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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas concretas 10.5102/uri.v9i1.1360

Authors:
Seria o Mercosul reversível?
Especulações teóricas sobre trajetórias
alternativas concretas*
Paulo Roberto de Almeida1
Resumo
Discussão dos problemas que afetam o funcionamento do Mercosul, in-
capaz de realizar seu objetivo maior de converter-se em um mercado comum e
sequer em uma união aduaneira acabada. O foco principal dos problemas do Mer-
cosul não está exatamente em sua arquitetura funcional, mas na inadimplência dos
Países-membros em relação às suas obrigações. Exame das propostas de reforma
ou de reversão a etapas mais exíveis de integração, com liberdade concedida aos
Países-membros de negociarem acordos extrabloco.
Palavras-chave: Mercosul. Zona de Livre Comércio. União aduaneira. Impasses.
Reversão.
1 Colocando o problema: reversão ou reforma?
A pergunta do título pode parecer diplomaticamente inconveniente, mas
a hipótese merece ser explorada, pelo menos teoricamente, em um exercício es-
peculativo de caráter acadêmico como este. Se a especulação teórica é, no plano
das ideias, pertinente, mesmo se qualquer projeto concreto nesse sentido seja, no
momento presente, diplomaticamente inexequível, cabe prosseguir segundo as re-
gras aplicáveis ao caso, quais sejam: a) formulando questões relevantes; b) testando
hipóteses alternativas; e c) oferecendo a devida fundamentação doutrinal ou empí-
* Recebido em 28.02.11.
Aprovado em 29.03.11.
1 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, mestre em Planejamento
Econômico pela Universidade de Antuérpia, diplomata, professor de Economia Política
nos programas de Mestrado e Doutorado do UniCEUB. Site: www.pralmeida.org; E-mail:
pralmeida@me.com.
DOI: 10.5102/uri.v9i1.1360
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rica a cada um dos argumentos levantados como forma de testar a exequibilidade
prática da pergunta do título. A pergunta, diga-se de passagem, poderia também
ser assim formulada: pode-se reformar o Mercosul?
A primeira questão, implícita a qualquer decisão estratégica de relevante
escopo nacional, seria esta: por que se deveria voltar atrás, ou anular um projeto
justamente classicado como estratégico pelo Brasil – e supostamente pelos de-
mais países membros também – ou, pelo menos, pelos dois grandes do bloco, que
iniciaram o processo em 1986, o que levou, ainda que sob modalidades diferentes
da adotada no início, ao esquema quadrilateral formalizado em 1991? Ou seja, por
que desfazer o que foi feito?
Uma resposta também óbvia à questão do porquê poderia ser esta: todo e
qualquer projeto nacional, por mais relevante que possa ser, deve ser avaliado não
exatamente em função de um ideal teórico, mas em função de objetivos pré-esta-
belecidos e de uma análise retrospectiva quanto ao atingimento desses objetivos
em função de uma avaliação realista que se possa fazer do itinerário cumprido até
esse momento de revisão. Examinando a questão em termos concretos, a realidade
é esta: por mais relevante que possa ser a integração com sócios de um projeto
comum, do ponto de vista das economias de escala entre países contíguos, por
exemplo, ela não pode ser considerada, a priori, como um m em si mesma, mas
apenas como um meio, ou um instrumento para a consecução de outros objetivos
ainda mais relevantes na escala nacional de prioridades. Essas outras metas po-
dem ser estas: o crescimento econômico (condição essencial, mas certamente não
suciente para o processo de desenvolvimento); economias de escala e integração
à economia mundial; ganhos de produtividade e progressos na competitividade
externa dos agentes econômicos diretos. Em resumo, aquilo que os economistas
chamam de maximização do bem-estar social.
Se a integração atingiu esses objetivos teóricos – e outros, mais práticos,
xados pelos líderes políticos, como a busca de prestígio internacional, o reforço
na capacidade de barganha negociadora externa, a consolidação da estabilidade
econômica no plano interno e vários outros mais – ou se ela cumpriu as funções
que lhe foram assignadas no preâmbulo de seu instrumento constitutivo, então
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ela é bem-vinda, deve ser valorizada e continuar sua trajetória de “sucesso. Caso
contrário, podem-se considerar as hipóteses de sua revisão, da necessidade de mu-
danças institucionais ou até retroversão, como considerado neste exercício.
Metodologicamente, podem ser estabelecidas as seguintes questões como
elementos balizadores deste exercício analítico e especulativo: por que, e como
operar essa revisão nos fundamentos daquilo que é considerado um “projeto es-
tratégico” pelos governos dos Estados-membros? Deve-se fazê-lo a partir de uma
leitura estrita do Tratado de Assunção, ou de uma leitura política de seu processo
de implementação, considerando-se seus sucessos e fracassos? Como conduzir o
processo diplomático implícito a eventual materialização das hipóteses aqui levan-
tadas? Do que dependeria ele? O que fazer com o chamado “patrimônio histórico
da integração no Cone Sul, mais comumente conhecido, na terminologia europeia,
como acquis communautaire? O que fazer, por m, em caso de inércia política ou
de descaminhos num processo de revisão que aparece cada vez mais necessário?
2 Enfrentando o problema das razões da reversão ou mudança
Pode ou deve o Mercosul ser revertido ou transformado em outra coisa
do que está estipulado no Tratado de Assunção? Respondo de imediato à questão
colocada e, com base em elementos puramente objetivos, ouso responder que sim,
por dois motivos aparentemente contraditórios: o Mercosul poderia ser involunta-
riamente revertido por uma grave crise econômica que impactasse sua arquitetura
institucional, fazendo com que os países não apenas descumprissem seus compro-
missos básicos, mas que também decidissem se eximir de corrigir suas políticas
e práticas que causam distorções estruturais na sua forma de atuação e funciona-
mento. Mas ele também poderia ser, ainda que hipoteticamente, da mesma forma,
revertido por uma decisão voluntária de qualquer um dos países membros – ou
pelo menos dos dois mais importantes – ao se constatar a incapacidade adminis-
trativa e a falta de vontade política de continuar com o processo de construção de
um mercado comum (assumindo-se aqui a perspectiva otimista de que este seja
ainda o objetivo desejado por eles, quando se sabe que tampouco a união aduanei-
ra vem sendo garantida de fato).
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Em outros termos, tanto por impacto externo, quanto por decisão inter-
na, o Mercosul poderia perfeitamente ser revertido a um simples processo de
cooperação, com preservação da liberalização comercial, aproximando-o de uma
zona de livre comércio embrionária. Não cabe esconder o fato que esse caminho
representaria um desastre político e diplomático, um reconhecimento de um fra-
casso completo no processo de integração que vem sendo gerido, com altos e
baixos, desde meados dos anos 1980. Mas a história dicilmente coloca opções
tão dicotômicas quanto as oferecidas de modo muito elementar no parágrafo
acima, o que nos leva a descartar, no momento, esse triste desenlace para come-
çar a considerar a evolução passada e as perspectivas futuras do Mercosul, com
base em uma avaliação sincera e mais realista possível de suas possibilidades de
desenvolvimento continuado. Esse exame será feito por meio de uma aborda-
gem crítica das limitações econômicas existentes no processo de integração sub-
-regional e levando em consideração, segundo uma visão tanto quanto possível
objetiva, os custos colocados pelo Mercosul aos Países-membros (e não apenas,
como costuma ocorrer nas análises desse processo, os benefícios potenciais que
se espera dele retirar, com base em uma leitura otimista, ou talvez ingênua, de
suas realizações).
Gostaria de deixar claro de imediato que não sou partidário do desmante-
lamento do Mercosul, tendo já classicado essa possibilidade de desastre político
e diplomático. Aliás, não creio que ela tenha a mínima chance de ocorrer, uma vez
que as lideranças políticas dos países parecem estar sucientemente comprometi-
das com a continuidade da existência do Mercosul para provocar seu desapareci-
mento por “morte matada” (ainda que essas lideranças façam de tudo para inviabi-
lizar seus progressos práticos). Mas no plano puramente acadêmico – como em um
exercício de contrafactualismo –, não se pode descartar a hipótese do retrocesso
institucional – externamente induzido, ou conduzido de modo deliberado a partir
de dentro, não importa no momento – ou a da reversão à cooperação econômica
em bases bilaterais, já que a nalidade deste ensaio é justamente a de testar hipóte-
ses e analisar custos e benefícios do processo. Nesse caso, o Mercosul estaria desa-
parecendo por “morte morrida”, ou seja, por incapacidade das mesmas lideranças
em adotar os procedimentos nacionais de adaptação e de revisão de suas políticas
setoriais e macroeconômicas que pudessem apontar no sentido da convergência
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progressiva dos mecanismos e ferramentas mobilizados para construir o – até aqui
distante – projeto de mercado comum.
De toda forma, não existe projeto humano, ou social, que seja totalmente
irreversível, ainda que alguns acreditem na echa do tempo também para decisões
puramente políticas ou para construções econômicas. Obviamente, não se pode
voltar atrás no que se refere às consequências de determinadas ações; mas os ho-
mens e os grupos sociais são sucientemente inteligentes para “construírem” novas
soluções que corrijam, pelo menos em parte, resultados indesejáveis ou indeseja-
dos de ações passadas. Estaria o Mercosul nesse caso?
