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Infad - International Revue of Developmental and Educational Psychology, XXI, 2
A adaptação das famílias de crianças com perturbações graves do
desenvolvimento- contribuição para um modelo conceptual
Vítor Franco
(Universidade de Évora - Portugal)
Introdução
As diferentes práticas de cuidados das crianças com deficiência ou perturbações
graves do desenvolvimento definem-se, cada vez mais, como centradas na família.
Esta é entendida como factor e contexto central no processo de desenvolvimento
infantil e, por isso, elemento fundamental da intervenção. Um novo paradigma tem
deslocado as competências e as tomadas de decisão das mãos dos técnicos para a
família, acentuando os conceitos de enabling e enpowerment, a necessidade de ela ser
mais capaz de decidir sobre o seu futuro e o da sua criança e de agir de forma
adequada à suas necessidades
Isto coloca sobre as famílias uma redobrada exigência e, por isso, elas próprias
necessitam de ser bem compreendidas no seu desenvolvimento. O que nem sempre
acontece; muitas vezes esquecemos que a família é constituída por pessoas, os pais,
cujo próprio desenvolvimento está sujeito às mesmas vicissitudes de todos os outros.
Muito frequentemente, as exigências da problemática da criança desloca toda a
atenção sobre ela, e mesmo numa perspectiva centrada na família, esta é muitas
vezes entendida apenas como meio, recurso ou instrumento de promoção do
desenvolvimento da criança e do trabalho que é necessário fazer com ela.
Mas não podemos ignorar que esta família, que podemos estar a tentar chamar para
ser activa num processo é, também ela, objecto de uma disfunção grave no seu
desenvolvimento. O nascimento de uma criança tem um fortíssimo impacto emocional
na família e nos elementos que a constituem, e os seu cursos de desenvolvimento
foram profundamente afectados e alterados. Se não tivermos em conta o próprio
processo evolutivo da família, à medida que colocamos sobre ela mais
responsabilidade e exigências, podemos estar a agravar a sua situação emocional e a
torná-la menos capaz de lidar com a sua criança. E não só com ela, como com todos
os elementos que constituem o sistema familiar (França, 2000). Nesse caso estamos
apenas a aumentar o stress, a angústia e a disfuncionalidade.
É fundamental, por isso, compreender o processo desenvolvimento da família, e de
cada um dos seus membros, face a algo que ela não desejou ou planeou, os seus
processos e expectativas. Embora cada família seja diferente na sua história para a
ajudarmos, ou entendermos, precisamos ter em conta os factores principais que são
jogados num seu processo de desenvolvimento em que a existência de uma criança
com uma deficiência tem um forte impacto.
Por isso, nos últimos 10 anos, a partir do nosso trabalho com famílias de crianças com
Paralisia Cerebral e outras perturbações graves do desenvolvimento, temos procurado
um modelo teórico que possas dar conta dos principais, mais profundos e significativos
movimentos desenvolvimentais que vivem. Procurando, ao mesmo tempo, desenvolver
investigação e reflexão que nos permita ir validando e consolidando esse modelo
(Franco & Apolonio, 2002; 2008a ; 2008b).
Diversos modelos teóricos que têm tentado descrever o processo de adaptação da
família às novas condições decorrentes da existência de uma criança com deficiência
ou graves perturbações de desenvolvimento ou de saúde. Todos procurando
compreender a diversidade de respostas que encontramos nessas famílias. Esses
modelos encontram-se muito bem sistematizados (Monteiro, Matos & Coelho, 2002)
havendo aspectos que são comuns a todos eles.
Todos têm admitido a multifactorialidade dessa adaptação. Desde os mais antigos aos
mais recentes, ecológicos e transaccionais, sempre tem sido acentuada a importância
de multidimensionalidade da diversidade de factores envolvidos. Todos reconhecem a
existência, no processo, de variáveis que têm a ver com os indivíduos (pais), suas
características pessoais, personalidade e estilos de coping ou estilos cognitivos. Por
outro lado, há variáveis que têm a ver com a criança e a natureza do seu deficit ou
patologia (características físicas, cognitivas e funcionamento social) e o seu
funcionamento pessoal. Há ainda variáveis que têm que ver com o contexto mais
próximo (família) ou mais distante (comunidade e variáveis sistemas mais alargadas).
Todos esses modelos procuram integrar e descrever o que acontece mas, regra geral,
não se situam numa perspectiva de desenvolvimento mas numa postura mais
descritiva. Os modelos cognitivos que enfatizam coping numa perspectiva de
abordagem do stress tendem a enfatizar o modo como os pais avaliam cognitivamente
a situação e as respostas que dão (ou estratégias que usam). Estando centrados nos
processos de tomada de decisão e mais na relação entre estes e as acções do que nos
aspectos emocionas do desenvolvimento.
Pretendemos aqui contribuir para um modelo de compreensão que possa incorporar
aquilo que hoje sabemos ser importante no desenvolvimento das crianças pequenas,
nomeadamente os factores pré-natais e as representações que os pais têm sobre os
bebés (Brazelton & Cramer 1989). Mas pretendemos, essencialmente, um modelo que
nos ajude a situar e compreender os movimentos internos exigidos aos pais no seu
desenvolvimento. Na perspectiva de Kurt Lewin que não há melhor prática do que uma
boa teoria.
Alguns conceitos de outros modelos parecem-nos especialmente úteis.
