouco. Se de fato, como nos lembra o Concilio Vaticano II, A
liturgia é o cume e a fonte de toda a vida da Igreja21 e se neste cume a pessoa, de
uma forma eminente, tem a possibilidade de se encontrar misteriosamente com Deus,
isso quer dizer que não é de qualquer jeito que se celebra. Além do mais, para que
uma pessoa possa viver de uma forma livre, ou seja, capaz de responder ao chamado
de Deus, é preciso liberar o campo de qualquer dependência humana. Aquilo, de fato,
que assistimos às vezes nas comunidades e, de uma forma especial, nos movimentos,
é a identificação da vontade de Deus com o líder carismático. Só Deus liberta as
pessoas e, um bom trabalho pastoral, deve visar ajudar as pessoas a viverem uma
experiência pessoal com Deus. Nessa altura, estas reflexões batem com aquilo que
colocamos no parágrafo anterior sobre a interioridade da pessoa. Quanto mais uma
20 O personalismo,cit. p.52
21 Documento Sacrosantum Concilium, § 10.
7
pessoa é envolvida numa experiência pessoal com Deus, tanto mais terá a
possibilidade de viver de uma forma livre, ou seja, responsável. Mais uma vez
apontamos a dificuldade que se apresenta nas comunidades e nos movimentos que
assumem o acompanhamento espiritual das pessoas, ou seja, o perigo de uma escassa
maturidade do líder, que liga a si mesmo as pessoas em busca de Deus, transformando
as próprias carências afetivas em valores para serem assimilados pelos adeptos. Os
estragos que tais relacionamentos pseudo-espirituais provocam nas pessoas, são
amiúde indeléveis22.
3. Dialética de temporalidade e espiritualidade
Nos últimos anos da vida, para Mounier estava ficando bem claro que o projeto da
Cristandade, que tanto tinha acompanhado o destino da Igreja Católica ao longo dos
séculos, deixando marcas profundas na sua estrutura, era totalmente falido. Por isso,
que alguns setores da cultura francesa não recusavam de retomar o caminho de uma
nova Cristandade, como por exemplo Jacques Maritain23. Pra o nosso Autor era
necessário tentar novas veredas.
Foi nessa época- 1947/1950- que Mounier retoma nas mãos a lição do seu antigo
mestre: Charles Péguy24. Deste último, Mounier retomou o grande ensinamento sobre
o Mistério da Encarnação. Contra o Cristianismo que não apaixonava mais ninguém,
enquanto mergulhado no baixo nível da vida burguesa, o filosofo Francês sustentava a
necessidade de um cristianismo fiel a terra e as preocupações corriqueiras dos
homens. “Nos tornamos cristãos da mesma forma que colocamos uma meia, na
maneira mais cômoda do mundo, sem ver de fato a oposição entre ordem cristã e
desordem do mundo. É um absurdo e é uma heresia25.
Esta situação absurda foi o fruto de uma separação que, ao longo dos séculos, veio se
realizando entre o espiritual e o temporal, a vida eterna e a vida terrena, a cidade da
terra e a cidade do céu. Na realidade, observa Mounier, o espiritual está
constantemente deitado no leito do temporal e o temporal, na sua totalidade, é o
sacramento do Reino de Deus26.
São estas as expressões, que visavam provocar nos leitores o desejo de um
cristianismo mais fiel a história e a terra, em outras palavras um cristianismo mais
encarnado, na mesma linha e pelo mesmo caminho que o seu fundador deixou: Jesus
22 Sobre este assunto cf. o meu Missione e contemplazione. Verso un nuovo paradigma missionario, La Rivista del Clero
italiano,2003, pp 124-135.
23 Cf. J.Maritain, Por um humanismo cristão,Paulus 1999.
24 De Péguy sinalamos as seguintes obras: Clio, dialogue de l’histoire et de l’ame paienne, L’argent, em Ouvres em
Prose (1909-1914), Paris 1957; Le mystère de la Charité de Janne d’Arc, Eve, em Oeuvres poetiqués complets, Paris
1941. Indicamos, também, doi textos importantes para entender o pensamento de Péguy: Alain Finnkielkraut, Le
mécontemporain,Gallimard, Paris,1991; Simone Fraisse,Péguy, Seuil, Paris 1979.