3 Construindo o Mercosul: uma estrutura denitiva?
De onde veio o Mercosul? De um projeto puramente político, mas com
intenções claramente econômicas de integração bilateral: a Ata para a Integra-
ção Brasil-Argentina, de 1986, estabelecendo, segundo modalidades baseadas na
complementação industrial, o Programa de Integração e Cooperação Econômica
(PICE), de caráter gradual, exível e equilibrado, e prevendo tratamentos preferen-
ciais frente a terceiros mercados. No seu âmbito, foram assinadas duas dúzias de
protocolos setoriais para a integração progressiva de diversos ramos da indústria
e da agricultura dos dois países, assim como foram assinados, também, bilateral-
mente, acordos de cooperação em outras áreas (como a nuclear, por exemplo).
Edicando sobre o que parecia ser uma metodologia eciente, em 1988 foi
adotado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre Brasil e
Argentina, com o objetivo de consolidar o processo de integração bilateral e insti-
tuir, em uma primeira etapa, um espaço econômico comum no prazo máximo de
dez anos. Estavam previstas a harmonização das políticas aduaneiras, comercial,
agrícola, industrial e de transportes e comunicações, assim como a coordenação
de políticas monetária, scal e cambial. Em uma segunda etapa, proceder-se-ia à
harmonização gradual das demais políticas necessárias à formação do mercado
comum. Ou seja, já se tratava do Mercosul em construção, a caminho de sua (apa-
rente) irreversibilidade. Registre-se, contudo, o caráter dirigista, quase mercanti-
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lista, dos processos e instrumentos adotados para construir nessa etapa o mercado
comum bilateral.
Se tudo marchasse conforme o previsto pelos arquitetos originais do projeto
de integração bilateral, o mercado comum brasileiro-argentino deveria ter início
em 1998, supondo-se que os protocolos setoriais de complementação econômica e
a liberalização comercial tivessem avançado de maneira satisfatória sem nenhuma
resistência de setores pouco competitivos em um e em outro país, e que o modelo
dirigista e intervencionista concebido por aqueles arquitetos seria efetivamente o
mais eciente para construir um espaço econômico integrado que deveria atuar
em bases de mercado, não necessariamente por meio de uxos e transações gover-
namentais. Essas dúvidas não puderam (e nunca poderão) ser respondidas, dado
que esse processo bilateral e administrado – bem mais mercantilista do que pro-
priamente livre-cambista – foi interrompido e substituído, em meados de 1990,
por outro modelo de integração no qual, mecanismos e prazos (ainda que não
suas modalidades institucionais) foram profundamente modicados em relação
ao protótipo original.
As razões foram basicamente políticas: duas novas administrações – o pre-
sidente Carlos Saul Menem, na Argentina, o presidente Fernando Collor, no Brasil
– tomaram posse e passaram a introduzir profundas mudanças, ditas neoliberais,
nas políticas econômicas dos dois países e, consequentemente, em suas políticas
setoriais, como a comercial e a industrial. No que se refere especicamente ao pro-
cesso de integração bilateral, este abandonou a versão exível, gradualista e setorial
– ou seja, dirigida e administrada pelos governos – que exibia até então, em favor
de um ritmo e uma amplitude bem mais abrangentes e acelerados do que o talvez
desejado pelos ramos e setores, apresentando problemas de competitividade e cer-
ta sensibilidade à abertura generalizada. A nova estrutura, prevendo uma redução
dos prazos à metade do originalmente previsto e uma cobertura total do universo
tarifário (em lugar da abordagem por protocolos setoriais, como previsto nos me-
canismos em vigor), foi consolidada na chamada Ata de Buenos Aires, assinada
em julho de 1990 pelos dois novos presidentes e registrada pouco depois na Aladi
como Acordo de Complementação Econômica no 14 (ACE-14). A ela reagiriam,
imediatamente, os países vizinhos, sobretudo os dois menores, cuja interface de
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comércio com os dois maiores era, como sempre foi, muito importante em suas
relações econômicas regionais.
Como resultado dessas consultas realizadas no segundo semestre de 1990
e início do ano seguinte, com a participação inclusive do Chile – que, no entanto,
não aderiu ao novo esquema por diferenças insanáveis entre as estruturas alfan-
degárias – chegou-se ao Tratado de Assunção (TA), assinado em 26 de março de
1991. Os que se deram ao trabalho de comparar os dois instrumentos, o ACE-14
e o TA, constataram que o segundo é praticamente uma cópia quadrilateraliza-
da daquele primeiro instrumento bilateral, preservando-se com alguns ajustes, os
mesmos mecanismos de desgravação tarifária e as mesmas instituições. O mais re-
levante, porém, seria estabelecer desde já os objetivos do TA, e de todo o processo
de integração, com vistas a prosseguir na discussão empreendida sobre o destino
do Mercosul.
A primeira característica do TA é a de que, diferentemente de outros trata-
dos constitutivos de um mercado comum – como, por exemplo, o tratado de Roma
de 1957, que instituiu a Comunidade Econômica Europeia, cuja peça central era o
mercado comum de bens, serviços e fatores produtivos – esse instrumento jurídico
fundacional do Mercosul é um simples acordo-quadro. Com efeito, o TA não é o
tratado do Mercado Comum do Sul, mas como seu nome indica, um tratado para
a constituição de um mercado comum entre os quatro países membros, sendo ex-
plicitamente transitório e praticamente desprovido de mecanismos compulsórios
como seu contraparte europeu. Para ser preciso, os dois únicos dispositivos autoa-
plicáveis, denidos nos artigos 1o e 18o, referiam-se, por um lado, à implementação
da liberalização comercial entre os sócios – objeto do Anexo I que descrevia a
modalidade a ser aplicada para a desgravação automática de tarifas – e, por ou-
tro, à convocação de uma conferência diplomática para “determinar a estrutura
institucional denitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum. Todos
os demais artigos, inclusive o primeiro, voltados para os componentes do futuro
“mercado comum” não deniam mecanismos de implementação ou modalidades
de entrada em vigor, com o que o projeto mercado comum cava dependente de
algumas poucas medidas descritas de modo genérico: estabelecimento de uma ta-
rifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum; coordenação de
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políticas macroeconômicas e setoriais; e harmonização de legislações nos setores
pertinentes.
Cabe, com efeito, sublinhar essas características do TA (e do POP) que di-
cultam o atingimento ou a consecução dos objetivos xados, à falta de meca-
nismos, competências e prazos que denam precisamente o que vai ser feito, por
quem, e quando. O contraste com o modelo europeu é obviamente agrante. O
artigo 23 do Tratado de Roma (revisto) estipula, por exemplo, que a “Comunidade
é fundada sob uma união aduaneira que se estende ao conjunto dos intercâmbios
de mercadorias e que implica a proibição, entre os Estados-membros, de direitos
alfandegários na importação e exportação e de todas as taxas com efeito equivalen-
te, bem como a adoção de uma tarifa alfandegária comum em suas relações com
terceiros países”. Consequentemente, o capítulo sobre a união alfandegária (aliás, o
primeiro) estipula em seu artigo 25 que “os direitos alfandegários na importação e
na exportação ou as taxas com efeitos equivalentes, são proibidos entre os Estados-
-membros. Esta proibição se aplica igualmente aos direitos alfandegários de caráter
scal”. O artigo 26, por sua vez, diz que os direitos alfandegários – ou seja, as tarifas
de comércio exterior – são xadas pelo Conselho, decidindo por maioria quali-
cada, sob proposta da Comissão. Não é preciso dizer que todos esses dispositivos
são controlados em diversas instâncias comunitárias, e os países membros que, por
acaso, derroguem a essas obrigações, podem ser sancionados, inclusive pecunia-
riamente, pelo Tribunal de Justiça Europeu. Nada disso existe no Mercosul, a não
ser como predomínio da vontade sobre as realidades.
O Protocolo de Ouro Preto (POP) que, supostamente, conrmou os meca-
nismos e instituições do TA – criando, ademais do Conselho e do Grupo Mercado
Comum que já existiam no esquema bilateral, uma Comissão de Comércio – não
inovou em praticamente nada no plano substantivo, contentando-se em armar,
em seu artigo 34 que o Mercosul “[...] terá personalidade jurídica de Direito In-
ternacional”. Não se sabe exatamente as implicações dessa caracterização, uma vez
que o bloco não é dotado de vontade própria, tendo sido conrmada sua estrutura
institucional de natureza intergovernamental, que já era a do esquema bilateral
Brasil-Argentina e que foi preservada no sistema quadrilateral. Também foram
preservados desvios “pontuais” ou admitidas várias “exceções” – nacionais, subli-
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nhe-se enfaticamente – que deveriam ter sido eliminadas paulatinamente em um
julgamento otimista quanto à convergência imaginada nos primeiros tempos de
“institucionalização.
