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Educação em Revista|Belo Horizonte|v.32|n.04|p. 205-225 |Outubro-Dezembro 2016
A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL DIANTE DA
MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL
Deise Mancebo*
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
João dos Reis Silva Júnior**
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos - SP, Brasil
Daniel Schugurensky***
Arizona State University, Tempe - Arizona, EUA
RESUMO: O artigo discute o processo de expansão da educação superior
brasileira, considerando as demandas do capitalismo monopolista
contemporâneo de predominância nanceira. O texto é um estudo de
caráter exploratório e sua construção apoia-se em pesquisa bibliográca
e análise documental de problemáticas convergentes e necessárias para a
compreensão do tema, adotando uma perspectiva de análise que conjuga
aspectos quantitativos e qualitativos. Na sequência, o artigo discute o
processo de mundialização do capital sob a predominância nanceira, as
expressões da mundialização no Estado brasileiro e a forma como se deu a
expansão da educação superior nas últimas décadas no Brasil, considerando
os setores público e privado. Especial atenção é dada para a produção de
conhecimento mercantilizada, pelo impacto que tem provocado na cultura
institucional universitária.
Palavras-chave: Mundialização do capital. Educação superior. Produção do
conhecimento.
*http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698162033
* Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado pela
Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana
da Universidade do Estado Rio de Janeiro (PPFH/UERJ). Coordenadora do Observatório da Educação
(OBEDUC) “Políticas da Expansão da Educação Superior no Brasil” e da Rede Universitas/Br. E-mail:
<deise.mancebo@gmail.com>.
** Doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Pós-doutorado em Sociologia Política pela Universidade de Campinas (UNICAMP); em Economia
pela Universidade de São Paulo (USP) e em Economia pela Universidade de Londres. Professor associado
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP).
Coordenador adjunto do Observatório da Educação (OBEDUC) “Políticas da Expansão da Educação
Superior no Brasil”. E-mail: <joaodosreissilvajr@gmail.com>.
***Doutor em Educational Policy Studies pela University of Alberta (Canada). Professor da Arizona
State University (USA), no School of Public Affairs Department e no School of Social Transformation
Department. Diretor do School of Public Affairs.
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BRAZILIAN HIGHER EDUCATION IN FACE OF CAPITAL GLOBALIZATION
ABSTRACT: The paper discusses the process of expansion of Brazilian
higher education, considering the demands of contemporary monopoly
capitalism of financial dominance. The text is an exploratory study
based on literature and document analysis of converging problems that
are necessary to understand the subject by adopting a perspective of
analysis that combines quantitative and qualitative aspects. In sequence,
the paper discusses the capital globalization process under the nancial
dominance. The paper discusses how that process affects the Brazilian
state and how it has oriented the expansion of higher education in recent
decades in Brazil, considering the public and private sectors. Production
of commodied knowledge has received a special attention as it has a
signicant impact in the university institutional culture.
Keywords: Capital globalization. Higher education. Production of knowledge.
INTRODUÇÃO
O exame das razões que levaram à recente expansão da educação
superior no Brasil constitui-se em notório desao. Debater essa questão
educacional, tomando como referência as demandas do capitalismo
monopolista contemporâneo de predominância financeira é tarefa
mais complexa ainda, impossível de se alcançar, em sua plenitude, num
texto. Todavia, é o desao central que pretendemos perseguir aqui, pelo
menos em suas linhas mais gerais, trabalhando com a hipótese central de
que o regime de acumulação com a predominância nanceira provoca
mudanças reais no processo de trabalho, na indústria, nos aparelhos de
Estado e, no que aqui nos interessa, na educação.
Assim, na sequência do artigo, buscaremos discutir o processo de
mundialização do capital sob a predominância nanceira, as expressões
da mundialização no Estado e na educação brasileira e a forma como
se deu a expansão da educação superior nas últimas décadas no Brasil,
considerando os setores público e privado. Especial atenção será dada
para a produção de conhecimento mercantilizada, pelo impacto que tem
provocado na cultura institucional universitária e pelos fortes vínculos
que apresenta com a mundialização do capital. O texto é um estudo de
caráter exploratório e, para sua construção, apoiamo-nos em pesquisa
bibliográca e análise documental de problemáticas convergentes e
necessárias para a compreensão do tema, adotando uma perspectiva de
análise que conjuga aspectos quantitativos e qualitativos.
Deve-se registrar que boa parte das fontes e das análises
apresentadas pertence a um coletivo de mais de 200 pesquisadores da
Rede Universitas/Br, que participam do projeto integrado “Políticas
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da Expansão da Educação Superior no Brasil”. São colegas incansáveis
na tentativa de aprofundar as diversas facetas da educação superior
no país. A eles pertence boa parte dos dados e comentários expostos,
mesmo que as conclusões, eventualmente apressadas, sejam nossas.
Na sequência, o artigo discute o processo de mundialização do
capital sob a predominância nanceira, as expressões da mundialização
no Estado brasileiro e a forma como se deu a expansão da educação
superior nas últimas décadas no Brasil, considerando os setores público
e privado e abrangendo a formação (massicada) e a produção de
conhecimento (mercantilizada), para a qual se deu mais atenção pelo
impacto que tem provocado na cultura institucional universitária.
O PROCESSO DE MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL SOB A PREDOMINÂNCIA FINANCEIRA
As transformações no capitalismo contemporâneo resultaram
em um novo padrão de acumulação mundial que permitiu a livre
circulação dos capitais em escala planetária. Chesnais (1996)
denomina esse processo, que se consumou nas últimas décadas, de
mundialização (do capital), que sob a égide dos Estados Unidos,
resulta num modo de funcionamento específico do capitalismo,
predominantemente financeiro e rentista. Para ele, esse processo
desenvolve-se sob três dimensões principais: “intercâmbio comercial,
investimento produtivo no exterior [IED] e os fluxos de capital
monetário, ou capital nanceiro” (CHESNAIS, 1996, p. 51).
