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Revista Brasileira de Educação 77
Trabalho docente e relações de gênero
Algumas indagações
Marília Pinto de Carvalho
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo
A discussão sobre o trabalho docente, no Bra-
sil, tem se desenrolado em torno de duas coorde-
nadas principais, que ora se complementam, ora se
alternam: de um lado, a compreensão da escola co-
mo organização burocrática e, de outro, a análise
da atividade docente a partir do conceito marxis-
ta de trabalho. A primeira tendência caminhou da
defesa da burocratização como forma de comba-
ter os vícios personalistas das organizações tradi-
cionais — tendo como bom exemplo o estudo de
Luís Pereira (1967) — até as críticas à hierarquia
e divisão de trabalho pressupostas nas organiza-
ções burocráticas. Exemplificam essas críticas as
análises de Maurício Tratemberg (1978, 1985) e
Fernando Motta (1982, 1984), que também pro-
põem alternativas para a administração em geral
e escolar, em especial. Um segundo debate cen-
trou-se sobre a natureza do trabalho pedagógico,
tendo como referência as categorias marxistas de
trabalho produtivo e improdutivo, material e não-
material. Expressaram diferentes posições nessa
discussão os estudos de Dermeval Saviani (1984),
Vitor Paro (1988, 1995), Nicanor Palhares de Sá
(1986) e Romualdo Portela de Oliveira (1993),
entre outros. Articuladas a esse debate, vêm se de-
senvolvendo análises sobre o processo de prole-
tarização do magistério, tentativas de definição de
sua situação de classe e de seu grau de controle e
autonomia sobre o processo de trabalho, como
expressam os estudos de Miguel Arroyo (1985),
Bruno Pucci e colaboradores (1991) e Álvaro Mo-
reira Hypolito (1991).1
Refiro-me aqui a essa literatura apenas para
chamar a atenção sobre duas lacunas muito fre-
qüentes que ela tem apresentado. Em primeiro lu-
gar, a fragilidade do material empírico sobre o qual
se fundamenta: quase sempre, esses estudos são in-
terpretações teóricas e debates conceituais, pouco
dispondo de contribuições monográficas, de estu-
dos de caso ou mesmo de levantamentos quantita-
1 Um interessante balanço da bibliografia sobre tra-
balho docente foi produzido por Álvaro Moreira Hypolito
(1994), em sua dissertação de mestrado, onde procura evi-
denciar as lacunas relativas ao gênero nesta literatura.
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tivos. Disso resulta que muitas vezes são feitas trans-
posições para a escola de categorias gestadas na
análise do trabalho fabril ou em outros setores de
serviços. Se, por um lado, esse âmbito teórico da
discussão é fundamental e se, ainda, os paralelos
com as formas de organização do trabalho em ou-
tros setores revelaram aspectos importantes do tra-
balho docente, por outro lado, a fragilidade e a re-
petição desses debates podem ser tomados como
indicadores do esgotamento dessa via.
Uma segunda lacuna, provavelmente articula-
da à anterior, é a quase inexistência de referências
à composição majoritariamente feminina do magis-
tério. Desenvolvidas a partir de matrizes teóricas
que não incorporam as determinações de gênero,2
essas discussões tendem a se utilizar de categorias
sexualmente cegas,3 incapazes de revelar as possí-
veis conseqüências do fato de os trabalhadores em
questão serem homens ou mulheres.
Os dados indicam que, nas primeiras quatro
séries do 1º grau (antigo primário), a predominân-
cia feminina já vem desde os anos 20 deste século
no Brasil. Maria Cândida Delgado Reis, por exem-
plo, mostra como, “desde o século XIX, o magis-
tério já vinha se delineando claramente como um
campo de trabalho feminino”, chegando as mulhe-
res a “70% do total de funcionários encarregados
do ensino”, em 1921, de acordo com afirmação do
educador Lourenço Filho (Reis, 1991, p. 67 e 72).
