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A HISTÓRIA DO LADO DE LÁ: UMA LEITURA DE MEMÓRIAS DE ALDENHAM HOUSE

Authors:
É
A HISTÓRIA DO LADO DE LÁ:
UMA LEITURA DE
MEMÓRIAS DE
ALDENHAM HOUSE
Giselle Larizzatti Agazzi
Universidade de São Paulo
este um romance, antes de tudo, antiimperialista.
Memórias de Aldenham House
, último romance escrito por Antonio
Callado e publicado em 1989, recompõe os tempos anteriores à chamada
experiência democrática pela qual o Brasil passou entre 1945 e 1964. Em
oposição a todos os outros oito romances do ficcionista e jornalista, sempre
contemporâneos ao momento narrado, este é o único que remonta um pas-
sado mais longínquo, retrocedendo exatos 49 anos da história mundial.
A primeira narrativa de sucesso do autor, publicada em 1967,
Quarup
firma-se no conjunto de sua obra romanesca como uma espécie de livro protéico
do qual as mais diversas possibilidades de leitura surgem, porque rascunha
inúmeros veios que vão do confronto entre civilizações à crise existencial dos
tipos representados. É também proteiforme, oferecendo-se aos romances sub-
seqüentes como matéria primordial a ser trabalhada e desdobrada.
Desse texto utópico,
Memórias de Aldenham House
parece afirmar tal
característica ao poder ser lido como um dos seus muitos reflexos, desdo-
brados em aspectos romanescos que envolvem o leitor numa teia de remor-
sos, culpas e impossibilidades e que fazem emergir a mais profunda melan-
colia. Nesse sentido, a narrativa compõe uma espécie de mito fundador às
avessas. Como se o ficcionista, assumindo a maturidade que só os anos
conferem para a análise acurada das Histórias, coletiva e pessoal, tentasse
entender por quais motivos nem Brasil, nem América Latina, construíram
sociedades livres e justas, emperrando o empenho das classes ilustradas
190 via atlântica n. 6 out. 2003
que viam a literatura como um instrumento de humanização e de transfor-
mação das sociedades. É desse lugar que escreve Antonio Callado.
Desenvolvendo-se em torno do tema da construção da memória histó-
rica, o escritor engendra aqui tantas outras suas obsessões: o universo fe-
minino, o arcaico
versus
o moderno, a crítica aos governos autoritários, a
problematização da construção da identidade individual e coletiva, as possi-
bilidades e limites da Revolução Comunista, a justiça social. E define, em
toque de despedida, o motivo fundamental que parece ser a linha de força
dessa sua obra, a História vista a partir das catástrofes. Do ponto de vista
da construção da memória, é este o aspecto a ser analisado.
Memórias
é a história de um grupo de latino-americanos que busca exílio
na Inglaterra nos anos de 1940 por causa da repressão política em seus países.
E é um gênero híbrido
1
. A narrativa apresenta-se como sendo memorialística
sem entretanto ser apenas. Desenvolve estratégias próprias ao romance polici-
al, mas não se caracteriza enquanto tal, porque termina por parodiar as cate-
gorias necessárias para a elaboração do gênero. Arrisca-se no romance realis-
ta, ao procurar recompor, através das particularidades dos personagens, o con-
texto histórico latino-americano, mas também não se firma nessas paragens,
porque a matéria narrada só pode ser conhecida se o leitor procurá-la no que o
livro procura ocultar. Assim,
Memórias
não é um romance realista, não é
policial e muito menos biográfico. É uma narrativa ficcional que continua a
desafiar o leitor moderno, exatamente por não se enquadrar em um único
rótulo definidor e definitivo. Tal composição coloca o livro em um lugar que
está entre muitos tipos, o que, desconcertando o público, exige que ele se des-
prenda de esquemas interpretativos, lançando-se à composição específica da
obra, que se engendra à margem da tradição do romance brasileiro.
Se o narrador, para Walter Benjamin (1994), retira da experiência o
que ele conta, o narrador de
Memórias
tenta compreender através do que
ele escreve as experiências por que passou e que ouviu: Perseu Blake de
Souza, o jornalista e comunista perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas,
1
[Memórias] “Chegou mesmo a figurar como livro de memórias, nas listas dos mais vendidos e
nem sempre mais lidos, a começar por quem deveria ler antes de anunciar, deixando-se enga-
nar pelo título evidente de quem nem sequer o abriu” (In: LEITE, 2001, p. 34-50)
A História do lado de lá:... 191
registra suas memórias dos dias passados nos idos dos anos de 1940, na
Inglaterra, junto a outros exilados políticos latino-americanos.