Na tentativa de ir à raiz da questão Netto e Braz (2007)
analisam que, na realidade, a nanceirização resultou do processo de
[...] superacumulação e, ainda, da queda das taxas de lucro dos investimentos
industriais registrada entre os anos setenta e meados dos oitenta. [Nesse contexto],
um montante fabuloso de capital disponibilizou-se então sob a forma de capital-
dinheiro (ou capital monetário). Parte desse capital foi investido na produção
e, especialmente, no setor de serviços em outros países pelas corporações
imperialistas (representando o chamado investimento externo direto/IED) [mas]
parte substantiva permaneceu no circuito da circulação buscando valorizar-se
nesta esfera. (NETTO; BRAZ, 2007, p. 231)
E os autores continuam afirmando que “à medida que o
capitalismo se desenvolveu, um segmento de capitalistas passou a viver
exclusivamente desse capital que conservaram sob a forma monetária”
(NETTO; BRAZ, 2007, p. 232). Trata-se da camada de capitalistas
rentistas, que não se responsabilizam por investimentos produtivos.
Portanto, o processo de mundialização do capital sob a predominância
nanceira acaba por resultar num regime de acumulação centrado
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no poder das instituições financeiras, cujos principais agentes são
os bancos, os fundos de pensão, os fundos de investimentos, as
seguradoras e outras empresas nanceiras especializadas.
A mundialização do capital – que na acepção de Chesnais
(1996) difere da globalização ou internacionalização do capital,
fenômenos observáveis desde meados do século XIX – é a marca do
processo vivido pelo capitalismo desde as últimas décadas do século
XX e ela caracteriza-se
[...] pela descentralização de grandes empresas, do ramo industrial, por exemplo,
cujas unidades se multiplicam e se espalham por diversas regiões e países, com
menores custos e maiores vantagens quanto à força de trabalho (mais barata),
matéria prima, legislação trabalhista, universidades que pesquisam e formam
mão de obra especializada para empresas com subsídio estatal, etc. A força
econômica dessas empresas sobrepor-se-ia à de muitos Estados nacionais e
suas instituições republicanas, como a universidade e instituições de pesquisa.
(SGUISSARDI, 2015, p. 95)
Para atender a esse processo, na tentativa de garantir a retomada
da expansão do capital, especialmente de sua rentabilidade na esfera
financeira, a partir dos anos 1980, sob a hegemonia da doutrina
neoliberal, os Estados nacionais promovem “reformas”, gerando
uma repartição da riqueza cada vez mais concentrada, em favor das
instituições nanceiras1. Essas reformas, invariavelmente, traduzem
uma deserção dos Estados de sua função de provedor de direitos e
serviços sociais (saúde, educação, dentre outros) e aprofundam seus
vínculos com o mercado mundial.
Conforme Chesnais (2005), a pressão exercida pelos
investidores para a extração crescente de lucros das empresas exige
mais produtividade, novas formas de organização do trabalho, novas
formas de organização e gestão, uso intensivo de novas tecnologias,
com fortes danos econômicos e sociais para os assalariados. Estes
encontram-se envolvidos com desemprego estrutural, rebaixamento
de salários, intensicação da jornada, precarização das condições do
trabalho e a necessidade de uma forte acomodação psicofísica e da
sua sociabilidade. Como observa Sguissardi (2015):
Nesse contexto de mundialização do capital nanceirizado, que cobra aumento
de produtividade, supervaloriza a competição e a rentabilidade empresariais de
bens e serviços, a ciência e a educação superior adquirem um valor cada dia
maior como efetivas mercadorias. Da mesma forma, valorizam-se as instituições,
universidades e institutos de pesquisa, com potencial de produzi-las. Cada vez
mais se verica, na economia atual, maior predominância dos bens imateriais
sobre os materiais e a universidade passa a ser vista como essa nova empresa
produtora, ainda que indireta, de mais valor. (SGUISSARDI, 2015, p. 98)
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Assim, pode-se armar que grandes transformações ocor-
reram nas universidades e na educação superior em boa parte do
mundo, engendradas, em última instância, pela hegemonia do capital
nanceiro, sob a égide do capital portador de juros e do capital ctício.
As frações nanceiras foram insistentes e vitoriosas nas diversas
tentativas de reposicionar sua hegemonia mundial. Impingiram,
por exemplo, novos contornos à área dos serviços. Seu núcleo
hegemônico pôde impor um novo marco ao comércio mundial com
a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995,
com a denição da educação no rol de serviços a ser liberalizado
no escopo do General Agreement on Trade in Services (GATS) e, mais
recentemente, no Trade in Services Agreement (TISA)2. Em síntese, “as
corporações e os países do núcleo hegemônico lograram espraiar
suas ações em escala mundial, a partir de regulamentações com
alcance planetário” (LEHER, 2015b, p. 31).
EXPRESSÕES DA MUNDIALIZAÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO E A EDUCAÇÃO SUPERIOR
Todo esse processo também provocou impactos no Brasil,
mesmo que seus efeitos tenham aparecido um pouco mais tarde. O
trânsito da década de 1980 para a de 1990 foi o marco histórico de
profundas mudanças estruturais na sociedade brasileira e também
na cultura institucional da educação superior, que se prolonga até
os dias atuais. Essas mudanças cobrem os governos dos três últimos
presidentes brasileiros e as apresentaremos, em linhas gerais,
seguindo periodização proposta por Silva Júnior e Schugurensky
(2014) para a compreensão da dinâmica do capitalismo e da
educação superior no país.
A primeira fase detectada pelos autores tem como base
econômica a demanda imposta ao país em face de sua aderência à
globalização, gerada pelo predomínio do capital financeiro e tem
seu ápice em 1995. Ela se expressa concretamente na edição do
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995),
reforma que afeta todas as instituições e, consequentemente, as
instituições de educação superior (IES). A elaboração do Plano foi
liderada pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma
do Estado (MARE), onde “os policymakers brasileiros produziram a
institucionalidade para o exigido alinhamento do país ao movimento
realizado no nível mundial” (SILVA JÚNIOR; SCHUGURENSKY,
2014, p. 34), qual seja, ao momento histórico que o capitalismo
experimentava de transição do regime de acumulação monopolista
para o de predominância nanceira.