Em 1990, a presença feminina já avançara das sé-
ries iniciais para as séries finais do 1º grau, para o
2º grau e os cargos de especialistas, resultando no
seguinte quadro no estado de São Paulo:
Porcentagem de mulheres na rede
estadual de ensino (SP) - 1990
Supervisoras ............................................... 72,3%
Diretoras de escola ..................................... 76,0%
Assistentes de direção ................................. 79,5%
Professoras de 1ª a 4ª série ......................... 97,2%
Professoras de 5ª a 8ª séries/2º grau............ 75,5%
Fonte: DRHU/SEE-SP
Além disso, do ponto de vista do conjunto do
mercado de trabalho, a ocupação de professora tem
significado um dos principais guetos femininos.
Segundo Cristina Bruschini (1994, tabela 13), em
1988, de cada cem trabalhadoras brasileiras, doze
eram professoras.
Ora, a feminização tem efeitos múltiplos so-
bre a educação escolar, entre eles, sobre as formas
de organização do trabalho docente. Ela torna ne-
cessário compreender o trabalho das educadoras na
escola tendo como referência o trabalho domésti-
co, mais do que o trabalho industrial, ou em outros
setores de serviços (Rosemberg, 1992, p. 173), já
que o trabalho doméstico é tido como definidor das
atividades ditas femininas e tem presença inexorável
na vida da maioria das mulheres.
Em pesquisas etnográficas que desenvolvi ante-
riormente (Carvalho, 1991, 1994; Carvalho e Vian-
na, 1993, 1994) pude constatar que as falas e atitu-
des das educadoras, a maneira como enxergavam o
trabalho docente, como organizavam o tempo e o
espaço, assim como as relações que estabeleciam com
as crianças e com as mães das crianças tinham como
referencial a vida no lar, o trabalho doméstico, a
maternagem,4 a socialização recebida para a vida
doméstica. Uma parte daquilo que observamos no
cotidiano permanece inexplicável se não levamos em
consideração, também, as relações de gênero e a pre-
2 Utilizo o conceito de gênero como proposto por Joan
Scott (1990, p. 14): “Gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre
os sexos e gênero é um primeiro modo de dar significado
às relações de poder.”
3 Tomo de empréstimo a expressão utilizada por Eli-
zabeth Souza-Lobo, com referência à discussão do trabalho
feminino em geral, no âmbito das Ciências Sociais (Souza-
Lobo, 1991).
4 A diferenciação entre maternagem (mothering) e ma-
ternidade (motherhood) parece-me relevante para dissociar
os processos biológicos da maternidade dos processos só-
cio-culturais de cuidado com os filhos.
Marília Pinto de Carvalho
Revista Brasileira de Educação 79
sença constante do trabalho doméstico no âmbito
da escola, enquanto referência fundamental de tra-
balho para as educadoras.
Estou afirmando, portanto, em primeiro lugar,
que o gênero dos protagonistas é relevante na aná-
lise do processo de trabalho docente. Michael Apple
(1987) chama a atenção para essa lacuna e propõe
a articulação entre classe e gênero como possibili-
dade de aprofundamento de nossa compreensão do
trabalho docente: “A menos que vejamos as cone-
xões entre essas duas dinâmicas, classe e gênero, não
poderemos compreender nem a história nem as ten-
tativas atuais para racionalizar a educação ou as
raízes e os efeitos da proletarização sobre o próprio
trabalho de ensinar” (p. 6).
Mas, na verdade, são os próprios conceitos,
tais como proletarização, profissionalismo e qua-
lificação, que devem ser questionados à luz das ca-
tegorias teóricas e das articulações sugeridas pela
incorporação da dinâmica de gênero na análise, co-
mo indicam Jenny Ozga e Martin Lawn:
Não apenas precisamos saber muito mais sobre
os vínculos históricos entre feminização e proletari-
zação, mas também examinar a construção baseada
no gênero presente na própria tese. Tal como o pro-
fissionalismo, a proletarização é construída com base
numa definição “masculina” da qualificação (1991,
p. 153).