Independentemente dessa estabilização institucional – ou da preferência
por um processo estritamente controlado pelos governos dos Estados-membros
e não dotado de ferramentas autônomas ou “desnacionalizadas” como no modelo
europeu – é um fato que o processo de integração conheceu notável dinamismo
em sua primeira década, tanto no que se refere ao crescimento dos uxos e in-
tercâmbios recíprocos, como no plano dos instrumentos acessórios – tratados e
protocolos setoriais – negociados e implementados com vistas a cumprir o objetivo
da abertura e da harmonização legal entre os países. O comércio recíproco cresceu
signicativamente, tanto para dentro como para fora do bloco – em parte, respon-
dendo a processos nacionais de abertura econômica e de liberalização comercial,
mas também ao impulso dado por uma tarifa que, na média, teve alíquotas sensi-
velmente reduzidas. As interações de todo tipo entre as economias nacionais assu-
miram grande importância para os agentes econômicos e para os governos de cada
um dos Estados-membros. No caso dos dois pequenos, a alta participação dos dois
grandes em suas economias foi consolidada; no caso da Argentina, o Brasil passou
a ocupar a primeira posição no intercâmbio comercial externo a ponto de chegar
a falar, no nal da década, de um “Brasil dependência”. Para o Brasil, a despeito
da maior diversicação de parceiros externos, o peso do Mercosul cresceu em seu
comércio exterior, alcançando mais de 17% do total (sendo a maior parte com a
Argentina, obviamente), em 1998 para um volume em torno de 4% ao início do
processo.
4 Deslindando as razões da crise do Mercosul: insuciências
institucionais?
A “estrutura institucional denitiva” do Mercosul, tal como estabelecida no
POP e apenas complementada aqui e ali por alguns instrumentos secundários –
sistema de solução de controvérsias, mas sem tribunal arbitral pleno – e alguns
poucos mecanismos de coordenação ou de cooperação setorial (em especial na
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área jurídica), não foi capaz de lidar com pressões sistêmicas ou crises estruturais.
Muitas serão as razões da crise séria atravessada pelo Mercosul a partir de 1999, da
qual ele não parece ter se redimido desde então, mesmo se os volumes de comércio
– depois de terem sido reduzidos à metade com a crise da desvalorização brasileira,
em 1999, e a crise terminal do sistema de conversibilidade monetária na Argentina,
entre 2000 e 2001 – conheceram uma retomada desde meados da primeira década
de 2000 e passaram a novos patamares desde então.
Podem ser apontados fatores conjunturais de origem nacional – como
abalos nos processos de estabilização respectivos do Brasil e da Argentina, que
também impactaram os menores – e também elementos de natureza sistêmica ou
estrutural, derivados da própria insuciência do Mercosul, enquanto arquitetura
disciplinadora” das principais políticas econômicas nacionais, macroeconômicas
e setoriais, como responsáveis pelos sérios abalos enfrentados pelo bloco desde o
nal de sua primeira década. Um diagnóstico preciso das razões da crise – tanto
as temporárias, ou conjunturais, como as de fundo, ou estruturais – é importante
justamente para poder justicar todo o argumento deste ensaio especulativo, qual
seja: o de saber se o Mercosul deve continuar a ser “construído”, segundo as mes-
mas bases institucionais seguidas até aqui, ou se ele deve ser repensado, revisto e
eventualmente recongurado, numa versão talvez menos ambiciosa do que aquela
denida pelos TA e POP.
Permito-me afastar, desde logo, razões frequentemente apontadas por crí-
ticos externos – geralmente “juristas de academia” ou sociólogos universitários –
como estando na origem dessa crise que seriam, segundo esses observadores, as
“insuciências institucionais” ou o “décit democrático” no bloco. Quem assim
argumenta defende obviamente a ideia de que o Mercosul está em crise por ter pre-
servado sua natureza intergovernamental, em lugar de ter avançado, no momento
apropriado – em Ouro Preto, ou posteriormente –, para uma estrutura de tipo
comunitária com instituições supranacionais que seriam supostamente capazes de
disciplinar os países membros no cumprimento de seus “deveres integracionistas”.
Outra linha de argumentos, que reputo igualmente falsos – e, no entanto defendida
inclusive por responsáveis políticos do próprio bloco –, imputa a “assimetrias es-
truturais” entre os países membros, ou seja, desníveis socioeconômicos entre eles,
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a razão dos problemas na construção do Mercosul, preconizando a partir daí, um
“nivelamento de terreno” para que possa avançar, supostamente “harmoniosamen-
te”, em direção dos objetivos xados em 1991.
Não creio, por um lado, que as supostas razões institucionais estejam na
origem da crise atual – e dos retrocessos práticos – do Mercosul, pela simples ra-
zão de que a estrutura institucional oferece um quadro jurídico suciente para a
realização dos objetivos de fato colocados no horizonte de realizações do bloco,
que seriam uma zona de livre comércio mais ou menos completa e uma união
aduaneira funcional e respondendo aos requerimentos desse conceito (política co-
mercial comum e uma tarifa completa harmonicamente aplicada). Ou seja, mesmo
deixado de lado no momento, o objetivo que pode ter sido como algo utópico do
“mercado comum” – no sentido não em que ele seja irrealizável, mas a partir da
simples constatação da pequena densidade de interdependência recíproca – ainda
assim, confrontamo-nos com a insuciência das duas primeiras etapas do processo
integrador. Sua não consecução plena se deve não a problemas institucionais – já
que os instrumentos existentes seriam teoricamente sucientes e adequados para
materializar o mercado comum – mas à incapacidade dos países membros, ou de
seus governos, de cumprir com as normas e decisões pactuadas conjuntamente nas
reuniões decisórias de cúpula.
Em resumo, os mecanismos em vigor seriam sucientes para atender às
metas xadas, caso os governos resolvessem empreender o caminho de uma real
abertura recíproca, o que implicaria, obviamente, em empreender reformas inter-
nas tendentes a uma efetiva compatibilização com os objetivos integracionistas.
Por outro lado, não se pode admitir que supostas “assimetrias estruturais”
estejam na origem das deciências ou insuciências do bloco, enquanto união
aduaneira, uma vez que assimetrias existem em todas e quaisquer relações de in-
terdependência que se possa conceber, tanto no plano puramente nacional (des-
níveis sociais e regionais, por exemplo) como na esfera externa ou internacional
(diferenciais de competitividade existentes entre os países e economias, derivados
de dotações diferentes de fatores, de políticas divergentes ou por quaisquer outros
motivos) e isso ,desde o começo do mundo, ou pelo menos desde que os povos e
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sociedades começaram a interagir em bases regulares e pacícas. Ou seja, essas
supostas “assimetrias” estão justamente na base das vantagens ricardianas, do co-
mércio entre as economias, dos investimentos externos e do progresso material dos
povos, uma vez que são elas que estimulam a interpenetração, as trocas, a interde-
pendência e a prosperidade comum.
Lutar “contra” assimetrias, supostas ou imaginadas, em sua maior parte, sig-
nica negar ou obstaculizar o benefício das trocas e da construção de “campeões
de produtividade” em cada um dos países, já que se tenta, por medidas governa-
mentais, inuir em poderosos mecanismos de mercado, cujo impacto efetivo nos
diferenciais de competitividade e nos padrões de trocas e de investimentos é sempre
superior aos parcos recursos que os governos possam mobilizar para esses esforços
de “contenção” dos desaos colocados inevitavelmente em face dos agentes econô-
micos, uma vez iniciado o processo de integração. Em última instância, esse esforço
de “corrigir assimetrias” se revela tão inútil, ou vão, quanto essas tentativas de lutar
contra os desaos da globalização, que estarão inevitavelmente presentes de uma
maneira ou de outra, direta ou indiretamente no radar econômico de todos os agen-
tes econômicos nacionais, independentemente de quão fechadas sejam as fronteiras.
Pode-se atribuir aos problemas econômicos criados por crises internas ou
externas – processos inacabados de estabilização, ou choques adversos vindos de
fatores que escapam ao controle dos decisores nacionais – uma parte das reticên-
cias em avançar no processo de integração por parte dos dirigentes políticos dos
países membros. Em outros termos, inversão repentina de competitividade de-
vido a bruscas alterações cambiais, crises de balanço de pagamentos geralmente
associados a grandes décits nas transações correntes, problemas scais agudos
provocados por desequilíbrios internos não previstos ou repentinos. Enm, esses
inúmeros problemas de gestão macroeconômica constituem fatores de atraso ou
de bloqueio que podem provocar paradas ou retrocessos nos ritmos de abertura
recíproca que deveriam ser implícitos aos processos de integração, ou seja, perma-
nentes e irreversíveis.
A crise no Mercosul foi frequentemente apontada como tendo sido causada
pela “desvalorização” brasileira de 1999 e seus efeitos desastrosos sobre a balança
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bilateral com a Argentina, o que é absolutamente insuciente como explicação
e, mais precisamente, falso. A Argentina já vinha acumulando desequilíbrios s-
cais, monetários e cambiais desde muito tempo, tendo sido justamente “ajudada
pela primeira fase de estabilização brasileira, quando o real conheceu tendências
à valorização relativa (deteriorando a própria balança comercial brasileira e pro-
duzindo, justamente, superávits a favor da Argentina). A “desvalorização” não foi
decidida “contra” a Argentina, uma vez que ela foi simplesmente imposta pela
realidade dos desequilíbrios acumulados (mais de forma aguda no Brasil, do que
de maneira sistêmica, como no caso argentino, um modelo de conversibilidade
baseado na chamada paridade absoluta com o dólar, que representava uma camisa
de força cambial).