A esse foco narrativo, somam-se o narrador observador, o narrador
onisciente, os narradores testemunhas, Elvira, a chilena de descendência
irlandesa, tradutora de James Joyce, e Facundo, o paraguaio nacionalista,
herói da Guerra do Chaco e pesquisador da Guerra de seu país contra a
Tríplice Aliança, também jornalista e comunista. Porque compõe um qua-
dro muito mais crítico e irônico do que o memorialista conseguiria, tal
multiplicidade de pontos de vista permite ao leitor extrapolar os limites do
olhar de Perseu, para Elvira, “frívolo” e “imaturo”:
Sem dúvida encontrarei um ou outro brasileiro na BBC mas estarei
sobretudo cercado de hispano-americanos, cucarachas. O diário terá a
virtude simbólica de me manter a mim em minha especificidade brasi-
leira, em nossa diferenciação. Por pouco que falemos nisto, pois parece
arrogância, a verdade é a verdade, a História é a História, e, como dizia
meu avô Souza, um homem é um homem e um gato é um gato. Há mais
semelhança entre quaisquer dois países hispano-americanos – todos,
sem exceção, caudilhescos e militaristas – do que entre um deles e o
Brasil. Vargas, proveniente do sul espanholado, é, para nós, um desvio
de rota, um enxerto hispânico ocasional. (p.42)
Embora ao paraguaio caiba o papel de protagonista, há outros perso-
nagens que em determinados momentos assumem essa função. Tal técnica
de o escritor não construir seja um único protagonista, seja um único foco
narrativo, movimenta as categorias romanescas e assegura a possibilidade
de qualquer personagem adquirir importância no livro e a necessidade de o
leitor conhecer o material narrado dos mais diversos pontos de vista.
Chegando ao exílio, Facundo e sua companheira inglesa Isobel, Perseu
e Elvira se juntam a outros latinos e estrangeiros numa agência da BBC de
Londres que se dedica à América Latina e que está sediada em Aldenham
House, uma casa vitoriana cuja arquitetura tipicamente inglesa remete o
paraguaio aos cenários de tantas das histórias de crime da literatura uni-
versal: “Aliás, lembrava Isobel, no exato momento em que, ao chegarem,
entravam em Aldenham House, Facundo tinha perguntado, sério, a Moura
Page: - Quedê o cadáver?” (p. 67).
192 via atlântica n. 6 out. 2003
A atividade do grupo na casa, onde se encontra com os ingleses Moura
Page e Herbert Baker, obedece a reuniões rotineiras para decidir a pro-
gramação da rádio. Pela diversidade de interesses e de opiniões, pelas dis-
putas e diferenças culturais, e principalmente pelos intensos embates tra-
vados entre Facundo e Baker, o clima é sempre tenso.
Embarcando nos discursos impacientes e provocativos do paraguaio, ainda
no navio que os levava ao exílio, os latinos mergulham numa “expectativa de
tragédia”, anunciada por Isobel e confirmada pelo suspense que o romance
cria através de expedientes narrativos próprios aos livros policiais: a ambiência
retesada desde as primeiras páginas diante do desafio que representa a parti-
da do grupo para a Inglaterra pela condição de exilados dos que vão e pelos
perigos a que a tribulação se expõe ao singrar o mar em plena Segunda Gran-
de Guerra; a presença do tipo suspeito William Monygham, o inglês que tra-
balhava no Brasil e retorna à pátria por motivos de saúde, mas que, aos olhos
de Isobel, é um policial disfarçado; o espaço hostil em que circulam os perso-
nagens e a apreensão e o nervosismo que caracterizam a interação entre
eles; a construção de diversas imagens incompletas que se projetam como se
ainda fossem ser continuadas em um momento posterior.
Tais elementos criam a ambiência da narrativa policial clássica que,
pouco a pouco, vai se adensando diante da evidente incongruência entre a
aparente frivolidade dos fatos narrados e o estado de espírito sobressaltado
do grupo. No navio, há a expectativa de que a qualquer momento Monygham
se revele como espião político, o
Pardo
seja atingido por uma bomba e Facundo
dispare contra Perseu. Em Aldenham House, há o prolongamento e o agra-
vamento das discussões entre Facundo e Herbert Baker e do comportamen-
to estranho de ambos.