Isto é, admitir que faz diferença no estudo do
trabalho docente o fato de termos uma maioria de
mulheres como professoras significa admitir que em
qualquer processo de trabalho, seja exercido por
homens ou por mulheres, o gênero faz diferença. E
que a incorporação dessa perspectiva não pode ser
apenas um aditivo a nossas análises habituais, ba-
seadas na dinâmica de classe, mas exige uma revi-
são de todas as categorias explicativas.
No caso do trabalho docente no Brasil, parti-
cularmente após a difusão dos estudos produzidos
nos anos 80 que procuravam focalizar a composi-
ção majoritariamente feminina do magistério (No-
vaes, 1984; Mello, 1987), consolidou-se uma abor-
dagem onde os modelos de profissional e de prole-
tário — aparentemente neutros — são masculinos.
As professoras são comparadas a esses modelos e,
a partir daí, “acusadas” de serem pouco profissio-
nais ou pouco proletárias por articularem dimen-
sões públicas e privadas em seu trabalho, mistura-
rem saberes técnicos e saberes domésticos, percebe-
rem-se como segundas mães ou tias dos alunos.
Mas a separação estrita entre público e priva-
do, tendo o trabalho assalariado como baliza, é ape-
nas uma das maneiras de conceber essa articulação.
Sócrates Nolasco, em instigante análise sobre a cons-
trução social da identidade masculina, mostra o pa-
pel central ocupado pelo trabalho (entendido como
ocupação remunerada) nessa construção. Ele destaca
a separação rigorosa estabelecida pelos homens, ao
contrário das mulheres, entre vida familiar e traba-
lho: “O trabalho, para os homens, tem uma dimen-
são cartográfica, pois define a linha divisória entre
as vidas pública e privada.” (1993, p. 50). O que
vemos nas análises do trabalho docente é esse mo-
delo ideal masculino de trabalhador, difundido em
nossa sociedade atual, sendo tomado como parâ-
metro universal de ser humano, não problematizado.
Isso tem impedido que se perceba, por exem-
plo, a importância da maternagem no trabalho das
professoras primárias, como já foi desenvolvido pa-
ra o caso da educação de crianças pequenas (Had-
dad, 1991). Diversos estudos sobre creches e pré-
escolas nos colocam questões instigantes sobre o
trabalho docente nas séries iniciais do 1º grau:
“A creche possibilita uma visão ampliada ou
depurada de que, mesmo no espaço público e ins-
titucionalizado, a educação de crianças se apóia em
aptidões e afetos (de proximidade e rejeição) cultu-
ralmente desenvolvidos pelas mulheres para o exer-
cício da maternagem.” (Rosemberg, 1992, p. 173)
No caso da professora primária, pesquisas em
diversos países têm demonstrado que a construção
histórica de sua imagem social e de sua prática teve
origem na vinculação entre educação escolar e famí-
lia e entre mãe e professora (David, 1980; Steadman,
1985, no caso inglês; Badinter, 1980, para a Fran-
ça) Entre esses estudos, destaco o de Etelvina San-
doval Flores (1982), que, realizando pesquisa etno-
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gráfica recente entre professoras mexicanas, encon-
trou também a presença da maternagem, não ape-
nas nos discursos, mas na prática docente, traduzida
numa “disposição particular para a atenção a sua
classe, na qual se privilegiam aspectos como a for-
mação de hábitos ou atitudes” (p. 67, tradução nos-
sa). E procurou mostrar a ambigüidade de signifi-
cados dessa referência que, de reafirmação das atri-
buições mais tradicionais das mulheres em nossa so-
ciedade, pode transitar para uma estratégia de auto-
valorização profissional e redundar igualmente em
benefícios para a educação, pelo sentido que carrega
de responsabilidade e compromisso com as crianças.