A carência de análises, na esfera governamental, sobre as raízes profundas
dos desequilíbrios monetários, cambiais e de balanço de pagamentos existentes
tanto na Argentina quanto no Brasil, em 1999 e no seu seguimento imediato, assim
como certo voluntarismo por parte de dirigentes políticos, explica a atmosfera de
crise política do Mercosul” então criada – mais na Argentina do que no Brasil –
em torno da questão cambial e de seus reexos no ambiente negociador ao seio
do bloco, atmosfera que nunca chegou a ser recomposta no período subsequente,
tanto pelo aprofundamento desses desequilíbrios quanto por divergências objeti-
vas nas orientações de política econômica adotadas dali para frente, para não men-
cionar questões prosaicas, como o relacionamento entre chefes de Estado. Mesmo
a adoção de expedientes ad hoc para atuar como barreiras à propagação desse tipo
de “crise” – como, por exemplo, a criação de um grupo de trabalho sobre a coor-
denação de políticas macroeconômicas em 2000, mais virtual do que efetivo – não
permitiu retomar o processo de aprofundamento, ou de consolidação, do Mercosul
comercial, enveredando-se logo depois para subterfúgios políticos e o desenvolvi-
mento do que foi chamado de “Mercosul social”.
Não cabem dúvidas, porém, de que a passagem a um regime de utuação
cambial no Brasil – à falta de alternativas credíveis para sanar os desequilíbrios de
transações correntes acumulados nos quatro anos anteriores – constitui apenas um
episódio numa sucessão de descompassos efetivamente contrários aos objetivos
estipulados no artigo 1o do TA, de “coordenação de políticas macroeconômicas,
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cujo marco mais importante sempre foi a adoção pela Argentina de um regime de
paridade absoluta – ou seja, de rigidez em sua política cambial, sistema adotado
no mesmo momento em que se tratava de construir o Mercosul. Ora, a coordena-
ção cambial com a Argentina nessas condições implicava a adoção pelos demais
países membros do mesmo regime de conversibilidade ao par, o que signicava o
abandono de qualquer política cambial pelos Estados-Partes do bloco, ou seja, uma
não solução a um problema real. Infelizmente, os dois grandes não conseguiram
tampouco caminhar para esse tipo de coordenação quando, em 2001, a Argen-
tina abandonou formalmente o regime de conversibilidade para também adotar
um modelo de utuação (embora administrada num viés de desvalorização desde
então), ao passo que, no Brasil, depois de comportamentos erráticos no momento
das eleições de 2002, o câmbio seguia uma via de valorização gradual como tinha
sido o caso no período anterior à utuação (aliás, para maior conforto comercial
da Argentina, que continua temendo uma desvalorização brasileira capaz de lhe
retirar seu acesso privilegiado aos mercados do grande vizinho).
Em qualquer hipótese, não se pode atribuir a esses descompassos conjuntu-
rais nos ritmos ou processos de estabilização respectivos do Brasil e da Argentina
a causa principal da crise no processo de integração, uma vez que eles já se mani-
festavam desde o início do processo e não impediram, de modo absoluto, o cres-
cimento do comércio e o aprofundamento da integração nos primeiros oito anos
do processo. Se eles se manifestaram negativamente, depois, foi justamente porque
os governos foram tímidos nas reformas, demoraram demais em fazer reformas e
não prepararam seus países para as etapas seguintes, seja a da continuidade e apro-
fundamento da estabilização, seja a dos ajustes setoriais para acomodar a agenda
e os requerimentos do processo de integração, que representam uma espécie de
miniglobalização controlada (já que em grande medida administrada pelas buro-
cracias nacionais).
Em suma, rejeitando as supostas insuciências institucionais, as fantasma-
góricas assimetrias estruturais e os reais, mais os exagerados choques adversos ad-
vindos de crises conjunturais, tem-se que os fatores efetivos da crise no Mercosul
e os impedimentos objetivos para o seu progresso continuado são constituídos em
primeiro lugar, pela incapacidade ou indisposição dos governos em empreende-
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
rem as tarefas mínimas associadas ao próprio processo de integração; em segundo
lugar, pela falta de vontade ou de coragem política dos mesmos dirigentes em im-
plementar os acordos, normas e decisões adotadas nas reuniões de cúpula do blo-
co, depois de solenemente, ou de forma ingênua em alguns casos, terem decidido
avançar no processo por meio de medidas aceitas consensualmente; o que foi feito,
supostamente, depois de um cuidadoso exame técnico sobre seu custo-benefício,
ou seja, sobre os impactos e efeitos imediatos e delongados que tais medidas tra-
riam para suas economias.
Avultam, dentre as inadimplências constatadas, os processos delongados de
internalização das decisões adotadas solenemente pelo bloco – pois quase nada
é aplicado de maneira automática no Mercosul, sendo necessária cada uma das
aprovações nacionais e sua conrmação pela chancelaria paraguaia – e os descum-
primentos práticos, em grande medida ilegais, dos dispositivos, regulando o acesso
a mercados. Um dos anexos do TA, por exemplo, relativo à cláusula de salvaguarda,
indica que os Estados-Partes se comprometem a usar esse dispositivo só excep-
cionalmente, e, em todo caso, apenas até o nal do período de transição (31 de
dezembro de 1994).
Não é desconhecido por ninguém que, de forma abusiva e arbitrária, a Ar-
gentina contrariou seus compromissos sob o TA – e também desrespeitou o código
pertinente no âmbito do Gatt-OMC – ao passar a introduzir salvaguardas discrimi-
natórias contra produtos brasileiros de forma crescente a partir de 2003. A leniência
demonstrada pelo governo brasileiro em relação a essas medidas ilegais, alegada-
mente para acomodar os projetos argentinos de recuperação econômica e de rein-
dustrialização, em vez de reforçar o Mercosul, na verdade fragilizam seu arcabouço
institucional e enfraquecem a ecácia de suas normas mais relevantes. No regime
europeu de violações aos instrumentos fundacionais, o país que rompe compro-
missos e regras comuns (sobre acesso a mercados, por exemplo) pode ser sancio-
nado, inclusive pecuniariamente, pela corte de Justiça, recurso inexistente no caso
do Mercosul (ainda que se admita levar o caso à arbitragem não usada pelo Brasil).
Numa avaliação global, pode-se dizer que a distância entre a retórica da
integração, excessivamente usada pelos chefes de Estado, e a marcha efetiva do
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processo, em seus encaminhamentos práticos, tem sido no Mercosul e em outros
esquemas regionais, uma realidade constante desde que líderes políticos se conven-
ceram, ou foram convencidos por outros, de que o modelo integracionista – e não
simplesmente livre-cambista, geralmente privilegiados pelos anglo-saxões prag-
máticos – de cunho europeu era o mais adequado para impulsionar o desenvol-
vimento de seus países e a integração de suas economias no mainstream mundial.
Na raiz dessa incompreensão – ou ilusão – está o fato de que o processo europeu
foi de fato bem sucedido naquilo que ele pretendia atingir: o desarme “psicológico
e denitivo entre as duas maiores economias continentais e a realização formal e
institucional daquilo que já vinha ocorrendo naturalmente desde séculos; a inte-
gração física, econômica e social do mosaico europeu.
Poucos historiadores da Europa, ou de seu processo de integração se de-
dicaram ao estudo dos custos – implícitos e explícitos – da integração europeia,
preferindo enfatizar seus benefícios reais ou supostos (e eles, de fato foram mui-
tos, mas cabe aos analistas equilibrados sempre fazer um balanço completo do ex-
perimento). Da mesma forma, poucos analistas do Mercosul colocam ênfase nas
enormes diferenças entre os processos do Cone Sul e do continente europeu, tanto
pelo lado positivo – disparidade de grandes conitos geopolíticos entre os dois
grandes – quanto pelo lado “negativo, ou seja, inexistência de densidade suciente
nas interdependências recíprocas para fundar um processo real de criação de um
espaço econômico conjunto.
No caso do Mercosul, em especial, o mimetismo não foi levado ao ponto
alto de suas possibilidades teóricas – ou seja, um modelo reconhecidamente comu-
nitário ou supranacional –, mas, mesmo se julgarmos pelo outro modelo europeu
de integração em nível de união aduaneira, o Benelux (Bélgica, Países Baixos e
Luxemburgo, desde 1948), os resultados alcançados são decepcionantes, ou mes-
mo irrisórios pelos padrões de responsabilização – ou de accountability – pelos
quais devemos medir projetos verdadeiramente “estratégicos” e denidos como
tal por administrações sucessivas. O fato é que, sem ter alcançado seus objetivos
primários (uma zona de livre-comércio completa e uma união aduaneira acabada)
os países membros se deixam envolver em novos projetos mirabolantes – como
um Fundo de Correção de Assimetrias, um Parlamento completo, institutos para
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
diferentes causas sociais, e até um risível projeto de moeda comum – que repre-
sentam, na verdade, uma “fuga para frente” e um escapismo de natureza política à
sua incapacidade de realizar o prometido e de cumprir os requisitos mínimos dos
objetivos xados nos instrumentos constitutivos.
Como o objetivo deste ensaio especulativo não é o de alimentar maiores ilu-
sões sobre como e quando esses objetivos fundamentais serão ou não cumpridos, e
sim o de discutir alternativas realistas aos impasses atualmente existentes, caberia
agora discutir possíveis vias de revisão do arcabouço institucional e de suas impli-
cações político-diplomáticas, bem como econômicas, para dar início a um debate
que tem se pautado, geralmente, pelo amadorismo ou pelo setorialismo protecio-
nista. É o que veremos agora.