Aos indícios de que as memórias de Perseu perscrutam algo ainda a se
revelar, ligam-se as observações sobre histórias policiais que o paraguaio, como
um romancista, tece em tom grandiloqüente, ironizando o gosto dos britânicos
por esse gênero e anunciando a trama que se desenvolverá contra ele mesmo:
– À medida, continuou Facundo, que a história se concatena, as situa-
ções se firmam, adensa-se o desenho, a trama se aviva, o suspense, em
suma, para usar a palavra-chave, se instala e nos domina. Esse é o tricô,
por excelência, que os ingleses inventaram para encher seu lazer impe-
A História do lado de lá:... 193
rial, seu ócio, seu tédio (...)
Último lampejo de gênio da raça exausta,
essas concatenadas histórias tecem mil caminhos num labirinto que só
tem mesmo sua única e idiótica saída para lugar nenhum. (p. 163)
Quando surge o cadáver de Herbert Baker no lago de Aldenham House,
o clímax aparentemente chega. Mas é aparente, porque não resolve o con-
flito narrativo a ser arrastado ainda até as últimas páginas do romance,
quando Isobel morre, depois de Facundo ter sido assassinado pela polícia
política paraguaia e de Perseu ter sido encarcerado mais uma vez pela mes-
ma ditadura de Getúlio Vargas que o levara ao exílio anos antes.
De imediato, latinos e ingleses crêem o paraguaio ter sido o assassino
de Baker muito mais pelo seu gênio irascível do que por alguma prova efi-
caz, já que, seguindo o modelo das boas histórias policiais, como admite
Moura Page, todos na BBC teriam ao menos um bom motivo para matá-lo.
Facundo não se defende. Ao contrário, lança pistas contrárias, reforçan-
do a tese de que seria ele mesmo o assassino. Nesse meio tempo, o temido
policial paraguaio Emiliano Rivarola aporta na Inglaterra, disfarçado de em-
baixador, a fim de acompanhar de perto o julgamento do paraguaio exilado.
Já no tribunal, às exatas sessenta e seis páginas depois que o corpo de
Baker fora encontrado, revela-se o que a polícia inglesa e Facundo sabiam
há muito: “Mr Herbert Baker não sofreu, nos seus últimos momentos de
vida, nenhuma violência, e, com muito mais razão, não foi vítima de qual-
quer injúria causada por qualquer espécie de arma; já estava morto, o cora-
ção parado, os pulmões imobilizados, ao ter a cabeça imersa no lago” (p.203).
A polícia inglesa insinua que Facundo emperrou as investigações, por-
que, além de negar-se a depor, teria arrastado o corpo de Baker do pavilhão de
chá onde morrera para o lago onde fora encontrado. Desmoralizando o sistema
legal britânico, o paraguaio evidencia a predisposição dos ingleses para imagi-
nar grandes crimes em lugar dos acontecimentos cotidianos e triviais e a ver os
estrangeiros contestadores como assassinos e a si mesmos como vítimas.
Para surpresa de Perseu, Facundo é condenado a tão somente pagar
uma multa por toda sua encenação. O brasileiro consegue entender os mo-
tivos do Império a praticamente desprezar o comportamento do impávido
Facundo em Paris, quando, depois do fim da guerra, Monygham lhe revela:
194 via atlântica n. 6 out. 2003
– Não se pode mais tolerar hoje em dia, na seriedade da vida moderna, e
sobretudo da guerra moderna, a entrada em cena dessa coragem de porre
que é o heroísmo. Nos países civilizados tais intromissões não ocorrem
mais, ou são aberrações, que acabam no consultório médico. Nos países
atrasados o perigo continua latente, ameaçador. (p. 230-231)
Os britânicos zombam do heroísmo de Facundo. E também os paraguaios.