No Brasil, há estudos do ponto de vista histó-
rico, tais como o de Eliane Marta Teixeira Lopes
(1991), que mostram a superposição flagrante en-
tre as imagens de professora e mãe no discurso pe-
dagógico. Porém, sobre os discursos e as formas
atuais da prática educacional nas escolas, quase ne-
nhum material empírico foi levantado e permane-
cemos nas conjecturas. Sabemos que os cursos de
formação de professoras estão repletos de recomen-
dações de paciência e dedicação maternais e que, ao
falar sobre o próprio trabalho, as professoras pri-
márias usam referências e comparações com a ma-
ternidade (Assunção, 1994). Entretanto, nossas sa-
las de aula aguardam a observação de pesquisado-
res capazes de distinguir, na prática cotidiana das
professoras, o recurso e a referência à maternagem,
ao trabalho doméstico e às relações familiares. E
capazes também de articular essas observações aos
debates em curso sobre o processo de trabalho do-
cente, de forma que as relações de gênero não se-
jam tomadas como uma especificidade a ser adi-
cionada a posteriori à análise global, mas como uma
determinação que pode estar alterando o significa-
do de categorias e processos tais como proletari-
zação, profissionalismo, qualificação, autonomia,
privatismo, burocratização etc.
Gênero e qualificação
Dentre estes processos, é particularmente re-
levante para a compreensão do trabalho docente o
conceito de qualificação, repensado a partir da no-
ção de divisão sexual do trabalho. Para o conjunto
dos trabalhadores, essa discussão vem sendo desen-
volvida por estudiosas/os da sociologia do trabalho,
que apontam a centralidade do debate sobre a qua-
lificação (Rolle, 1989; Hirata, 1988, 1994; Kergoat,
1982, 1986, 1989).
Para esses pesquisadores, a qualificação é de-
finida como uma relação social, como resultado,
sempre cambiante, de uma correlação de forças (Hi-
rata, 1994). Pierre Rolle (1989) mostra que a coin-
cidência entre “um modo de organização do traba-
lho, um saber e um bem dotado de valor econômi-
co”, que num primeiro momento parece definir a
qualificação, é apenas uma aparência (p. 83). Ele
propõe que a qualificação não seja relacionada a
características concretas da tarefa a ser executada
mas “a proporções entre durações e a articulações
entre relações sociais.” (p. 86)
Essa abordagem evidencia as dimensões sim-
bólicas da qualificação, pois toda relação social en-
volve também a construção de significados. E, dessa
forma, as relações de gênero interferem diretamente
nas definições de qualificação e desqualificação,
atribuindo significados diferentes à qualificação
masculina e à feminina. Como mostra Elizabeth
Souza-Lobo em seus estudos sobre operárias pau-
listas, quando homens e mulheres realizam a mes-
ma tarefa, quase sempre as mulheres são conside-
radas menos qualificadas, situação que só pode ser
explicada pela representação social do feminino e
pelas relações sociais de gênero como um todo, e
não pelas características da tarefa: “O que parece
ocorrer é que, uma vez feminilizada, a tarefa passa
a ser classificada como ‘menos complexa’. [...] O
sexo daqueles(as) que realizam as tarefas, mais do
que o conteúdo da tarefa, concorre para identificar
tarefas qualificadas e não qualificadas” (Souza-Lo-
bo, 1991, p. 150-151)
Na verdade, como assinala Helena Hirata
(1986), o que importa é a percepção social que se
tem das qualidades requeridas para cada tarefa e
das qualidades possuídas por cada tipo de traba-
lhador, homem ou mulher. E essa percepção de-
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pende de todo o contexto social e histórico de cada
país, do qual fazem parte o sistema de trabalho, os
sistemas de emprego, de salários e de classifica-
ções, as relações de gênero etc.
Nesta discussão, ganha especial relevância o
conceito de qualificação tácita, social ou informal.