25 E Mounier, Cristianità nella storia, Ecumenica, Bari 1979, p. 79.
26 Ibidem.
8
Cristo27. O problema mais profundo que aconteceu na história do cristianismo e que
se realizou na forma político-teológica da cristandade, é que um excesso de idealismo
levou a pensar e a produzir um espiritualismo desencarnado, um espírito sem carne,
um céu sem a terra. Pensando que o cristão deve viver no espiritual – escrevia
Mounier -, é colocado debaixo deste sino pneumático e, quando por sorte o cristão se
conta que o ar está faltando, se diz para ele que deve empenhar-se no temporal
como se seu espiritual fosse separado do temporal e o temporal fosse privado de
espiritualidade”28.
A luta contra estas duas doenças espirituais do cristianismo histórico, perpassa toda a
obra filosófica e política de Emanuel Mounier. O espiritualismo desencarnado e o
ativismo desespiritualizado, são os frutos mais maduros daquele cristianismo burguês,
que tanto prejuízo levou ao seio da vida cristã. Neste sentido, as páginas do último
Mounier são em linhas seja com a prosa radical de Péguy, ou a crítica ferrenha que o
grupo de “Esprit” lançava no início dos anos Trinta contra aquela que o mesmo grupo
chamava de: “Desordem estabelecida29.
Foi nestas páginas memoráveis de “Esprit”, que o primeiro Mounier traçava as linhas
características da figura do Burguês, sinônimo de espiritualismo vazio e
desencarnado. O Burguês é o homem que perdeu o sentido do ser, perdeu o sentido
amor. O Burguês não acredita em nada: nem nos homens nem nos eventos e, menos
ainda, em Deus. O valor central do Burguês é a ordem e, ordem para ele, quer dizer
tranqüilidade. O Burguês é um homem respeitoso e metódico e, tendo perdido o
sentido do ser aponta todas as próprias forças no ter30. Toda esta tranqüilidade,
moderação, todo este esforço no ter, mais do que no ser, na análise de Mounier aponta
para os falsos valores modernos, que se infiltraram no cristianismo e que, por isso
mesmo, é preciso desmascarar.
O resultado mais profundo do desmascaramento dos falsos valores burgueses, é que
não existe uma história profana e uma história sagrada- separação tipicamente
moderna, como teria afirmado Péguy- mas uma história, aquela da humanidade
rumo ao Reino de Deus.
O crente deve tomar consciência de ser um cidadão da terra e, se quiser imitar
plenamente o Cristo deve, com ele, assumir plenamente os deveres e as tarefas dessa
cidadania, e não apenas medir a grandeza de Deus sobre a pequenez do mundo31.
O cristão é, então, homem entre os homens. A percepção desta temporalidade, da
vocação terrena e ao mesmo tempo humana, não deve levar o cristão a esquecer o
sentido do próprio caminho. De fato, o cristianismo é um povo em caminho rumo ao
27 E’ significativo observar como a reflexão mounieriana anticipa não apenas as ideias que encontraremos nos
documentos do Concilio Vaticano II, em modo especial a Gaudium et spes, mas também chama atenção a
impressionante sintonia com as intuições do teologo alemão Dietrich Bonhoeffer. De fato, nos anos em que ficou preso,
Bonhoeffer ipotizava a necesidade de um cristianismo mai maduro para que o homem aprenda a viver com se Deus não
existisse, assumindo a responsabilidade da propria vida. Cf. Resistenza e resa, Queriniana, Brescia 2000.
28 Cristianità nella storia, cit. p. 94.
29 Cf em modo especial o numero 6 que apareceu em março do 1933 com o seguinte titulo: “Rupture entre l’ordre
chrétien et le desordre étabili”, com artigos do mesmo Mounier, Maritain, Berdiaeff, Denis de Rougemont.
30 Clarissima, nesta reflexão a influencia di Gabriel Marcel, que aliàs fazia parte do grupo “Esrit”. Cf em modo especial
G. Marcel,Le mystèr de l’etre, Aubier, Paris 1952.
31 Cristianesimo nella storia, cit. p. 132.
9
cumprimento definitivo. O cristianismo era escatológico poucos anos depois de
Cristo, da mesma maneira que o é hoje. Esta tensão escatológica é possível somente
se o cristão tiver a humildade de recolher-se e de mergulha-se nas tradições e na vida
da Igreja, “pra não ser um meio cristão, mais do que um meio homem”32.