O policial Emiliano Rivarola não tolera a volta e a resistência de Facundo
à ditadura paraguaia e inventa argumentos para acusá-lo mais uma vez de
ter matado Baker e atribuir-lhe a culpa pela morte de um outro inglês, John
Cole. O torturador faz voltar à mídia uma velha história igualmente falsa de
que o comunista enforcou seu companheiro de cela, quando ambos foram
presos anos antes. A armação de Rivarola ganha as páginas dos jornais e da
opinião pública e os fatos históricos se tornam mero exercício ficcional: “O
espaço dado à foto era enorme mas o texto da notícia, impresso em negrito
graúdo, era sucinto, pois “a Polícia não deve prejudicar investigações que
estão sendo feitas em caráter de grande urgência”(p. 280). Sobre o romance
policial, Marcelo Martins (2000) afirma que
no nível das estruturas narrativas policiais há um sujeito que transgride
uma dada ordem, provocando uma ruptura na sociedade da qual partici-
pa, enquanto outro sujeito deve restabelecê-la de duas formas básicas,
sancionando cognitiva e/ou pragmaticamente o transgressor. Esses dois
sujeitos distintos, dotados dos papéis actanciais atribuídos pelas moda-
lidades que regem o seu fazer e o seu ser serão, no nível das estruturas
discursivas, actorializados, respectivamente, como criminoso e detetive.
Em
Memórias
, tal estruturação do romance policial é invertida, por-
que o assassino é o detetive, no caso, a polícia política, que comete o crime
contra Facundo, contra a população e contra a História, ao condenar um
homem inocente, divulgar falsas notícias e oficializar fatos ficctícios.
Diante da farsa, Facundo é ridicularizado.
Isobel é a única que verbaliza tal ironia que cerca a vítima da ditadura
paraguaia, ao se negar a desmentir as versões criadas por Emiliano Rivarola
mesmo com o pedido do seu amigo e advogado de Facundo Sir Cedric:
A História do lado de lá:... 195
Sir Cedric me contou, então, como, ao regressar Isobel do Paraguai,
depois da morte de Facundo, tinha logo tratado de escrever a ela, que esta-
va com a mãe, no Yorkshire, sugerindo-lhe as bases de um amplo trabalho
a respeito de Facundo, contando corretamente sua história, mas a resposta
de Isobel tinha sido surpreendente, na sua intransigência, quase hostilida-
de: com o consentimento dela não se moveria uma palha para cumprir um
dever que competia exclusivamente aos paraguaios, que, por pouco que se
amassem, “não podiam deixar de se amar em Facundo”. (p.303)
Depois de aconchegar seu companheiro, ajudando-o a suportar o pesa-
delo em que se tornara sua vida, Isobel desiste de lutar pela transformação
da História latino-americana. Renega, pois, as possibilidades de mudança
narradas por outra história que corre paralela à de Facundo na voz de Elvira,
a de
Finnegans Wake
. Buscando incansavelmente traduzir para o espanhol
a obra de James Joyce, Elvira atualiza a trajetória de Humphrey Chimpden
Eawicker, taberneiro em Dublin, que remói o crime de que foi vítima e
algoz, patinando na culpa e no remorso, dos quais enfim se liberta quando a
narrativa aponta para o tempo mítico, continuamente repetido e renovado.
Como afirma Lígia Chiappini: “Esse herói-anti-herói acaba morrendo mas
renasce das cinzas em sucessivas metamorfoses. O tempo é cíclico. Tempo
de resistência em tempo de modo irônico de ficção” (LEITE, 2001, p.34-35).
Em
Memórias
, esse tempo cíclico dialoga com o de
Finnegans Wake
.
Mas para trabalhar em chave oposta. Porque o eterno retorno à situação
original mimetiza a perpetuação da violência e da opressão na História do
continente sul-americano e não a renovação utópica que, em Dublin,
Humphrey experimenta.
Dialogando com um dos grandes ícones do modernismo, a obra de
Callado ilumina a entrada problemática das nações latinas na modernidade,
apropriando-se de um gênero, o dos policiais, “cujo apogeu literário se loca-
lizou no século XIX”, como nos lembra Flávio Aguiar (1997, p.101-1033).
Presos nos escombros das memórias pessoais e coletivas, os persona-
gens de Callado não conseguem se libertar das engrenagens da História de
que participam, materializadas nas ironias que o romance tece ao associar
elementos dissonantes numa única cena ou persona: caso de Perseu, comu-
nista brasileiro que não quer ser identificado com os outros latinos; ou de
Facundo, antiimperialista com ares xenófobos, casado com a inglesa Isobel;
196 via atlântica n. 6 out. 2003
ou da incapacidade de comunicação entre os latino-americanos lida nas fre-
qüentes discussões entre o brasileiro e o paraguaio:
– Eu não sei se você (Perseu), como brasileiro, entende (...) o que
significa ser paraguaio. Nós ficamos tão aleijados, tão deformados por aque-
la guerra que estamos até hoje gemendo e lambendo as feridas. Morreram
todos os homens (...).