Trata-se dos componentes implícitos e não organi-
zados da qualificação, aqueles adquiridos pela so-
cialização e que incluem atitudes, comportamentos
e valores, além de conhecimentos e técnicas. Já nos
anos 80, Danièle Kergoat apontava, a partir de aná-
lise da situação de operárias francesas, a necessidade
de repensar a questão da qualificação, levando em
consideração a socialização para o trabalho domés-
tico. Em texto publicado no Brasil em 1989, ela
afirma que devem ser abandonadas as explicações
tradicionais para a localização das operárias nos
níveis mais baixos da escala de classificação, basea-
das nas idéias de desigualdade de oportunidades de
formação:
Em vez de dizer que as mulheres operárias têm
uma formação nula ou mal adaptada, dizemos ao con-
trário que elas têm uma formação perfeitamente adap-
tada ao tipo de empregos industriais que lhes são pro-
postos, formação adquirida de início por um apren-
dizado (a “profissão” de futuras mulheres quando
eram meninas) e em seguida por uma “formação con-
tínua” (trabalhos domésticos). As mulheres operárias
não são operárias não-qualificadas ou ajudantes por-
que são mal-formadas pelo aparelho escolar, mas por-
que são bem formadas pelo conjunto do trabalho re-
produtivo (Kergoat, 1989, p. 94).
Presente nesse novo raciocínio está o esforço
em tratar de forma articulada as esferas da produ-
ção e da reprodução, o trabalho assalariado e a fa-
mília, deixando de lado as dicotomias e polariza-
ções e ampliando o conceito de trabalho, incluin-
do na análise dos processos de qualificação a arti-
culação entre as esferas produtiva e reprodutiva
(Bruschini, 1994; Blass, 1994).
Nos setores em que vêm sendo implantados o
trabalho dito flexível e novas formas de organiza-
ção dos processos de trabalho, características liga-
das à socialização feminina podem ser revalorizadas
e tomadas como qualificação. É o que percebeu Li-
liana Segnini (1994) em relação às bancárias. Em
pesquisa realizada junto a um banco estatal de São
Paulo, ela mostra como elementos da socialização
para o trabalho doméstico — especialmente a ca-
pacidade de lidar com diferentes produtos e infor-
mações ao mesmo tempo, a responsabilidade, a ini-
ciativa e a amabilidade e atenção para com o cliente
— têm sido ao mesmo tempo utilizados pelas mu-
lheres bancárias como instrumentos de ascensão na
carreira e absorvidos pelos bancos como habilida-
des capazes de aumentar a produtividade.
Mas essa situação parece ser uma exceção. A
regra mais geral é de que as habilidades adquiridas
pelas mulheres em seu processo de socialização, em-
bora fartamente utilizadas no processo produtivo,
sejam solenemente ignoradas enquanto componen-
tes da qualificação de seus empregos, não signifi-
cando, portanto, nenhum reconhecimento, seja sa-
larial, seja de status social para as trabalhadoras.
É o que constatou Alice Rangel de Paiva Abreu
(1993) com relação às costureiras empregadas em
indústrias de confecção no Rio de Janeiro, por exem-
plo. Enquanto a experiência doméstica de costura
fazia parte da qualificação operatória das trabalha-
doras, a qualificação exigida e valorizada pelas em-
presas referia-se ao aprendizado industrial:
As qualidades efetivamente requeridas para as
tarefas que realizavam tinham sido aprendidas na es-
fera doméstica; a longa experiência de costura não era,
contudo, uma qualificação reconhecida no ambiente
industrial, que utilizava como critério de classificação
o manejo da máquina de costura industrial (p. 129).
Essa situação, encontrada em todos os países
capitalistas, deve ser analisada — como nos apon-
ta Danièle Kergoat (1989) — no contexto das re-
lações de força entre capital e trabalho, onde o pa-
tronato procura sempre negar a qualificação dos
trabalhadores, sejam homens ou mulheres. Entre-
tanto, a especificidade da situação das mulheres,
ainda segundo Kergoat, é de que esta qualificação
não é adquirida pelos canais institucionais reconhe-
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cidos, sendo mais facilmente negada pelos empre-
gadores. Além disso, “o não reconhecimento das
qualidades que se exige [das operárias] parece so-
cialmente legítimo, pois tais qualidades são consi-
deradas inatas e não adquiridas, como fatos de na-
tureza e não de cultura” (Kergoat, 1989, p. 94).