Esta dialética de temporal e espiritual deverá constantemente marcar a vida da Igreja,
o caminho do povo de Deus Assim, a vida da Igreja depararà continuamente entre
dois movimentos: o movimento de inserção no temporal, onde ela perguntará para as
estruturas temporais o máximo para poder subsistir, e o movimento de redobramento
do temporal, onde pedirá o mínimo para as estruturas temporais para subsistir além
delas. Tempo forte e tempo fraco da encarnação, tempo fraco e tempo forte da
transcendência. “Saímos de uma fase para entrarmos numa outra33.
É vivendo intensamente a própria humanidade na fidelidade à terra e à história, que o
cristão assume o espírito encarnado. O espírito do Cristo encarnado na história leva os
cristãos não fora do tempo ou da cidade, mas plenamente inseridos nas estruturas do
mundo.
Uma paróquia, uma comunidade, um movimento aonde a ação temporal seja sinal do
transcendente presente na história: deve ser esta a nossa constante preocupação.
Somente uma espiritualidade atenta a pessoa, a valorizar a pessoa nas suas múltiplas
dimensões pode ajudar a ação pastoral a não cair no ativismo extremo, no
espiritualismo desencarnado. Como realizar uma pastoral que seja ao mesmo tempo
fiel a terra e a história e, ao mesmo tempo expressão da busca de transcendência? Em
outras palavras, como manter unidas a dimensão espiritual e temporal na mesma ação
pastoral?
O equilíbrio na vida pastoral se consegue na constante referência à espiritualidade
encarnada, cujo exemplo encontra-se em Jesus. Se, de fato, os atos históricos de Jesus
eram manifestações da presença misteriosa de Deus na sua carne, isso se deve ao seu
ser repleto do amor de Deus, recheado de Espírito, na busca constante de realizar a
vontade do Pai. Em Jesus a oração não era fuga da realidade porque buscava o Pai
para entender como realizar o seu projeto na história. Por isso quando Jesus cuidava
de doentes e pobres, não expressava um interesse social, mas manifestava a
misericórdia gratuita de Deus. Em Jesus, Deus não é uma palavra vazia, sem sentido,
sem presa na historia. Pelo contrario, na ação histórica de Jesus é bem visível na sua
mesma carne e nos seus gestos, o amor misericordioso do Pai.
O nosso problema é entender como vivermos uma espiritualidade que não seja ou
fuga da realidade ou desejo de se substituir a Deus.
4. O “Engajamento”
O sentimento profundo que Mounier tinha do valor da Encarnação na realização do
cristianismo, o levou a elaborar uma categoria que perpassará toda a sua obra: o
empenho. Quem estiver consciente do Mistério da Encarnação, de Deus que se fez
32 Cristianesimo nella storia, cit. p. 137
33 Ibidem.
10
carne e veio morar no meio da humanidade, não pode ficar de braços cruzados. É este
o princípio inspirados da idéia de engajamento”, que se encontra na obra
mounieriana. Se, porém, é verdade que ninguém pode se abster do empenho, é
também verdade que se abre nessa altura um grande problema: como realizar este
empenho quando se acredita em valores absolutos? Talvez, não seria melhor
“atender, para agir, objetivos perfeitos e meios irrepreensíveis?34”.
Perante esta objeção Mounier lembra que o Absoluto não é deste mundo e que,
consequentemente, nos empenhamos sempre em lutas discutíveis, por objetivos
imperfeitos. Para se empenhar é necessário, então, tolerar as impurezas, os atrasos e,
sobretudo, não ter medo de sujar as mãos, mas conservar uma fidelidade absoluta com
os valores nos quais acreditamos. É preciso manter sempre presente a realidade do
dinamismo dialético entre os valores absolutos e a inserção destes, no mundo que é
finito e relativo. Desta forma, o empenho nasce da fecunda tensão que ele suscita
entre imperfeição da causa e a absoluta fidelidade aos valores envolvidos35.
Frisando esta mesma idéia, num escrito de 1949, Mounier lembrava que, quando
Cristo falou: O meu reino não é deste mundo”, não disse que nós não somos deste
mundo, mas que “a sua mensagem, não era diretamente destinada para a feliz
arrumação deste mundo36.
É por isso que, para uma ação que visa encarnar os valores espirituais, as pessoas
devem aprender a trabalhar com as dificuldades da hora, com as limitações que a
condição humana leva consigo. Precisamos, por isso, “fazer propriamente o nosso
trabalho de homens como todos os homens37.