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De um modo bem geral, pode-se armar que o Plano Diretor
pretendia inserir a educação entre os “serviços competitivos ou não
exclusivos do Estado” e estabelecia um novo precedente para as
parcerias público-privadas na educação superior brasileira.
Segue-se uma segunda fase que abrangeu os mandatos do
presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas também o início
do primeiro mandato do governo de Lula da Silva (2003-2007). Ela
é marcada pela edição de inúmeras legislações, decorrentes do Plano,
que afetaram as mais diversas instâncias, órgãos estatais e instituições
republicanas em geral e, em particular, as IES. Os traços que passam
a ser perseguidos, de um modo bem geral, na educação superior
brasileira são: a pesquisa aplicada; cursos mais rápidos, inclusive
apoiados em novas tecnologias de informação e comunicação;
processos avaliativos ou de regulação calcados em resultados,
entre outros. Adicionalmente, cabe destacar a gradativa perda da
autonomia universitária, diretamente relacionada à emergência de uma
heteronomia de gestão e de uma nova relação entre a universidade e
o setor empresarial, que começa a ter curso. Todas essas mudanças
já podiam ser observadas nos países de economia central, seja os da
União Europeia, especialmente com o Processo de Bolonha (1999),
mas também se apresentavam de modo bastante acabado no Canadá
e, principalmente, nos Estados Unidos da América.
A terceira etapa tem início em meados do primeiro mandato da
gestão do presidente Lula da Silva e prossegue em parte do governo
de Dilma Rousseff (de 2011 a 2013, pelo menos). Nessa etapa, a
contrarreforma continua por meio de um g rande número de leis, decretos
e portarias, regulando o trabalho docente, os currículos, as avaliações etc.
Sua principal característica, no entanto, seria a emergência de programas
com forte potencial de mudança institucional e a expansão da educação
superior, como o Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais (REUNI) (BRASIL, 2007) –
que inaugura, em larga escala, formas de nanciamento por meio de
contratos de gestão –; o incremento à educação a distância (EAD),
em especial com a criação do sistema Universidade Aberta do Brasil
(UAB) (BRASIL, 2006); a proliferação de cursos tecnológicos nos
moldes dos community colleges. Especicamente quanto à rede privada,
o redimensionamento do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES)
3 e a generalização das isenções scais, previdenciárias e de renúncia
scal pelo Programa Universidade para Todos (PROUNI) (BRASIL,
2005a) foram as principais iniciativas, cobertas com fundo público, que
se pode responsabilizar pela expansão.
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Uma síntese dessas três etapas revela que, indiscutivelmente,
a educação superior brasileira viveu um amplo processo de expansão
após 1995. Se tomarmos os dados referentes às matrículas, por exemplo,
temos a seguinte situação: entre 1995 e 2014, ocorreu um crescimento
no número total de matrículas (presenciais e à distância), que passou
de 1.759.703, em 1995, para 7.828.013, em 2014, com um crescimento
aproximado da ordem de 345%, num espaço de tempo de 20 anos4.
Se, por um lado, essa expansão deve ser percebida como positiva
por ampliar o acesso da população ao ensino superior, é necessário
atentar para alguns efeitos perversos desse mesmo processo, pois,
indiscutivelmente, o que mais se expandiu no período foram as matrículas
nas instituições privadas, que tiveram um crescimento da ordem de 454%,
enquanto na rede pública o aumento foi de 180% somente5.
Sempre é bom lembrar que o critério para o oferecimento
de cursos e de matrículas nas instituições privadas são suas planilhas
nanceiras. Assim, a expansão se dá sob a inuência direta de demandas
mercadológicas, a partir dos interesses da burguesia desse setor de ampliar
a valorização do seu capital, com a venda de serviços educacionais.
Isso faz com que haja uma enorme quantidade de cursos de
forte apelo mercantil oferecidos nas regiões mais ricas do país e que
dão pouquíssimas contribuições para o desenvolvimento econômico,
social e cultural do país ou da própria região, ao mesmo tempo em
que locais e áreas prossionais que mais necessitam de reforços são
abandonados. O critério financeiro atinge, também, a qualidade
dos cursos oferecidos, restringindo as possibilidades prossionais
dos estudantes e a contribuição que essas IES poderiam dar para o
desenvolvimento das diferentes áreas de conhecimento (MANCEBO;
VALE; MARTINS, 2015, p. 35).
Consideramos importante acrescentar uma quarta etapa às
denidas por Silva Júnior e Schugurensky (2014), correspondente ao
m do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff à presente
data. O que se verica nesse período diz respeito à “adaptação” do país
à conjuntura de crise internacional. No nosso entendimento, trata-se de
uma crise capitalista mundial, uma crise orgânica e geral do capitalismo,
cujo marco foi o ano de 2008. Os impactos dessa crise manifestam-
se de forma diferenciada em termos geográcos e temporais, mas é
inegável que, no último período, impactou com força a América Latina
e o Brasil, em movimentos estruturais que abalaram as bases sociais
da própria reprodução política, impossíveis de serem analisadas em
profundidade nesse texto. Em linhas gerais deve-se registrar:
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1 - A evolução da política nacional ocorre num pano de fundo
de uma nova situação geopolítica na América Latina. Na virada do
milênio, havíamos assistido a um certo giro à esquerda. De acordo
com Domingues (2015), esse giro foi “modesto em seus resultados”,
mas teve o mérito de remar contra a maré global, e “ele signicou
a implantação de um social liberalismo de cunho progressista,
tendo em seu centro políticas de equidade que suavizaram de forma
humanitária e economicamente estimulante as agruras das massas de
miseráveis da região mais desigual do mundo”. Implicou, ainda, uma
maior centralidade de Estados “na coordenação da vida econômica e
um distanciamento dos ditames mais severos do capital nanceiro”,
sem que a igualdade propriamente tenha sido alcançada.