– Um país sofrido o seu, disse Perseu, vago, olhando o mar vazio. (p. 29)
Esses elementos em tensão ganham um certo tom melancólico, porque
esvaziam antigos imaginários utópicos, como se lê quando o projeto unificador
do continente latino-americano é escrachado nos constantes debates entre os
próprios latinos e entre eles e os estrangeiros.
As perspectivas que se multiplicam na voz de Facundo retornam sem-
pre a eventos traumáticos da História, os quais, não tendo sido superados,
reatualizam-se continuamente em roupagens novas. Também as de Perseu,
o qual faz de suas “lembranças descosidas” o espaço da melancolia dentro do
exílio que cada personagem experimenta em si mesmo:
Prometi a Sir Cedric que, logo que caísse a ditadura no Paraguai, e no caso
de estar eu solto na ocasião, iria ao cemitério de Assunção, para tornar, de
alguma forma, mais explícito o túmulo de Facundo e Isobel Rodríguez. Sir
Cedric me apertou a mão, fez um aceno, com o chapéu, ao coronel-coman-
dante, e se retirou, enquanto eu iniciava, acompanhando de Josefo, o retor-
no à cela, onde escrevo tudo isso no Diário. Ou, melhor, onde encerro esta
parte das minhas descosidas memóiras, colocando, aqui também, uma
lápide, em homenagem a minha doce rival, Elvira, e aos companheiros de
Aldenham House:
Zee End. (p. 306)
As sombras do passado vão se atualizando progressivamente até o re-
torno de Facundo e Perseu às suas respectivas pátrias, onde não conseguirão
traçar novos destinos apesar de o tempo ter passado enquanto cumpriam o
exílio. Indo ao encontro do que já se lhes havia sido predestinado antes da
partida para a Inglaterra, a morte e a prisão, os personagens retornam mais
uma vez à origem sem que isso signifique a modernidade conquistada pelo
personagem de Joyce, ou seja, a liberdade da engrenagem das catástrofes
históricas a que estão presos o paraguaio e o brasileiro.
A História do lado de lá:... 197
Ainda no navio, Facundo dá início às discussões, que se estenderão até
a morte de Baker, a respeito da literatura e da cultura do Império Britâni-
co. Ele acusa os ingleses de produzirem “uma avalanche de romances polici-
ais” de péssima qualidade, porque não souberam aproveitar a “colossal acu-
mulação primitiva de cultura” (p.16), fruto da espoliação das colônias, res-
tando-lhes explorar a própria alma nacional, limitada, mesquinha e violen-
ta, apesar de aparentemente grandiosa.
Ao ironizar a decadente produção literária da Inglaterra, Facundo
desconstrói imagens tradicionais e desloca o centro cultural para o novo con-
tinente, a fim de provar sua hipótese de que o Império esconde os cadáveres
que produz nos países colonizados. Entretanto, para o paraguaio, como ne-
nhum crime é perfeito, a avalanche de títulos policiais constituem as pistas
que, se bem montadas, provam a ação criminosa do imperialismo contra as
colônias.
Facundo funda uma teoria crítica: investigar a mania dos britânicos por
narrativas policiais é investigar a tendência daquele país de fazer do entrete-
nimento uma maneira de disfarçar as suas recorrentes investidas violentas
contra outras nações. E como toda expressão traz em si marcas definitivas do
contexto que a gerou, os livros de Conan Doyle seriam o produto bruto da
ação colonizadora dos ingleses, nascido da ausência de um outro contexto
histórico, mais humanista, que poderia, como em outros tempos, ter gerado
autores de genuínas “obras monumentais”:
- Em termos marxistas a Inglaterra fez, no passado, uma colos-
sal acumulação primitiva de cultura, mas já gastou quase tudo. (...)
- (...) E o que me diz da publicação de livros, Señor Rodríguez? Com a
guerra, o papel de impressão ficou grosseiro, utilty paper, como dizem lá,
mas os livros continuam a chegar ao povo numa verdadeira avalanche, uma
inundação.
- Chegam, disse Facundo
.