5 Modalidades de uma reversão no Mercosul: propostas teóricas,
efeitos práticos
Fala-se aqui em reversão, e não em reforma – ainda que a primeira implique
a segunda – porque não se concebe, realisticamente falando, o estabelecimento de
novos objetivos ambiciosos para o Mercosul, ou a xação de novos prazos rígidos
para a realização daquilo que não se conseguiu atingir nos primeiros vinte anos de
sua existência efetiva (ou seja, depois da passagem do processo bilateral ao qua-
drilateral). Em outros termos, ninguém parece imaginar que os países do bloco –
sobretudo se for efetivada a adesão prevista da Venezuela – possam caminhar rapi-
damente para a consecução do objetivo maior estabelecido no TA, a conformação
de um mercado comum, e menos ainda para metas ambiciosas como a unicação
monetária, levianamente cogitada por chefes de Estado e outros líderes políticos.
Parte-se, portanto, da ideia de que qualquer projeto razoável de recompo-
sição do Mercosul deveria considerar seriamente a hipótese de serem estabele-
cidos objetivos mais modestos e mais “alcançáveis”, para que os países membros
pudessem abandonar essa atmosfera de “administração de crises”, que parece ca-
racterizar os encontros políticos, a m de passar a dedicar-se seriamente ao que
seria importante no processo de integração: o crescimento do comércio, o apro-
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fundamento da interdependência e a consolidação dos processos respectivos de
estabilização econômica e de integração à economia mundial. Se é verdade que
o Mercosul deveria ser consolidado como espaço econômico integrado, talvez se
devesse considerar a hipótese de reformatação de seus mecanismos operacionais
naquilo que eles apresentam como divergências reais de funcionamento, no que
tudo aponta para o perl atual da TEC e sua própria existência enquanto base de
uma política comercial “comum”.
Se, em nível microeconômico, a liberalização comercial parece ter avançado
razoavelmente bem – garantindo uma espécie de “reserva de mercado” para muitas
empresas que de outra forma talvez tivessem diculdades para competir em esferas
mais vastas, mesmo que isso represente, justamente, um “desvio de comércio, que
se deveria evitar – e se, no plano institucional, os principais problemas do Merco-
sul encontram-se mesmo no respeito e na administração de sua união aduaneira
– inclusive porque é nesse nível que se manifestam as chamadas “assimetrias” de
competitividade – pode-se partir da suposição de que a reforma ou a “reversão” do
Mercosul deve atingir seus pontos nevrálgicos, ou seja, aquela parte da arquitetura
institucional que não logrou consolidação satisfatória no âmbito do bloco e que
parece obstaculizar outros progressos econômicos em direção de sua estabilidade
sistêmica. Em outros termos, a integração parece funcionar no plano microeco-
nômico – excetuando-se aqueles setores já objeto de restrições “históricas”, como
açúcar e automóveis, por exemplo, ou outros que eventualmente venham a cair
nos férreos círculos da defesa comercial e industrial argentina – mas parece fa-
lhar consideravelmente no plano macroeconômico, ainda que nenhum dirigente
ou chancelaria estejam dispostos a reconhecer tais fatos publicamente. O processo
do Mercosul apresenta, assim, uma face otimista, objeto de comunicados presiden-
ciais cuidadosamente elaborados, e uma face menos sorridente, quando se trata de
examinar os contenciosos comerciais e o “patrimônio histórico” de normas nunca
respeitadas. Cabe discutir se o edifício do Mercosul pode, ou não ser reformado.
A questão é claramente política, mas, para os ns deste ensaio, convém exa-
minar sua dimensão jurídica, ou doutrinal, assim como, numa projeção ulterior,
imaginar os aspectos diplomáticos envolvidos em qualquer processo de revisão de
uma realidade que está alcançando sua maioridade cronológica. Como esse exer-
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
cício é declaradamente especulativo, ele pode avançar sobre terrenos nos quais os
diplomatas e os responsáveis políticos teriam restrições notórias a se manifestarem
de modo claro. Não que se acredite, na prática, que o Mercosul será reformado ou
revisto num sentido “regressista, mas em um trabalho de tipo acadêmico, especu-
lações a respeito podem ser feitas.
O procedimento consiste, portanto, em revisar a letra e o espírito do TA
(e do POP, se for o caso) para depois fazer uma leitura política dos dispositivos
que regulam sua organização e funcionamento atuais, a m de lançar hipóteses
sobre algumas alternativas diplomaticamente possíveis e politicamente factíveis.
Não é possível aferir, antecipadamente, o impacto econômico exato de cada uma
das alternativas sobre a dinâmica econômica futura do Mercosul, ou seja, sobre
seu aprofundamento ou dispersão em relação a terceiros mercados ou com novos
parceiros, tendo em vista a insuciência de dados exatos sobre o volume de comér-
cio externo realizado ao abrigo estrito da TEC, e sobre as parcelas que se situam
fora dela, e que poderiam ser afetadas por qualquer mudança de situação even-
tualmente decorrente de alterações institucionais ou operacionais. Economistas,
abastecidos com os dados pertinentes, podem fazer simulações quanto a volumes e
distribuição de uxos futuros de comércio intra e extra Mercosul, previsivelmente
em expansão, o que está fora do alcance de um ensaio meramente especulativo
como este.
O TA não tem previsão explícita de reforma ou revisão, justamente porque
é um acordo estabelecido expressamente para o período de transição, entre sua
entrada em vigor em 31 de dezembro de 1994, antes da qual os países-membros
(ou Estados-Partes, como na redação ocial) deveriam convocar uma conferên-
cia diplomática para estabelecer as instituições permanentes. Mas o TA era (ou
é) explícito quanto ao cumprimento de seu objetivo central: “Os Estados-Partes
decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de
dezembro de 1994”. Curiosamente, o artigo 19 estabelece que o TA “ terá duração
indenida, mas seu artigo 21 aceita, como é de rigor, a possibilidade de denúncia,
desde que assegurada a continuidade da liberalização intrabloco por um prazo adi-
cional de 2 anos (artigo 22). Ou seja, o TA, que visa à realização de um mercado
comum – sem que, na verdade, esse objetivo, em qualquer de suas modalidades
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teóricas ou práticas, esteja expressamente caracterizado, a não ser pelas denições
genéricas do artigo 1o –, deixa incerta a questão de sua emenda ou modicação, o
que a rigor não era necessário tendo-se em vista seu caráter “provisório. O assunto
seria tratado no POP, mas de forma limitada, como se constatará a seguir.
Na verdade, o POP é um acordo parcialmente modicatório, ou mero ins-
trumento complementar, que se limita a conrmar as disposições substantivas do
TA ( apresenta-se como “parte integrante do TA”), mas abre a possibilidade de
revisão de sua “estrutura institucional” – sublinhe-se essa limitação – mediante
conferência diplomática (artigo 47), expressamente convocada para essa nalida-
de. A rigor, nem o TA, nem o POP abordam em detalhe os elementos constitu-
tivos do que seria um mercado comum, além das denições genéricas do artigo
1o do TA: liberalização completa (o que não foi realizado, como se sabe); TEC
(aplicada muito parcialmente pelos quatro membros atuais) e política comercial
comum (praticamente inexistente); coordenação de políticas macroeconômicas
e setoriais (jamais empreendida, seriamente); e harmonização legal nos setores
pertinentes (parcialmente realizada, mas geralmente em áreas não relevantes para
a construção do mercado comum, justamente) – ainda que esses dois instrumen-
tos abundem em explicações sobre o funcionamento dos órgãos constitutivos do
Mercosul.
Em princípio, portanto, uma conferência diplomática poderia ser convoca-
da pelos Estados-Partes do Mercosul para tratar de aspectos substantivos do tra-
tado, mesmo se a provisão do artigo 47 do POP é expressamente restritiva: “[...]
com o objetivo de revisar a estrutura institucional do Mercosul[...], assim como
as atribuições especícas de cada um de seus órgãos”. Nada impediria, porém, que
entendimentos políticos entre os governos dos países membros decidissem revisar
os objetivos maiores do TA, xados em torno do conceito de mercado comum
(jamais denido objetivamente, como tampouco a união aduaneira, um conceito,
aliás, inexistente no texto). A rigor, não existindo vontade política de empreender
qualquer tipo de mudança fundamental nos tratados funcionais, pode-se envere-
dar por mudanças sub ou infraconstitucionais, o que representaria atuar no plano
das decisões ou resoluções de seus dois órgãos de cúpula, em especial, o Conselho
do Mercosul.
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
O que isso signica exatamente? Isso tem a ver com o que os juristas cha-
mam de “hierarquia das leis, ou seja, dos compromissos formal e expressamente
aceitos e acolhidos constitucionalmente pelas partes contratantes. Já vimos que os
tratados constitutivos são extremamente vagos quanto ao que exatamente caracte-
riza o mercado comum e como ele deveria ser constituído, além e em acréscimo
às disposições genéricas do artigo 1o do TA. Na verdade, o essencial da arquitetura
e perl do bloco do Mercosul foi sendo moldado pelo Conselho do Mercosul por
meio de decisões políticas.