Esse giro atingiu seus limites e, nda a bonança das commodities e a fartura de
recursos que proporcionou durante a década de 2000, somente enfrentamentos
sociais distributivos mais aguçados poderiam permitir que [a economia] retomasse
seu ímpeto, levando a políticas sociais mais universalistas e custosas, bem como
a uma mudança mais decidida de modelo econômico. (DOMINGUES, 2015)
2 - Tais enfrentamentos não ocorreram e a vitória do rentismo,
institucionalizado na crise de 2008, só aprofundou as contradições
estruturais da ordem burguesa no plano mundial, principalmente, no
que tange ao orçamento público, impondo a adoção das políticas de
ajuste (austeridade) neoliberal.
3 - Inicialmente, os ajustes foram aplicados nos países centrais
do capitalismo, mas, a partir de meados da década de 2010, assistimos
à intensificação da ofensiva neoliberal na América Latina, sob a
retomada da inuência hegemônica dos Estados Unidos na região.
Nessa conjuntura complexa, na qual se articulam crise econômica
e crise política, as instituições de ensino superior (especialmente as
públicas) veem-se afetadas, primeiramente, pela recessão e cortes
sistemáticos advindos da federação e de diversos entes federativos.
Nas instituições de educação superior públicas, o movimento
de expansão de matrículas e cursos – como foi o caso do REUNI
–, verificado pelo menos até 2013, é refreado em função dos
ajustes, deixando às instituições a amarga tarefa de reconfigurar
diversos procedimentos internos, para fazer frente à expansão (do
período anterior) que lhes legou mais alunos, cursos, campi e forte
interiorização, sem o devido nanciamento.
A estratégia mais imediatamente observada é a dos cortes de
verbas de manutenção e renovação, abandonando a infraestrutura física
dos campi. Todavia, as diculdades não se esgotam aí. Outro movimento
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perceptível nas IES públicas de acomodação à atual conjuntura refere-se
ao grande peso que tem sido dado ao ensino, em detrimento das demais
atividades próprias à universidade. Por seu turno, o ensino – muitas
vezes aligeirado, voltado às exigências de mercado ou ainda mediante o
uso da educação a distância (EAD) – nem sempre se encontra adaptado
às necessidades dos novos estudantes que adentraram na universidade
pública, criando sérios problemas de evasão.
Na rede pública, as possibilidades de expansão parecem recair
nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), com
forte direcionamento às demandas do mercado. Temos por hipótese
que essa rede, no campo público, poderá manter um certo ritmo
de expansão, pois é composta por instituições que racionalizam o
uso de recursos nanceiros, o que é almejado por qualquer Estado
capitalista, em tempos de crise.
Para finalizar a análise de acomodação das IES públicas
(federais e estaduais) à atual conjuntura e aos cortes, é preciso
mencionar as diversas estratégias de desregulamentação e ataque aos
direitos trabalhistas que vêm ocorrendo. Diversos governos, além do
federal, têm adotado, de forma mais recorrente, “alternativas” para
reduzir o custo da força de trabalho, por meio da implementação de
variadas estratégias de precarização, com vistas à transformação das
relações de trabalho e redução da folha de pagamento. Uma situação
que vem se generalizando e que está a requerer investigações mais
aprofundadas refere-se à terceirização da força de trabalho auxiliar
– mas que poderá ser estendida para os trabalhadores das atividades
ns –, com contratos com empresas que negam aos funcionários,
inclusive, direitos trabalhistas básicos e proteção.
Quanto às IES privado-mercantis, os efeitos da crise não são os
mesmos. Na realidade, são opostos. Conforme detalhado diagnóstico
elaborado por Sguissardi (2015, p. 103) “as IES do país com fins
lucrativos e, em especial, as mantidas por empresas de capital aberto e
envolvidas no mercado acionário, [...] hoje, apresenta-se como o setor
de maior rentabilidade dentre os setores atuantes na BM&FBovespa”.
O mesmo autor, acompanhando a evolução do índice do Ibovespa
e do valor das ações, em 2013 e 2014, conclui “[...] em dois anos a
Kroton teve uma valorização de suas ações na Bolsa de 314,87%; a
Estácio, 240,97%; e a Anhanguera, nos dois anos que correram até 28
de março de 2014, 85,89%” (SGUISSARDI, 2015, p. 122).
Esse diferencial no enfrentamento da crise pode ser atribuído
a vários fatores. Primeiramente, à forte indução estatal. Conforme
Reis (2016, p. 25):
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Em 2014, o governo federal liberou R$ 13,154 bilhões para o Fies e o Prouni.
Essas despesas passaram a representar 12,32% do orçamento total sob supervisão
do MEC. Em termos nanceiros, os recursos destinados à expansão da educação
superior privada, por meio do Fies e do Prouni, cresceram 880,42%: de R$ 1,342
bilhão, em 2003, para R$ 13,154 bilhões, em 2014.
Adicionalmente, essas empresas também introduziram
inovações gerenciais (enxugamento de quadros, precarização do
trabalho)6 e têm adotado um ensino de qualidade discutível, inclusive
com o uso intensivo da modalidade a distância.
Para concluir esse diagnóstico preliminar da expansão,
podemos emitir a síntese apresentada por Silva Júnior e Spears (2012),
que nos parece bastante atual. Para esses autores, o movimento
de “acomodação” da educação superior brasileira ao capitalismo
monopolista contemporâneo (de predominância financeira)
“desdobra-se em duas largas dimensões concomitantes: [...] o processo
de mercantilização da produção do conhecimento e a certicação
em massa dos estudantes de graduação e de pós-graduação” (SILVA
JÚNIOR; SPEARS, 2012, p. 9), que desenvolveremos a seguir.
A FORMAÇÃO MASSIFICADA
Como já discutimos, a predominância nanceira põe exigências
ao Estado, bem como demanda novos ordenamentos jurídicos para
as políticas públicas, incluindo as destinadas à formação na educação
superior. Em linhas gerais, esse novo ciclo de movimentação do
capital exige do futuro trabalhador mais produtividade, exibilidade
para adaptação às novas formas de organização do trabalho e às novas
formas de gestão, competências gerais para lidar com a introdução
de avanços tecnológicos, bem como uma ampla disposição para
suportar a intensicação e precarização do trabalho humano, hoje
presente na maior parte das ocupações, exigindo dos trabalhadores
um redobrado equilíbrio físico e subjetivo.