Uma avalanche. Uma inundação. Mas de ro-
mances policiais. (...) Olhe, disse Facundo, quem entende de literatura inglesa,
lá em casa, é minha mulher, aqui presente. Já ouvi dela, até dando aula parti-
cular, em nossa sala, que só dois irlandeses, veja bem irlandeses, criaram obras
monumentais em inglês neste século, Bernard Shaw e James Joyce. Ah, ia me
esquecendo, tem um poeta também, muito dos amores de Isobel, chamado
Eliot, mas este é de uma colônia ainda mais distante que a Irlanda. (p.17)
198 via atlântica n. 6 out. 2003
A imaginação doentia dos ingleses para escrever e consumir histórias
policiais traduz, para Facundo, a relação que esse povo mantém com outros
povos e o desejo de esconder o impulso violento que o caracteriza.
Como o paraguaio procura provar ao ser acusado de ter assassinado o
inglês Hebert Barker, os métodos políticos do imperialismo inglês são os
mesmos do romance policial.
Nesse sentido, Facundo fornece ao leitor o olhar crítico que deve ter se
quiser compreender estas
Memórias
, ensinando-nos, num desdobramento
metonímico e metalingüístico, a importância de descobrir-se nos métodos
romanescos o que está se ocultando, o que está silenciado.
É dessa leitura atenta (exigida pelo paraguaio, também por Elvira,
que, ao acusar Perseu de ser por demais preguiçoso para conseguir adentrar
Finnegans Wake
, envia seu recado ao leitor das memórias narradas) que,
num lapso, torna-se possível perceber esse texto híbrido como algo mais do
que a paródia do clássico romance policial inglês.
Se o leitor se der ao trabalho de debruçar-se por alguns Conan Doyle,
livros de referência de que se utiliza Facundo para provar sua teoria, logo
perceberá que há uma clivagem entre tais textos e o tipo policial aqui paro-
diado, porque a narrativa traz marcas de uma certa modernização da ma-
neira de pensar o mundo advinda da contribuição da obra de Sigmund Freud
para a cultura universal. É só através das teorias sobre o inconsciente, a
repressão, os atos falhos, que podemos entender o raciocínio de Facundo
sobre o Império (porque se baseia na noção de atos falhos, já que o romance
policial é visto pelo paraguaio como uma das evidências da tendência violen-
ta do Império), a ação de Rivarola torturando psicologicamente o paraguaio,
a intertextualidade estabelecida com
Finnegans Wake
, a problematização
da identidade nacional de Facundo e de Perseu.
Nessa falta de ajuste entre as marcas textuais
, Memórias
reivindica o
diálogo com outras narrativas policiais, as que se sucederam às originais, e
que são bem representadas pela herdeira do gênero, nas palavras de Flávio
Aguiar, a “conservatriz Agatha Christie”:
O detetive é o anjo do bem; o assassino-mor é o gênio do mal; como
contrários eles se anulam, isto é, transformam-se na mesma substân-
cia. Tal processo de fissão, quase nuclear para o mundo maniqueísta
A História do lado de lá:... 199
dos romances de detetive, exige um dispêndio enorme de energia – quer
dizer -, um verdadeiro rocambole da arte de narrar. Para o século XIX de
Sherlock chegaram as paisagens grandiosas. Para o Hercule Poirot
2
de
hoje, que a trancos e barrancos perseguiu ser o sucessor daquele Sherlock,
é preciso um pouco mais. (AGUIAR, 1997, p.101-103)
Esse “pouco mais” de que fala Flávio Aguiar é, como afirma linhas adi-
ante, “algum...conhecimento de psicologia”: “Essa técnica, no entanto, o defi-
ne apenas como um inovador muito relativo no terreno da ficção policial.
Pode-se até vê-lo, na verdade, como um confirmador das regras mais sagra-
das da novela de mistério. Essa, quem sabe, seria a sua real ‘inovação’”.
Em
Memórias
, há nos personagens esse “conhecimento” a mais a que
se refere Aguiar. E há, também, os elementos clássicos do romance policial
do século XIX. O encontro das duas vertentes faz os dois tempos em que
foram geradas coexistirem, definindo um outro tempo, esse, o do escritor.
É o autor que, despertando certo estranhamento no leitor, provoca a
reflexão sobre as conseqüências desse texto que, para além do entre-lugar ocu-
pado pela narrativa híbrida, coloca-se também num entre-tempo: forjando a
ambiência policial entre um e outro modelo policial,
Memórias
faz reverberar o
novo-velho romance policial inglês e traz em si a imagem daquele detetive cuja
“real inovação” é confirmar as “regras mais sagradas da novela de mistérios”.