Em 29 de junho de 2000, em Buenos Aires, por ocasião de sua 18a reunião,
o Conselho aprovou a decisão 32, que estipula expressamente que os países mem-
bros se comprometem a “[...] negociar em forma conjunta acordos de natureza
comercial com terceiros países ou agrupamentos de países extra-zona nos quais se
outorguem preferências tarifárias” (artigo 1o da MERCOSUR/CMC/DEC. 32/00).
Na mesma decisão, o Conselho reitera que “[...] a partir de 30 de junho de 2001, os
Estados Partes não poderão rmar novos acordos preferenciais ou conceder novas
preferências comerciais em acordos vigentes no âmbito da Aladi que não tenham
sido negociados pelo Mercosul” (artigo 2o, nal). Em outros termos: à falta de ele-
mentos sucientemente “constrangedores” de uma atuação independente no TA
ou no POP, os países membros, sob a discreta pressão do Brasil, decidiram acolher
uma decisão de ordem eminentemente política quanto à necessidade de negocia-
ções conjuntas com terceiros.
Esse tipo de “arranjo infraconstitucional” não deixa de suscitar algumas re-
exões quanto a seu alcance e ecácia. Não é desconhecido de nenhum dos parcei-
ros do bloco, bem como dos observadores externos bem informados, que a TEC
– o principal instrumento da união aduaneira potencial do Mercosul, e seu “cartão
de visitas” em face dos dispositivos relativos a blocos comerciais no Gatt-OMC –
espelha, em grande medida, a tarifa reformada brasileira de 1993 e os interesses
comerciais e industriais do maior sócio do bloco do Cone Sul. Tampouco se desco-
nhece que as principais diculdades ligadas à incorporação plena da TEC por cada
um dos demais parceiros no empreendimento integracionista, e ao cumprimento
estrito das alíquotas ali estabelecidas, são derivadas desse “mimetismo” tarifário e
das demais disposições que visam proteger, por um lado, e promover, por outro, os
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interesses comerciais e industriais do Brasil, que se dotou, assim, de uma espécie de
“reserva de mercado” que substituiu os mecanismos precedentes de proteção co-
mercial e de resguardo do campo de ação da indústria nacional. Avulta, portanto,
relevante, nesse quadro, que o espaço econômico mercosulino esteja, efetivamente,
resguardado de preferência em favor de seus membros, ainda que os mecanismos
de proteção – dependendo de sua amplitude e do grau de defesa aplicado – possam
ter efeitos diferenciados entre os países, dependendo da estrutura econômica e do
coeciente de abertura externa de cada um deles.
No caso em questão, não resta dúvida de que o principal beneciário das
exclusões externas e da exclusividade preferencial interna era e continua sendo o
Brasil, ainda que ele possa teoricamente oferecer, em contrapartida, a amplitude de
seu mercado interno aos três outros sócios menores (perspectiva que depende, em
parte, de regulações setoriais existentes nas áreas de bens e serviços). Não cabem,
tampouco, dúvidas de que o Brasil concebeu (e concedeu) atar-se a um projeto
coletivo de política comercial – algo extremamente raro em toda a sua história de
relações econômicas externas – tendo como compensação essa vinculação dos par-
ceiros à sua própria economia, do contrário seria uma incompreensível renúncia
de soberania (o que sempre foi raro no histórico de sua diplomacia econômica).
A contrapartida dessa reserva de mercado a favor do Brasil é a limitação de
novos acordos de acesso a mercados a situações e circunstâncias estritamente con-
troladas: apenas se e quando todos os países do bloco concordarem com as conces-
sões de retorno, o que também implicaria dividir o mercado brasileiro com outros
concorrentes, sem dispor de uma economia sólida para enfrentar uma competição
mais aguerrida de terceiros países. Para o Brasil, a reserva de mercado tampouco é
uma garantia de mercados em expansão, dada a relativa estabilidade demográca
dos parceiros e a expansão limitada de seus mercados internos, o que poderia re-
comendar, eventualmente, um exercício de liberação da camisa de força da união
aduaneira e da decisão 32/2000 relativa às negociações conjuntas.
Ora, se essa decisão é de caráter político, não havendo dispositivo expresso
no TA ou no POP que regule expressamente a matéria, entende-se que ela pode
ser modicada ou contornada mediante outra decisão política que acomode os
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interesses respectivos dos membros da forma mais exível possível. A objeção fun-
damental, tanto de caráter doutrinário quanto de natureza prática a essa liberação
dos constrangimentos da política comercial comum, é a de que existe uma incon-
tornável mudança de qualidade entre uma simples zona de livre-comércio e uma
união aduaneira, na acepção corrente dessa realidade: se as ZLCs são “interpene-
tráveis” – ou seja, convivendo com vários overlappings – as UAs são exclusivas e
excludentes. Em termos práticos, isso quer dizer que, se os países, em geral, podem
pertencer ou se vincular a quantas ZLCs desejarem, os países pertencentes a um
bloco comercial mais elaborado só podem pertencer a uma única UA, sem exceção.
Ainda que, no plano conceitual, essas entidades possam estar denidas nos
instrumentos multilaterais existentes, não há uma explicitação quanto ao que elas
podem ou não empreender no plano de suas relações externas. O artigo 24 do
Gatt, por exemplo, dene os princípios gerais pelos quais pode ser identicado um
bloco comercial, mesmo se o exame dos blocos concretos pelo Comitê pertinente
da OMC permaneça sujeito a interpretações variáveis segundo o impacto do bloco
em questão sobre o comércio global das outras partes contratantes, individual ou
coletivamente. O fato é que o Mercosul responde de maneira muito parcial às de-
nições padrão dos instrumentos existentes e atende imperfeitamente aos requisitos
teóricos das UAs. Nem por isso ele parece ter enfrentado obstáculos de monta a
ser reconhecido nas instâncias do comércio multilateral e nos processos negocia-
dores bilaterais, regionais (como a ALCA) ou inter-regionais (com a UE) empre-
endidas ao longo de todos esses anos de deterioração contínua da “solidariedade
comercial” interna. Ele parece, aliás, causar mais “problemas” aos Estados-Partes
do que aos demais parceiros do sistema multilateral de comércio, o que parece um
paradoxo irônico.
O que aconteceria, portanto, se o Conselho do Mercosul resolvesse aprovar
uma nova decisão concedendo aos países liberdade para negociar acordos comer-
ciais preferenciais com terceiras partes, ou seja, reduzindo o bloco, de fato, a um
conjunto de sócios de uma zona de livre-comércio? Cabe vericar, em primeiro
lugar, se tal decisão é suscetível de ser aprovada, já que ela derrogaria formalmente
um dos princípios do que seja uma UA, ou seja, a política comercial comum. Mas
o Conselho poderia, simplesmente, tornar sem efeito a decisão 32/2000, sem se
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pronunciar quanto a iniciativas individuais dos países membros. Se estes preser-
vassem a cláusula de nação mais favorecida para os membros do Mercosul no que
se refere às concessões dadas a terceiros no quadro de acordos bilaterais, o que
ocorreria, simplesmente, seria uma diminuição das preferências para dentro, mas
não para fora, o que, a rigor, não representaria prejuízo global para os demais par-
ceiros do sistema multilateral de comércio. Em outros termos, o impacto seria bem
mais importante para o Mercosul, inclusive no plano de seus “princípios constitu-
cionais”, do que para o universo do comércio mundial.
Em qualquer hipótese, os países membros poderiam se basear no enuncia-
do da alínea (d) do artigo 8 do TA, quando esta diz que os Estados-Partes “[...] [e]
stenderão automaticamente aos demais Estados Partes qualquer vantagem, favor,
franquia, imunidade ou privilégio que concedam a um produto originário de ou
destinado a terceiros países não membros da Associação Latino-Americana de In-
tegração”. Em outros termos, preservada a cláusula de nação mais favorecida, o TA
não proíbe, terminantemente, a negociação de acordos preferenciais com terceiras
partes e, de certa maneira, até permite a extensão desses acordos.
6 O que é, atualmente, e o que pode ser o Mercosul: enfrentando as
realidades
Os governos dos países membros podem – e provavelmente o farão – con-
tinuar alimentando a retórica da integração regional e armando o “caráter es-
tratégico” do Mercosul no quadro de suas respectivas políticas externas. Não se
imagina que algum dirigente de um dos países membros – mesmo internamente
descontente com o estado atual da integração, e com as “amarras” existentes às ne-
gociações comerciais externas, justamente – venha a propor, em alguma cúpula do
bloco, uma revisão fundamental de suas bases constitutivas, ou sequer um arranjo
que implicasse a revisão do formato e da arquitetura atuais do Mercosul. Não se
imagina, tampouco, qualquer um deles formulando críticas aos mecanismos atu-
ais, aos inúmeros obstáculos práticos e até normativos ao atingimento do objetivo
maior do mercado comum, ou até propondo um saudável retorno à ênfase original
do bloco, no aperfeiçoamento de sua interdependência econômica e comercial, em
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
lugar dessa corrida para frente nos campos político e social, como tem sido a tônica
nos últimos oito ou dez anos.