Obviamente, essas diversas e complexas aptidões sofrem
imensas variações conforme o campo de trabalho considerado
e, consequentemente, demandam formações também variadas.
No entanto, de um modo geral, pode-se identicar dois grandes
processos de formação que qualicam tipos diferentes de mão de
obra, exigidos por diferentes patamares da economia em tempos
de predominância nanceira: (1) a formação necessária a empregos
que exigem mais qualicação, que normalmente são mais estáveis
e que pagam melhor, e (2) a formação da maioria, designada por
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certicação em massa, destinada a empregos mal pagos, precários,
com uma maior exploração da força de trabalho e que exigem um
menor (ou nenhum) nível de conhecimento técnico. A formação
de primeiro tipo ocorre principalmente na pós-graduação stricto
sensu e em cursos mais valorizados socialmente das universidades de
melhor qualidade. A de segundo tipo é fornecida por cursos de pós-
graduação lato sensu e pelo restante da graduação.
Ainda sobre essa questão, deve-se destacar a dinâmica do
setor privado, que detém a maior taxa de matrículas na graduação –
aproximadamente 75% das matrículas da educação superior presenciais
e a distância –, conforme publicação do último Censo da Educação
Superior (BRASIL, 2015). São empresas e, enquanto tal, precisam
ter retorno lucrativo, seu parâmetro não é o interesse público geral, a
importância do ponto de vista cultural, cientíco e político, e nem o
suprimento de força de trabalho para o mercado7. As análises de Leher
e Motta (2014) sintetizam muito bem a especicidade do setor privado:
Inexiste uma relação direta entre a qualidade da força de trabalho requerida pelo
capital e a expansão do serviço educacional no setor privado. Este setor não
objetiva necessariamente suprir a força de trabalho para os diversos ramos da
produção, pois sua racionalidade é outra: a venda de serviços com ns de lucro
para os fundos de investimentos e bancos. [...] Entretanto, tal descompasso
não é necessariamente irracional para os interesses gerais do capital. Por sua
própria natureza mercantil [...], os processos de socialização empreendidos pelas
corporações educacionais são congruentes com a pedagogia demandada pelo
capital, difundindo valores do capital humano e do capital social e, ademais, a
formação do Exército Industrial de Reserva (EIR) é altamente funcional para o
capital. (LEHER; MOTTA, 2014, p. 61, grifo nosso)
A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO MERCANTILIZADA
O desenvolvimento, combinado e desigual, do capitalismo
em escala mundial e de predominância nanceira também introduziu
a mercantilização na produção e na disseminação do conhecimento.
Sem dúvida, este foi o campo da educação superior mais afetado pelas
mudanças econômicas, tendo curso na Europa, América Latina e no país
que teve precedência nesse processo: os Estados Unidos da América.
Burawoy (2015, p. 43) observa que a
[...] invasão do mercado na produção e na disseminação do conhecimento
combinou-se com sistemas nacionais de educação superior preexistentes para
produzir resultados muito diversos, gerando uma série de crises que impactam
diferentes níveis de cada sistema de forma distinta.
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Todavia, há semelhanças entre os diversos sistemas, sobre as
quais nos deteremos.
Nos EUA, a colaboração entre a universidade e as indústrias já
ocorre há algum tempo. No entanto é, sobretudo, a partir da década de
1980 que essa associação toma um impulso signicativo, aumentam
os níveis de patentes e licenças de conhecimentos produzidos na
universidade e sua comercialização ocorre mais rapidamente.8
Na Europa, conforme Lima (2015), a análise de documentos de
política cientíca e de governação da educação superior, provenientes de
instituições internacionais e supranacionais, designadamente da União
Europeia, revela, com frequência, concepções utilitaristas e instrumentais
quanto à produção do conhecimento cientíco. A análise indica, ainda,
forte indução à “cultura empresarial orientada para o mercado e o lucro,
e ainda pelo exemplo das universidades empreendedoras e inovadoras
dos Estados Unidos da América” (LIMA, 2015, p. 12).
No Brasil, deve-se destacar, preliminarmente, que esse
movimento de mercantilização da produção do conhecimento não é
encontrado em todas as universidades e nem em todas as instituições
públicas e isso porque somente algumas delas têm pesquisa e pós-
graduação institucionalizadas plenamente. São essas IES, ou
grupos dentro delas, que têm sido instadas à produção de um novo
conhecimento: “o conhecimento matéria prima9, passível de ser
transformado em produtos, processos e serviços” (SILVA JÚNIOR,
2016, p. 125) ou o tipo de conhecimento que esteja relacionado à
possibilidade de lucros imediatos no âmbito econômico. Leher (2015b),
estabelecendo paralelo com o conhecimento estratégico desenvolvido
nos países do núcleo hegemônico do capitalismo, chega a armar que
as instituições de pesquisa brasileiras ajustam-se “à mera condição de
prestadoras de serviços de adaptação de tecnologias inscritas em bens
de capital, bem como de serviços e processos que corporações não
desejam realizar no [seu] país” (LEHER, 2015b, p. 31).
De todo modo, trata-se de um conhecimento preponderante-
mente aplicado, guiado pela economia, que é protegido por patentes,
direitos autorais e marcas registradas e que é orientado para um
tratamento em que Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) formem
um trinômio indissociado10. Esse anseio de articulação da universidade
ao sistema produtivo remonta a períodos anteriores, à ditadura militar
no Brasil (1964-1984), mas os passos mais incisivos para tal só são
dados a partir do governo de FHC.