Habilidades adquiridas durante toda uma vi-
da, num longo processo de socialização e discipli-
narização, são consideradas inerentes a uma pre-
tensa “natureza feminina”. Naturalizadas, elas não
são levadas em consideração na classificação hie-
rárquica, nem no salário. As mesmas conclusões são
encontradas em estudos sobre o trabalho feminino
na indústria paulista (Rodrigues, 1992) e nas ma-
quillas mexicanas (Le Doaré, 1986), em todos os
casos revelando naturalização do processo social de
diferenciação e hierarquização dos gêneros.
Qualificação e trabalho docente
Esse debate parece extremamente pertinente
para o estudo do trabalho docente no ensino elemen-
tar, exercido quase exclusivamente por mulheres na
maioria dos países ocidentais, desde que levemos em
consideração as especificidades da docência, princi-
palmente o fato de ser exercida majoritariamente
como emprego público. A mediação estatal introduz,
evidentemente, novos elementos na dinâmica da re-
lação empregador/empregada, que não se explicam
pela dinâmica da relação capital/trabalho.
Com essas ressalvas, muitas questões podem
ser levantadas. Caberia, por exemplo, discutir aque-
la qualificação tácita das professoras adquirida na
socialização para o trabalho doméstico e a mater-
nagem, assim como na sua execução cotidiana, pa-
ralelamente ao trabalho docente. Os debates sobre
a escola e as professoras não têm incorporado a
necessidade de conhecer a dimensão e a qualidade
dessa qualificação, as habilidades aí envolvidas e os
significados que são construídos a partir dessa so-
cialização, a não ser de maneira pejorativa, relacio-
nando características maternais e domésticas das
professoras com incompetência técnica e desmobi-
lização sindical. Ao mesmo tempo, pouco se conhe-
ce sobre a qualificação operatória das professoras,
isto é, que habilidades e saberes — entre os quais
aqueles adquiridos na socialização e execução do
trabalho doméstico e maternagem — elas empre-
gam efetivamente para enfrentar suas situações de
trabalho em sala de aula.
Especialmente o problema da qualificação do-
cente tem tido destaque na mídia e nas políticas
educacionais, transformando-se em verdadeiro slo-
gan de algumas administrações, que atribuem boa
parte dos problemas do sistema de ensino à “falta
de qualificação dos professorES”. Ora, uma vez que
se trata de uma maioria de professorAS, não será
o momento preciso para perceber suas qualificações
não reconhecidas e investigar os caminhos de sua
construção? O que sabemos efetivamente sobre sua
prática em sala de aula e sobre os valores, recursos,
habilidades e saberes de que dispõem para cumprir
suas tarefas? O que conhecemos sobre seu proces-
so de socialização, que papel o preparo para o tra-
balho doméstico e a maternagem tem em suas vi-
das? Até que ponto o discurso sobre a desqualifi-
cação docente está articulado à crença socialmen-
te legitimada da desqualificação feminina?
E mais ainda: através de que mecanismos os
saberes da professora primária maternal, aquela que
se reconhece como tia ou segunda mãe, tornam-se
não-saberes, a sua qualificação faz-se desqualifi-
cação? Como as habilidades atribuídas à natureza
feminina são percebidas ou não e valorizadas ou
não por elas próprias? Como o (raro) professor pri-
mário do sexo masculino desempenha as mesmas
tarefas? Como lida com a representação social de
que a tarefa de educar crianças corresponde a uma
pretensa natureza feminina?
A resposta a essas questões depende de pesqui-
sas que desvendem o mistério da sala de aula e se
proponham a conhecer o modo como as professoras
(e professores) organizam sua prática cotidiana.
MARÍLIA PINTO DE CARVALHO é professora da
Faculdade de Educação da USP, onde também é doutoran-
da. Tem se dedicado à pesquisa sobre a escola pública de
Marília Pinto de Carvalho
Revista Brasileira de Educação 83
1º grau em diversos aspectos de seu funcionamento: sua
relação com a chamada comunidade, sua organização in-
terna, os processos de trabalho docente e a feminização do
magistério.
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Marília Pinto de Carvalho