Não que as burocracias nacionais, nas áreas fazendária ou das relações ex-
teriores, não possam admitir esses problemas, que elas não sejam capazes de for-
mular diagnósticos realistas e alternativas credível, ou que elas não se disponham
a encontrar soluções para esses problemas (que elas sabem onde se encontram,
exatamente). Mas não se imagina que os líderes dos governos nacionais, captura-
dos por interesses setoriais – geralmente protecionistas e defensivos – de cada um
dos países, estejam dispostos a arregaçar as mangas num processo sério de revisão
das imperfeições do bloco para impulsionar decisivamente uma nova fase da in-
tegração econômica – ou uma volta aos princípios originais, simplesmente – com
base em regras claras de caráter livre-cambista e aberturista, como declarado, aliás,
nos preâmbulos dos instrumentos fundacionais, ou seja, a retórica ainda tem um
belo futuro pela frente.
Num contexto de multiplicação das inadimplências nacionais e de peque-
nos e grandes problemas operacionais do Mercosul, quando as energias e esforços
deveriam estar concentrados em aplainar o terreno e colocar as bases para novos
avanços, com base no encaminhamento satisfatório das pendências constatadas, o
que se observa é uma corrida para frente e uma expansão não controlada, como se
todos zessem questão de abarrotar um barco que já apresenta sérios problemas de
navegação. Assim, por exemplo, não se compreende como e porquê os líderes do
bloco conseguiram se colocar de acordo e se decidir pela aceitação inconteste do
ingresso a pedido da Venezuela, cujas características econômicas e políticas atuais
– ou seja, sob a liderança de seu presidente militar, ainda que democraticamente
eleito – são notoriamente discrepantes dos princípios e regras do Mercosul e das
políticas e práticas de seus atuais integrantes. Não se compreendem, tampouco,
convites feitos a outros países da América do Sul sem a correspondente aceita-
ção prévia das normas obrigatórias para os membros originais. Se a intenção é,
simplesmente, a de constituir um espaço de livre comércio, ou antes, uma área
de comércio preferencial, melhor seria operar uma reconversão, ou reversão, na
arquitetura institucional e nas obrigações do Mercosul como forma de aplainar
completamente o terreno para todos os agentes econômicos privados e também
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para as respectivas burocracias aduaneiras nacionais. Imagine-se o emaranhado
de reduções tarifárias, de isenções temporárias, de exceções à TEC, de disposições
especiais relativas às regras de origem que os prossionais alfandegários devem
hoje aplicar.
Porém, ao que parece, o Mercosul cresceu de tal maneira, em áreas não
estritamente limitadas às suas dimensões econômicas originais, que hoje caria
difícil conceber um exercício de revisão fundamental, o que requereria uma ca-
pacidade de iniciativa diplomática e de ousadia política, que parece estar fora das
perspectivas atuais de atuação de qualquer dirigente comprometido com a estabi-
lidade diplomática regional e com a credibilidade externa do bloco. O ideal seria
que, excetuando-se uma reforma radical do Mercosul que conduzisse a um retorno
em relação à atual (quase virtual) união alfandegária existente no papel, se proce-
desse a uma revisão completa da TEC, no sentido de sua redução linear, na dimi-
nuição de sua dispersão e na eliminação das muitas exceções nacionais aplicadas
atualmente ao comércio extrabloco. Registre-se, en passant, que uma reversão do
atual modelo de UA não eliminaria vários dos problemas existentes – que se situ-
am mais exatamente em nível de sua ZLC – e criaria outros novos ou agravaria os
atuais, como seria o caso da determinação das regras de origem para a aplicação
das concessões tarifárias.
Admitindo-se, então, uma solução subótima, que consistiria em revisar e
reformar áreas passíveis de ajustes no Mercosul atual, procede-se, a seguir, a uma
identicação das questões que apresentam sérias discrepâncias em relação a um
modelo “ideal” de integração que possa eliminar as deciências atuais e caminhar
no sentido da liberalização completa inserida no esquema original. Essas ques-
tões se situariam no plano do acesso a mercados, no da convergência de políticas
macroeconômicas e no do funcionamento das instituições, de modo geral, com
destaque para o respeito das normas internas e seu cumprimento pelos Estados-
-membros. Cada uma dessas áreas tem peculiaridades próprias, requer mecanis-
mos adequados para atacar os problemas detectados e exigirá, obviamente, reso-
lução rme dos dirigentes nacionais no sentido de acatarem as decisões adotadas
consensualmente, sob risco de perda adicional de credibilidade, o que tem sido,
infelizmente, a marca registrada do Mercosul nos últimos anos.
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
No que se refere à questão do acesso a mercados, caberia resolver os im-
passes remanescentes na ZLC – o que não será fácil, reconheça-se desde logo, em
relação aos focos residuais do protecionismo argentino: açúcar e setor automotivo
– e avançar no acabamento da UA, se é verdade que se pretende preservar essa
cção alfandegária mantida pelos governos, apenas porque o TA proclamou esse
objetivo duas décadas atrás. Pode parecer inacreditável, justamente, que passados
20 anos da constituição do Mercosul, ele não conte, ainda, com um código adua-
neiro efetivo e respeitado e com uma autoridade aduaneira de fato comum e ple-
namente funcional. Um prazo adicional para a plena implementação do código e
para o funcionamento efetivo da autoridade aduaneira deveria ser xado concomi-
tantemente à eliminação das divergências na aplicação da TEC, o que também se
daria pari passu à revisão mencionada acima dessa tarifa esgarçada, reduzindo sua
dispersão e as alíquotas mais defensivas, eliminando as exceções nacionais – que,
aliás, são estranhas à noção de uma UA – e promovendo a necessária convergência
das políticas comerciais nacionais (à falta de uma verdadeira política comercial
comunitária”).
Ainda na questão comercial e produtiva, seria necessário interromper as
concessões protecionistas que têm sido feitas à Argentina – aliás, tomadas por sua
própria iniciativa, sem qualquer legitimação do bloco – e toleradas pelo Brasil,
uma vez que esse tipo de medida não corrige, de fato, a defasagem de competiti-
vidade argentina e representa, na verdade, uma erosão do edifício integracionista
construído nos primeiros anos do bloco. Da mesma forma, conviria desmantelar o
Mecanismo de Ajuste Competitivo – um instrumento pretensamente legitimador
das salvaguardas argentinas contra produtos brasileiros – na medida em que esse
dispositivo representa um inacreditável retrocesso bilateral (já que correlaciona-
do ao ACE-14 Brasil-Argentina, e não ao Mercosul enquanto tal), além de uma
infração grave aos princípios de não discriminação implícitos ao esquema integra-
cionista e contemplados em diversas normas do sistema multilateral de comércio.
A convergência de políticas macroeconômicas parece um empreendimen-
to virtualmente impossível em vista da diversidade real de políticas econômicas
nos países membros, situação derivada não apenas dos ritmos e mecanismos di-
ferenciados segundo os processos nacionais de estabilização – em nenhum deles
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completamente estabelecido –, mas, sobretudo das estruturas econômicas especia-
lizadas e de histórias políticas peculiares com determinadas clivagens sociais, que
geraram, em cada um dos países membros, linhas de política econômica senão
opostas, pelo menos muito diferentes entre si. Os diferenciais de produtividade nos
países também provocaram posicionamentos diversos na competitividade externa,
o que gerou pressões de diversas naturezas nas transações correntes e, portanto,
regimes cambiais com peculiaridades próprias, tornando muito difícil o alinha-
mento cambial em torno de parâmetros similares de paridade e de tratamento do
capital estrangeiro. Nem se mencionem regimes scais e sistemas tributários per-
seguindo diferentes metas econômicas ou tendo de servir a objetivos distintos nos
campos das políticas industriais, agrícolas ou sociais (previdenciárias, por exem-
plo), quando não subsidiando setores ditos “estratégicos” em cada um dos países.
Todas essas características tornaram difícil a atuação do Grupo de Monitoramento
Macroeconômico estabelecido no âmbito da reunião de ministros de Economia e
de presidentes de bancos centrais, pela decisão 30/2000.
Na ausência de possibilidades reais de coordenação de políticas macroeco-
nômicas, ou seja, de avançar para patamares mais altos de convergência metodo-
lógica, a alternativa seria ao menos começar a eliminar os fatores de divergência
entre os países, alguns até criados por motivos aparentemente nobres, como o fa-
moso Fundo Corretor de Assimetrias do bloco, nanciado em sua maior parte pelo
Brasil. Uma das questões que mais desperta restrições nos demais países mem-
bros do Mercosul é o ativismo estatal brasileiro em defesa das indústrias nacionais;
junto com ela, vem a pletora de instrumentos scais, creditícios e tributários que
estão associados, em nível federal ou subnacional, a diversas políticas de atração
de investimentos ou de benefícios concedidos a produtores nacionais ou locais,
para ns de criação de empregos, promoção de exportações ou aumento da renda,
de forma geral. Bancos federais – entre eles o BNDES, de forma proeminente e
absolutamente sem qualquer concorrente sério com uma carteira de negócios su-
perior ao BID e ao próprio BIRD – e regionais, governos estaduais ou municipais
mobilizam esses diversos instrumentos para conceder a empresas instaladas local-
mente condições competitivas de que não podem gozar os demais atores privados
ou mesmo estatais nos outros países membros.
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
Os sócios do Mercosul reclamam, com razão, da disparidade de condições
competitivas, o que se soma ao protecionismo “natural” do mercado brasileiro.