Conforme histórico traçado por Oliveira, Ferreira e Moraes
(2015), a Lei de Diretrizes e Bases – LDB – (Lei n° 9.394, de 20
de dezembro de 1996), vincula a educação escolar mais fortemente
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ao sistema produtivo, indicando o desenvolvimento de competências
para o mundo do trabalho (BRASIL, 1996). Adicionalmente, a
articulação universidade/sistema produtivo, pautada agora pela busca
constante da inovação, foi ainda mais intensicada no Plano Nacional
de Educação – PNE – (2001-2010, aprovado pela Lei nº 10.172, de 9
de Janeiro de 2001). As discussões que zeram parte da 2ª Conferência
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (2ª CNCTI), ocorrida em
2001, também foram razoavelmente orientadas nessa direção, tanto
que o termo “inovação” passou a fazer parte do nome do próprio
evento. Os autores assim analisam a questão:
[...] a inovação deixaria de ser um aspecto pontual e aleatório na produção de
C&T, para se tornar o carro-chefe, a raison d’être, dos investimentos do país nesse
setor e também das políticas públicas para as demais áreas. O que se propunha era
uma estratégia centrada no papel do conhecimento gerado por diferentes atores,
alicerçada na aproximação cada vez maior entre os empresários e a universidade
brasileira, para a constituição de um sistema nacional de CT&I. (OLIVEIRA;
FERREIRA; MORAES, 2015, p.138)
Assim, desde a segunda metade dos anos 1990, intensicaram-
se no país a discussão e as ações políticas voltadas para inovação,
[...] sobretudo, por meio de criação de marcos legais [mas], também, mediante
incentivos scais, subvenção, crédito subsidiado e criação de incubadoras de
empresas, polos e parques tecnológicos, apoio à pesquisa e desenvolvimento,
compras governamentais em áreas consideradas prioritárias. (OLIVEIRA;
FERREIRA; MORAES, 2015, p. 127)
Os governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff deram
continuidade a essa tendência, buscando viabilizar a aproximação
entre a educação superior e as empresas. Em 2 de dezembro de
2004, foi aprovada a Lei n° 10.973, também conhecida como “Lei
da Inovação”, que dispunha sobre incentivos à inovação e à pesquisa
cientíco-tecnológica, promovia a criação e a consolidação de laços
entre universidades, institutos tecnológicos e empresas, estimulando
a participação de institutos de ciência e tecnologia no processo de
inovação empresarial. Além disso, a Lei de Inovação criou todo um
arcabouço jurídico capaz de viabilizar a incubação de empresas no
espaço público ao estimular a utilização da infraestrutura pública
para ns de desenvolvimento tecnológico privado. Ela facultava aos
docentes o recebimento de incentivos nanceiros ao desenvolverem
projetos em parceria com empresas, assim como autorizava o
afastamento dos docentes de suas atividades acadêmicas para se
dedicarem às inovações nas empresas.
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A tendência a aprofundar o vínculo do conhecimento
produzido nas universidades com o sistema produtivo também é
explícita na 3ª e na 4ª Conferência de Ciência, Tecnologia e Inovação,
ocorridas em 2005 e 2010, respectivamente, assim como no IV
Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG) 2005-2010 (BRASIL,
2005b) e no V Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG) 2011-
2020 (BRASIL, 2010). Sinteticamente, os dois últimos documentos
propõem uma exibilização do modelo de pós-graduação, de modo a
atender aos setores acadêmico e não acadêmico, sugerindo a formação
de técnicos e pesquisadores especializados para atuar nas empresas
públicas e privadas. Em especial, o último PNPG é mais incisivo na
convocação da universidade e de sua estrutura acadêmico-cientíca,
técnica e pedagógica a contribuir na inserção do Brasil num sistema
econômico mundial e competitivo por mercados, estimula, ainda,
a diminuição temporal entre a produção de conhecimento e a sua
apropriação (pública ou privada) (BRASIL, 2010, p. 309). Pretende
fazer do conhecimento e da tecnologia uma poderosa ferramenta
do desenvolvimento econômico e social e “neste quadro a parceria
entre a Universidade, o Estado e as empresas dará lugar ao chamado
modelo da tríplice hélice” (BRASIL, 2010, p. 18).
Um último documento merece citação: a Lei nº 13.243,
de 11 de janeiro de 2016, chamada de Marco Legal da Ciência,
Tecnologia e Inovação, que altera a Lei de Inovação Tecnológica.
O novo Marco permite, entre outros aspectos, que professores
em regime de dedicação exclusiva desenvolvam pesquisas dentro
de empresas e que laboratórios universitários sejam usados pela
indústria para o desenvolvimento de novas tecnologias (em ambos
os casos, com remuneração). Autoriza que a União nancie, faça
encomendas diretas e até participe de forma minoritária do capital
social de empresas com o objetivo de fomentar inovações e resolver
demandas tecnológicas especícas do país. Digno de destaque é que
as empresas envolvidas nesses projetos podem manter a propriedade
intelectual sobre os resultados (produtos) das pesquisas. O novo
código é bastante recente e requer acompanhamento rigoroso para
que se possam analisar os impactos que trará para a produção do
conhecimento e para a universidade como um todo. O Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
(ANDES-SN) foi incisivo na crítica à nova legislação porque ela:
[...] aprofunda a privatização da ciência e tecnologia públicas, legalizando parcerias
público-privadas na área e possibilitando transferência de recursos, estrutura,
propriedade intelectual e pessoal de instituições públicas para usufruto da iniciativa
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privada, [...] alarga as vias de privatização do fundo público na área, prejudicando
o caráter público de universidades e institutos, [possibilita] a criação de Instituições
Cientícas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) com estatuto de Organizações
Sociais (OS), [que poderão] captar recursos públicos e privados e intermediar a
prestação de serviços entre as instituições públicas e o mercado, [...] estimula que
os docentes se tornem empreendedores, criando ICTs dentro das instituições para
captar recursos. [Trata-se de] um avanço vigoroso do processo de privatização dos
recursos humanos e patrimônio cientíco públicos. (ANDES-SN, 2016, p. 1)
Deve-se registrar que para inovar é preciso rigoroso
planejamento, pois o retorno dos recursos investidos, o registro de
patentes e a venda de novos produtos ou serviços, que orientam parte
signicativa dos esforços desenvolvidos nas universidades brasileiras,
devem gerar resultados de curto prazo.