Encontramos nestas palavras as linhas fundamentais da reflexão que o mesmo
Mounier tinha esboçado no inverno de 1943, enquanto estava preso por causa da
segunda guerra mundial, naquele pequeno livro memorável que foi: O afrontement
chretién38. Nestas páginas, nas quais Mounier tentava um diálogo imaginário com
Nietzsche, saiu uma dura crítica a toda forma de cristianismo que se reduz a uma vida
burguesa, fechada em si mesma, sem élan e sem força. Neste sentido, para Mounier
permanecem válidas as acusações que Nietzsche dirigia para o cristianismo,
afirmando que se tratava de um sistema de segurança para viver amparados dos
perigos da vida.
Quem passa a juventude a frear e a recusar não consegue propor à vida outra coisa
que não seja gestos de negação e de fechamento39.
As técnicas de ascese não devem produzir uma domesticação do homem, mas a sua
transfiguração. Mounier quer resgatar um cristianismo de virtudes fortes, de homens
corajosos como São Paulo e os primeiros cristãos que, para anunciar o Evangelho,
enfrentaram perigos, as ondas do mar, sem medo de morrer.
34 Cristianesimo nella storia, cit. p. 158.
35 Ibidem.
36 Trata-se de Fue la chrétienté, que se encontra na mesma obra que estamos citando: Cristianesimo nella storia, cit. p.
174.
37 Ibidem.
38 Publicado pela primeira vez no 1945, apareceu sucesivamente na tradução italiana com o seguinte titulo:
L’affrontamento cristiano, LEF, Firenze 1951 e republicado pela Ecumenica, Bari 1987.
39 Ibidem, p. 27
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Quanto mais uma vida é pessoal, no sentido mais elevado, tanto mais a morte física
perde aos seus olhos importância e capacidade de incutir medo; quanto mais uma
individualidade é preocupada em si, tanto mais a derrota se aproxima...”40.
Não fazer do cristianismo uma idéia que se conversa tranquilamente no sofá: é contra
isso que Mounier combate. Por isso é necessário retomar uma educação cristã que
mostre que o cristianismo não é a religião dos covardes e medrosos que, em nome de
um espiritualismo desencarnado, se esconde num espiritualismo ridículo, fora da vida,
cultivando um gosto de submissão que, longe de expressar um relacionamento
maduro com Deus, presta ao lado para a pior forma de covardia.
Homens que tem medo de pular: eis o que nos tornamos homens educados a
desconfiar do salto. Todos passam enquanto nós restamos parados na beira do
abismo do futuro. Como aprender novamente a ter coragem de pular?”41.
Por isso Mounier repropõe o valor da força, valor retoamdo costantemente ao longo
da sua reflexão politica.
Os covardes e os medrosos tentam de mostrar como, em nome do espírito, a
agressividade é sempre um mal. Mounier sustenta que a agressividade é um instinto e
não existem instintos negativos, mas somente negativos usos do instinto. De fato, a
iniciativa e a coragem moral precisam sempre de um empurrão.
“quem nunca sentiu o sangue ferver, não conhece a paz cristã. Quem nunca desejou
se bater por aquilo que ama, ama só a metade:”42.
Mais uma vez o equilíbrio dialético que Mounier propõe no agir cristão, não é a
negação dos impulsos opostos, mas a transfiguração deles.
Acompanhar as pessoas nas nossas comunidades, para que se tornem capaz de não
recuar perante os inevitáveis fracassos da vida e aprender a caminhar nas imperfeições
dos meios a disposição, é sem duvida alguma um grande desafio.
A filosofia personalista de Mounier estimula, também, para aprender o caminho de
um cristianismo mais corajoso, mais pronto a enfrentar com determinação a luta com
o mundo da injustiça. Se for verdade que o cristão deve viver neste mundo de lobos
como um cordeiro, da mesma forma que Jesus viveu, é também verdade que este
estilo de “cordeiro” exige força e firmeza. Agüentar o pressionamento do mundo que
não quer que a comunidade cristã denuncie a injustiça social, não seja profética e
fique calada e omissa, exige muita força espiritual. Somente cristãos que na luta do
dia a dia enxergam a presença misteriosa de Deus, conseguem a permanecer firmes
para nunca desistir.
40 L’affrontamento cristiano, cit. p. 32.
41 Ibidem.
42 Ibidem, p. 57.
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