Essa é, enfim, a metáfora a ser destrinchada com a ajuda da teoria de
Facundo sobre os imperialistas agirem segundo os métodos das novelas
policiais.
Antonio Callado, afirmando o livro segundo um olhar retrospectivo, ilu-
mina mais uma artimanha do Império, o qual, a despeito das reais mudanças
no contexto histórico internacional depois da Segunda Grande Guerra, man-
tém o bastão que rege a História, agora, com “algum conhecimento de psicolo-
gia”, perpetuando as mais arcaicas formas de opressão e de violência ao ensina-
rem às classes dominantes dos países colonizados a também conduzirem a
História de maneira autoritária. É o que Emiliano Rivarola representa.
2
Hercule Poirot é o detetive do romance resenhado por Flávio Aguiar (CHRISTIE, Agatha. Cai o
pano – o último caso de H. Poirot. Rio de Janeiro: Artenova, 1975).
200 via atlântica n. 6 out. 2003
Esse é o crime mais violento e o mais oculto que é desvelado pelas
estratagemas narrativas.
Mas isso só se depreende do silêncio que a obra, por arte do engenho,
impõe. E Antonio Callado, ao parodiar o romance clássico policial, numa última
investida utópica, parece apostar que o leitor dessas memórias descobrirá o
que se nega a tornar-se evidente.
A pergunta de Facundo “– Como é que um paraguaio vai escrever um
romance policial?”, lançada a seu advogado Sir Cedric, em tom sardônico, fica
latente ao longo de todo o livro. Não é Sir Cedric, entretanto, que formula a
resposta. Mas na própria construção de Perseu e de Facundo, os quais, presos
a uma memória histórica composta por episódios violentos (o cárcere, os as-
sassinatos, o exílio, as perdas sentimentais), fazem emergir uma versão da
História contada a partir das violências, das catástrofes e das impossibilida-
des de superação das desigualdades econômicas, sociais e cultuais. Ao contrá-
rio da versão dos colonizadores, contada a partir de progressos tecnológicos e
riquezas acumuladas.
Nesse sentido, enquanto os ingleses criam histórias policiais do ponto
de vista dos vencedores, aos latinos resta criarem-nas do ponto de vista do
que se lhes opõe, o dos vencidos.
Surge, por isso, a paródia, esta, sim, forma por excelência dos latinos,
que foram obrigados a ler o mundo através das lentes dos imperialistas, mes-
mo sendo os colonizados. Só de dentro dessa perspectiva irônica que caracte-
riza a História dos trópicos é que se torna possível escrever o romance polici-
al: os vencidos apropriarem-se dos métodos estrangeiros para contar sua His-
tória, mas não podem livrar-se da evidência de estarem do lado de lá.
BIBLIOGRAFIA
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A História do lado de lá:... 201
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MARTINS, Marcelo Machado.
Narrativa policial (uma abordagem semiótica).
Dissertação
de mestrado, Universidade de São Paulo, 2000.
Article
Full-text available
O objetivo desta nota de pesquisa é produzir uma reflexão sobre a relação entre pesquisador e documentação num mundo marcado por um processo de digitalização de acervos que tem potencial para transformar definitivamente as interações entre o historiador e suas fontes. Este texto busca discutir a noção de “documentação” à luz dessas mudanças, pensando em que medida a percepção que o pesquisador tem de suas fontes pode ser mediada por um jogo de olhar e desvelamento cujos efeitos heurísticos frequentemente resistem à teorização, jogo esse aqui esboçado através da ideia de “dimensão aurática” da documentação. Por fim, busca-se ilustrar o percurso de formulação dessas reflexões reportando à descoberta de fontes inéditas nos arquivos da BBC, Inglaterra.
A Casa Assassinada ou a Inglaterra vista da AmericaLatindia
  • Lígia Leite
  • Chiappini
LEITE, Lígia Chiappini. "A Casa Assassinada ou a Inglaterra vista da AmericaLatindia". In: AGUIAR, Flávio e VANCONCELOS, Sandra Guardini T. Imagens da Europa na
Narrativa policial (uma abordagem semiótica)
  • Marcelo Martins
  • Machado
MARTINS, Marcelo Machado. Narrativa policial (uma abordagem semiótica). Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2000.