Conforme análise de Bianchi e Braga (2009), com o aumento
da concorrência em escala global, com a compressão do ciclo de
produção real de valor e o consequente estabelecimento de novos
critérios de governança corporativa:
[...] os diferentes sistemas nacionais de pesquisa – sejam eles estatais, semipúblicos
ou privados – passaram a ser pressionados por resultados de curto prazo. Os
investimentos tangíveis ou intangíveis em pesquisa distanciaram-se daquela
experiência histórica sustentada por um tipo de compromisso com horizontes
de longo prazo que foi assegurado até meados dos anos 1980, tanto nos países
de capitalismo avançado quanto em alguns países de capitalismo semiperiférico.
(BIANCHI; BRAGA, 2009, p. 2)
Nesse processo, nos constrangimentos da produtividade
acadêmica rápida (e aligeirada), muitos docentes se veem forçados
a fazer a opção de aderir às demandas particularistas impostas em
editais de nanciamento à pesquisa, oferecendo serviços às empresas
e a setores públicos, muitos transformados em organizações sociais
(entidade pública de gestão privada). É, até certo ponto, uma forma
de minimizar os impactos dos cortes nos orçamentos das instituições,
que “tem forçado estas a uma adaptação subordinada ao mercado, às
exigências da divisão do trabalho e à adoção de modos de organização
e de gestão típicos do mundo econômico” (LIMA, 2015, p. 14).
Os novos valores que passaram a guiar as instituições poderiam
ser sintetizados pela privatização do conhecimento, em busca de
lucros pelas universidades e a reivindicação das corporações em ser
prioridade antes do cidadão. A relevância econômica sobrepõe-se,
claramente, à relevância cognitiva, social e cultural do conhecimento.
Para tal, é exigido um professor empreendedor, disposto a produzir
uma ciência útil e comercializável, que minimiza os efeitos dos cortes
e ajustes perpetrados pelo Estado e, correlativamente, aumenta a
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dependência da universidade em relação ao mercado e às grandes
corporações empresariais e financeiras. Fato é que a universidade
pública brasileira que produz conhecimento alterou radicalmente sua
cultura institucional ao passar por tantas mudanças de perl e se ver
frente a tantos novos compromissos, para os quais não foi criada e que
a enraíza mais e mais num capitalismo de predominância nanceira.
A leitura dos documentos sobre o tema (e de seus analistas
críticos) deixa a amarga sensação de que se trata de políticas impostas,
seja pela indução provocada pelos diversos órgãos de nanciamento
ou, ainda, pelas rigorosas avaliações, dentre as quais se destaca a
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), em relação à pós-graduação. Para sobreviver, é obrigatório
inovar, principalmente por meio de uma forte vinculação com o
sistema produtivo, ou melhor, com as empresas!
Todavia, essa é somente uma parte do conto, pois se deve
reconhecer que a subordinação não é uma imposição externa à
universidade, que mecanicamente é seguida pelos que nela trabalham,
mas resulta da adesão de uma parcela (cada vez mais considerável)
de docentes a essa refuncionalização da universidade em prol das
demandas da economia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A documentação analisada neste texto, bem como a leitura
crítica de autores que têm pesquisado a educação superior no Brasil,
tendem a demonstrar, com razoável grau de evidência, que, ao longo
das últimas décadas, especialmente após 1995, promoveu-se uma
incessante busca pela expansão do sistema de educação superior
no país, mas traduzida, no que tange à formação, em massicação,
um processo de “universalização” que reduz ao máximo a formação
às necessidades estritas do mercado de trabalho (BRUNO, 2011).
Obviamente, a massicação apresenta fortes variações conforme a
organização acadêmica (pública ou privada), a modalidade de ensino
(presencial ou a distância), o tipo de curso (mais ou menos nobre),
o nível de ensino (graduação ou pós-graduação) e até variações
geográcas (que infelizmente não puderam ser exploradas no artigo).
Defendemos, ainda, a hipótese de que, a partir de 2014 (m
do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff), a situação de
expansão inverteu-se, pelo menos para o polo público do sistema de
educação superior, em função da adaptação do país à conjuntura de crise
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estrutural, levando as IES a amargarem com a forte recessão e cortes
sistemáticos advindos da federação e de diversos entes federativos.
Ao tratar da produção do conhecimento, demos destaque
à mercantilização, à maior vinculação entre as universidades e
as empresas, buscando compreender os nexos mais amplos do
controle e exploração da produção do próprio conhecimento como
mercadoria que, juntamente com o movimento de nanceirização e
desregulamentação, colabora para que o capitalismo se (re)organize.
Em síntese, por um lado, a expansão da economia em âmbito
global está associada à incorporação de avanços tecnológicos que
demandam conhecimentos cada vez mais especializados, rapidamente
aplicáveis e que resultem em mais lucros para a fração da burguesia
envolvida. Por outro lado, requer a exigência de nova qualicação
da força de trabalho e diminuição de seu custo, remetendo, com
frequência, a processos de mera massicação.
Tanto na formação quanto na produção do conhecimento, o
quadro é bastante desanimador e a questão que nos colocamos, para
terminar, vai na direção da formulada por Oliveira, Ferreira e Moraes
(2015, p. 156): “como sobreviver no meio acadêmico sob essa pressão e,
ainda por cima, pensar criticamente?” Como romper o silêncio cúmplice,
quanto aos planos, programas e atividades ociais, que sugerem que a
universidade se converta em agência meramente executora e acrítica em
relação às políticas públicas de competência do Estado?