O TA ou o POP não possuem disposições explícitas proibindo ou disciplinando
essas medidas de estímulo à produção local, tanto mais difíceis de serem subme-
tidas a controle quando muitas são de iniciativa de governos locais, dotados de
autonomia sobre certas ferramentas tributárias ou creditícias. É altamente impro-
vável que se consiga chegar a um terreno de entendimento em relação às modali-
dades altamente criativas de apoio ao produtor nacional, assim como não se espera
que diminua o ativismo governamental entre os membros do bloco – em especial
os dois grandes – em favor dos agentes econômicos locais (que são, obviamente,
aqueles que dão votos e nanciam as campanhas políticas). Tudo indica que uma
eventual harmonização nesse tipo de política se agura impossível; no formato
intergovernamental que é o do Mercosul, sem as “amarras” de uma autoridade
desnacionalizada e dotada de capacidade de decisão própria; existem realmente
poucas chances de mudar. Pode-se, então, considerar que isso constitui mais uma
justicativa para a reversão institucional no bloco, já que uma das mais importan-
tes áreas de convergência e coordenação (no caso, envolvendo, sobretudo medidas
scais e tributárias) se eximiria de disciplinas próprias. Em outros termos: na au-
sência de condições para avançar, melhor recuar para um terreno que garanta a
independência dos países membros.
Existem diversos outros aspectos objeto do ativismo político dos governos
nos últimos anos – talvez, justamente para compensar a ausência de progressos nas
áreas mais signicativas para a integração – que mereceriam reexão ponderada
do ponto de vista de seu custo-benefício. Uma simples análise técnica quanto ao
custo-oportunidade de determinados empreendimentos revelaria que não se deve
criar instituições que não respondam a funções bem determinadas, responsáveis
hipoteticamente por setores indispensáveis ao funcionamento do bloco. Qualquer
análise isenta nesse particular não recomendaria, por exemplo, a criação do Insti-
tuto Social, do Parlamento e sequer da gura do Alto Representante do Mercosul,
na medida em que eles não preenchem funções que sejam imprescindíveis para o
funcionamento de uma UA, ou sequer de uma ZLC.
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O mesmo tipo de análise seria altamente negativo quanto ao Fundo de
Correção de Assimetrias, instância que duplica o trabalho – sem a qualidade téc-
nica e a competência analítica em administração de projetos – dos bancos regio-
nais e entidades multilaterais de nanciamento, sem reproduzir suas modalidades
de autonanciamento (uma vez que o Focem é inteiramente orçamentário e, por-
tanto, perdulário). Além de atuar sobre um fantasma conceitual – as tais assime-
trias, que existem naturalmente em qualquer economia ou país – esse Fundo não
tem, obviamente, a capacidade de mudar o que quer que seja nos países membros,
dado o impacto mínimo de suas dotações sobre a formação local de capacidade
produtiva. Basta pensar na desproporção entre os uxos globais de produção e
comércio e a dimensão dos projetos nanciados. Na verdade, trata-se de mais um
exemplo de ativismo diplomático brasileiro, que não é necessariamente nocivo à
integração, mas cujo único objetivo (não explícito, obviamente) é o de “comprar”
condições de liderança que, de outra forma, não existiriam pelo lado propria-
mente econômico do processo de integração. Ou seja, além de cosméticos, esses
empreendimentos atendem muito mais à retórica da integração do que à sua re-
alidade intrínseca.
Feito o levantamento de todas as inconsistências ou incongruências do
Mercosul, de suas insuciências e limitações, e constatada a impossibilidade – e
até a “indesejabilidade” – de qualquer avanço institucional no sentido da constru-
ção comunitária no bloco – ou seja, de implementação de órgãos ou mecanismos
supranacionais, com a possível exceção de uma corte permanente de arbitragem
com poderes “denitivos” e “executórios”, resta concluir com o exame das vias pro-
váveis de mudança – de revisão, de reforma, ou de reversão, seja lá que termo usar
– que se apresentam ao Mercosul nos meses e anos à frente. Constatada a pouca
disposição das lideranças do bloco para uma revisão radical de seus instrumentos
constitutivos – ou seja, com modicações no TA e no POP, ou sua substituição por
novos instrumentos institucionais –, a via mais provável parece ser a aprovação de
decisões do Conselho que toquem nos pontos já levantados neste trabalho, nome-
adamente os seguintes:
a) revisão liberalizante da Tarifa Externa Comum e reunicação
redutora de suas alíquotas;
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b) decisão quanto à implementação efetiva do Código Aduaneiro
e conformação da Autoridade Aduaneira, como teste prático de
exequibilidade da UA;
c) eliminação da decisão sobre negociações conjuntas, com eventual
(mas talvez desnecessária) autorização para negociações extr-
bloco, com preservação da cláusula de nação mais favorecida
internamente;
d) desativação ou suspensão de órgãos e iniciativas não diretamente
funcionais para ns de integração comercial e abertura econômica
recíproca, sobretudo os mecanismos dirigistas ou diretamente
estatizantes, que pretendem contra-arrestar tendências
fundamentais de mercado.
Finalizando, o Mercosul não é exatamente um modelo bem sucedido de in-
tegração econômica, embora tenha permitido graus signicativos de liberalização
comercial que exercem impacto em nível microeconômico e em uxos setoriais
de comércio e investimentos (não exatamente em nanças, mas deslocamentos
industriais). Um dos erros mais comuns dos líderes políticos é, provavelmente, o
de transformar instrumentos (ou meios) para objetivos mais prosaicos  como o
crescimento ou o desenvolvimento do país  em um m em si próprio, que o da
integração em abstrato. A valorização exagerada da integração enquanto tal, sem
considerar os custos ou externalidades negativas da integração, levou o esquema
a impasses que atualmente cerceiam a expansão comercial de cada um dos países
membros, ou seja, em lugar de estimular novos negócios e expandir vínculos com o
exterior, o Mercosul redundou, na prática, pelo menos atualmente, na paralisação
desse crescimento para fora, ocorrendo, no sentido inverso, uma introversão dos
uxos e concorrência predatória entre os agentes privados dos países membros.
Como os governos são singularmente desprovidos de imaginação e como
as burocracias não se distinguem exatamente pela inovação ou ousadia, caberia,
talvez, atribuir a um grupo restrito de “sábios” – economistas, cientistas políticos,
diplomatas e homens de negócios, todos profundos conhecedores do Mercosul – a
missão de repensar suas bases e seu funcionamento, com a atribuição adicional
de sugerir formas adaptativas, entre elas, se for o caso, a reversão aqui focalizada;
para os desaos surgidos nos últimos dez anos. Se o Mercosul continua em crise,
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passados os choques externos e os impactos internos dos processos de estabiliza-
ção, então é porque ele não responde mais às necessidades dos países membros. O
mais surpreendente como constatação é que os problemas do Mercosul atual não
derivam de deciências próprias do Mercosul, enquanto tal, mas de inadimplên-
cias e descumprimentos de suas normas fundamentais por decisão voluntária dos
governos dos países membros, o que desloca, portanto, a discussão das “soluções”
do âmago do Mercosul para sua cogestão pelos governos que dele fazem parte. O
ingresso, se efetivado, da Venezuela no bloco não amainará esse tipo de problema
havendo a possibilidade de que eles venham a ser ainda mais agravados.
A conclusão nal talvez seja esta: constatado que os impasses não derivam
de disfuncionalidades intrínsecas ao Mercosul, mas de deformações criadas pelos
integrantes, talvez seja o caso de atribuir maior grau de liberdade a cada um deles,
preservadas as preferências tarifárias e os espaços de intercâmbios já criados, para
que as soluções sejam encontradas na experiência prática de cada um. Um inter-
valo de reexão e de liberdade talvez seja o melhor caminho para a crise de meia
idade.
Is Mercosur reversible? Theoretical exercises over alternate
institutional schemes
Abstract
Overall discussion about problems which are aecting the normal func-
tioning of Mercosur, a trade block that could not yet reach for its major goal of
a common market, nor attained a less ambitious customs union. Main culprit of
those Mercosur’s problems is not exactly its institutional architecture, but simply
the failure of member countries to comply with their own consensually adopted
decisions. is article examines proposals for reform or reversal to more exible
stages of integration, entailing new freedom given to member countries to negotia-
te free-trade agreements with non-block partners.
Keywords: Mercosur. Free-trade Zone. Customs Union. Blockades. Reversion.
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Seria o Mercosul reversível? Especulações teóricas sobre trajetórias alternativas ...
Nota
Nenhum dos argumentos ou posições apresentados neste ensaio especula-
tivo – em caráter exclusivamente pessoal – representa posições ociais do governo
brasileiro ou podem ser identicados a propostas do Ministério das Relações Ex-
teriores do Brasil.
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Relações Internacionais, entre no endereço
eletrônico www.publicacoesacademicas.uniceub.br.
Observe as normas de publicação, facilitando e
agilizando o trabalho de edição.
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Full-text available
The aim of this paper is to scale the impact of changes in the patterns of international trade and Foreign Investment and how the shift in the world economic geography affects the relations between Mercosur and the European Union. The perception is that the outcome of negotiations between the two blocks is linked to the paralysis of the multilateral system and the European perspective of the economic dimension of the Agreement. The study suggests that the European Union faces conceptual and operational problems to establish clear goals and business strategies towards Mercosur and to insert them under a new global economic geography.
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