A resposta não é simples, obviamente. Preliminarmente,
consideramos que para tornar a universidade relevante, tanto em termos
sociais quanto em termos cientícos, urge uma reconciliação dos seus
intelectuais com o conhecimento crítico, reexivo e recuperador da
missão histórica da universidade no processo civilizatório, por isso
mesmo, um conhecimento insubmisso aos interesses mercantis. Em
seguimento, seja qual for o movimento de sublevação, ele deve ser
coletivo. Por m, há que se considerar que a problemática universitária
atual nos países capitalistas dependentes, como é o nosso caso,
apresenta proporções mais devastadoras do que nos países do centro
do capitalismo. A reversão desse quadro de heteronomia “não será
possível nos espaços estritamente universitários e, tampouco, apenas
pelos protagonistas diretos da universidade, os professores, técnicos
e administrativos e os estudantes” (LEHER, 2015a, p. 11). Assim,
gostaríamos de acompanhar a hipótese desenvolvida por Leher (2015a,
p. 4) de que “sem os movimentos sociais antissistêmicos a defesa de
um lugar estratégico para a universidade pública, crítica e autônoma
no projeto de nação permanecerá débil e, possivelmente, inviável”.
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NOTAS
1 “Essa dinâmica, altamente concentradora de riqueza, de acordo com Chesnais (1996),
nutre-se de dois mecanismos: a formação de capital ctício, por meio da ‘inação do valor
dos ativos’ nanceiros, e a transferência efetiva de riquezas para a esfera nanceira. Tal
transferência tem no pagamento da dívida pública e nas políticas monetárias associadas a
este um dos seus mecanismos mais importantes. Parcelas cada vez maiores do orçamento
dos Estados nacionais têm sido destinadas, por meio da dívida pública, para o circuito
da valorização do capital financeiro, em proveito de um restrito grupo de rentistas e
algumas grandes empresas transnacionais, beneciários do processo de nanceirização
mundializada” (REIS, 2015, p. 19). O mesmo autor calcula que os governos Lula e Dilma
destinaram cumulativamente, por meio do Orçamento da União, R$ 11,029 trilhões para
a dívida pública (juros, amortizações e renanciamento). Esse montante representou, em
média, praticamente metade (49,70%) dos recursos orçamentários da União, destinados para
todas as áreas de atuação governamental (REIS, 2015, p. 23).
2 O novo acordo, que seria denominado Acordo sobre Comércio de Serviços (AsCS) ou
Trade in Services Agreement (TiSA), atualizaria o Acordo Geral de Comércio e Serviços (AGCS)
ora em vigor. Ele deve ter sido discutido na conferência geral da OMC, ocorrida em Nairobi,
Kênia, de 15 a 18 de dezembro de 2015. Até o fechamento desse texto não se tinha notícia
sobre seu desfecho.
3 Na realidade, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) foi criado pela Lei nº 10.260,
de 12 de julho de 2001, portanto em data anterior à etapa que se está discutindo no texto.
Todavia, em 2010, um conjunto de facilidades foram criadas, de modo que seu uso pôde ser
bastante ampliado, por estudantes da rede privada.
4 Todos os dados estatísticos apresentados neste texto foram retirados de: BRASIL. MEC. INEP.
Sinopses estatísticas do Censo da Educação Superior: 1995 a 2015. Brasília: MEC. Disponível em: <http://
www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/default.asp>. Acesso em: 2 jan. 2016.
5 Sobre esse aspecto, deve-se registrar que o crescimento do setor privado sobre o público
advém desde os tempos da ditadura civil-militar (1964-1984). A situação política daquele
período requereu ajustes na educação superior, o que foi feito pela reforma universitária
instituída pela Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. Essa legislação reforçou a atuação do
então Conselho Federal de Educação (CFE), com forte composição privatista, e as facilidades,
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Educação em Revista|Belo Horizonte|v.32|n.04|p. 205-225 |Outubro-Dezembro 2016
os incentivos scais e tributários para a abertura de IES privadas foram incessantemente
criados e recriados. Fato é que, ao m da ditadura, as matrículas privadas já ultrapassavam em
muito as oferecidas nas IES públicas (MANCEBO; VALE; MARTINS, 2015, p. 35).
6 Valdemar Sguissardi (2015, p. 114) destaca o papel dos fundos de investimento privado
(private equity), principalmente transnacionais, com matriz sediada nos EUA, no “preparo”
das primeiras empresas brasileiras que visavam abrir o capital e fazer oferta pública inicial
de ações (Initial Public Offering – IPO –) na bolsa de valores. Esses fundos investiram
quantias altíssimas em empresas educacionais, induziram processos de reestruturação nessas
instituições, visando à redução de custos, racionalização administrativa e o uso de gestão
claramente empresarial.
7 Para o aprofundamento dessa temática ver Rodrigues (2007).
8 Para um maior aprofundamento da situação das universidades norte-americanas, ver o
texto de João dos Reis Silva Júnior, Daniel Schugurensky e Juliana Borges de Araujo (2015)
ou ainda João dos Reis Silva Júnior (2016). Para esses autores, a origem da tendência de
aproximação das universidades norte-americanas com as empresas advém da pressão que
as universidades estatais sofreram (e ainda sofrem) para conseguir nanciamento que lhes
permitisse substituir os cortes estatais. Destacam, ainda, que essas mudanças têm uma
dimensão legislativa e discutem os dois principais casos: a promulgação da Bayh-Dohle Act
de 1980 e a Competes Act de 2007. O Bayh-Dole Act, ou Lei de Patentes e Licenciamentos,
criou uma política de patentes uniforme entre as muitas agências federais que nanciam a
investigação nos Estados Unidos. Ela permitiu que pequenas empresas e organizações sem
ns lucrativos, incluindo as universidades, retivessem a propriedade das invenções obtidas
com nanciamento do governo federal em programas de investigação (SILVA JÚNIOR;
SCHUGURENSKY; ARAUJO, 2015, p. 161-162).
9 A expressão conhecimento matéria-prima foi adotada por João dos Reis Silva Júnior (2016)
numa referência ao trabalho de Sheila Slaughter e Gary Rhoades (2010), que discutem
o conhecimento do tipo raw material, para se referir a aquelas produções que podem ser
transformadas em produtos, processos ou serviços com o objetivo do aumento da
produtividade econômica.
10 Segundo Silva Júnior (2016), nos EUA, mais recentemente, as corporações passaram
também a proteger os artigos, livros e material didático.
Submetido: 04/04/2016
Aprovado: 29/08/2016
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