O modelo de Crise de Vida (Moos & Stu, 1977) introduz o conceito de crise, embora
tenda a centrá-lo no real, nas vicissitudes práticas, e não tanto no seu significado, ou
seja, no problema critico e não no processo de desenvolvimento. A ideia de ciclo
(McCubbin & Patterson, 1983) reforça o de crise ou seja que o ajustamento é de
natureza diferente do da adaptação (um pouco no sentido piagetiano da assimilação e
acomodação). Já o modelo de Wallander (1989) introduz as dimensões do risco e da
resiliência
Mas, “de um modo geral os modelos ... compreendem a doença crónica ou a
deficiência como desencadeadores de stress ao qual a criança, a mãe e a família têm
de se adaptar” (Monteiro, Matos & Coelho, 2002). É essa compreensão da adaptação
que, na nossa perspectiva é insuficiente para dar conta da importância
desenvolvimental do ter um filho com deficiência
A criança com deficiência e a adaptação psicológica dos pais
1. A idealização
Para compreendermos a historia destas crianças nas suas famílias, temos de recuar
até ao primeiro momentos da sua existência. E sabemos, da investigação e do trabalho
com pais, que as crianças, todas elas, existem antes do seu nascimento e podem
existir mesmo antes da concepção pois nascem na imaginação dos pais quando estes
são capazes de os imaginar. Aí se inicia aquilo a que Brazelton chama a pré-historia da
vinculação. Ou seja aos laços mais precoces e fundamentais que permitem àqueles
pais serem uma família cuidadora e amorosa para a sua criança. Esta idealização
acentua-se no decurso da gravidez e vai preparando a família para um bebé real que
acabou por nascer.
Este bebé imaginário é construído pelos pais a partir de um conjunto de componentes:
a) Uma componente estética - o bebé ideal é aquele que tem características de
perfeição física e estética, eventualmente incorporando algumas dos pais mas
sempre atingido por padrões estéticos mais gerais. Corresponde, quase sempre,
ao bebé perfeito, sorridente, gordinho e com boas cores, limpo e activo, que
vemos na publicidade.
b) Uma dimensão de competência - um bebé que se espera que seja
intelectualmente competente, cheio de capacidades que correspondam ao estilo
de vida e valores dos pais: mais sociável ou mais liderante, mais simpático ou
mais afirmativo.
c) Uma dimensão de futuro - os pais imaginam um futuro ideal para essa criança,
que um dia fará os seus estudos, será estou ou aquele tipo de profissional, terá
um certo tipo de vida, bem sucedido, e os deixará felizes e realizados como
pais.
Estas dimensões imaginarias são fundamentais para que os pais possam suportar as
exigências colocadas pelo cuidar de um bebé. Quase paradoxalmente é o bebé
perfeito, nascido dentro de cada pai e de cada mãe, que lhes permite cuidar de um
bebé que não é de forma alguma perfeito: requer atenção, é instável, suja-se, grita,
exige, frustra. Os pais que não conseguem este pré-vinculo, ou seja não conseguem
imaginar os seus filhos, estão muito provavelmente a fazê-los incorrer no risco de
abandono físico ou emocional, negligência ou falta de cuidados adequados. Pois cuidar
um bebé exige uma disponibilidade que apenas com base na consciência da
responsabilidade ou na obrigação é impossível alcançar.
Quer isto dizer que as crianças que não nasceram na imaginação dos seus pais são
crianças sem um lugar para nascer, crescer e se desenvolverem, são crianças
emocionalmente abandonadas. Só crianças sonhadas como bonitas, perfeitas,
competentes e com um promissor futuro diante de si podem ser cuidadas pelos seus
pais. Nem todas as crianças começam por ser desejadas ou idealizadas, mas todas
precisam ter um lugar emocional para nascer, criado pelos seus pais, dentro de si, na
relação e no cuidar, que para ele irão criar no seu mundo.
Se esta é a história de cada criança, a sua história fundamental, a base e a pedra
chave do seu desenvolvimento, este é também o princípio da historia de vida de cada
criança com deficiência. Todas as crianças com deficiência nasceram, um dia, na
imaginação dos seus pais, como crianças perfeitas, competentes e promissoras. Todos
nasceram, na sua fantasia e no seu desejo, como ideais e capazes.
Ao nascerem com uma deficiência ou quando, mais tarde, essa alteração grave do seu
desenvolvimento é identificada, há uma ruptura de todo o percurso de desenvolvimento
dessa criança, da sua família e da ligação entre ambos. É neste momento, o segundo
num processo de desenvolvimento de um vínculo, que se dá a crise, ou seja a ruptura.
Nada mais será como dantes e nada será como tinha sido imaginado e esperado. É
muito mais do que trabalho acrescido, é muito mais que novas dificuldades, é muito
mais do que novas necessidades e exigências. É uma crise, ou seja, nada voltará a ser
igual; é toda uma perspectiva de vida, de presente e futuro, que tem de ser mudada
pois já não se adequa.
Quadro 1- Quadro conceptual do desenvolvimento dos pais de crianças com deficiência
2. A crise e a tentação de a resolver
O nascimento de uma criança com graves perturbações do desenvolvimento significa,
para os seus pais, uma verdadeira crise, com uma forte componente emocional e
cognitiva. Não se trata de uma simples perturbação, disfuncionamento, emergência ou
problema a ser resolvido, ou de um ajustamento s ser feito com os recursos que tem
disponíveis.
A crise significa sempre uma mudança estrutural no funcionamento de um sistema
(Alarcão, 2000). Quando, como aqui, ocorre um acontecimento que pela sua
importância e impacto desencadeia uma crise, deixa de ser possível voltar ao ponto de
partida. O que quer dizer que esta família, enquanto tal e enquanto sistema, nunca
mais será ou funcionará como antes. O que não implica, necessariamente, um carácter
patológico ou negativo. O sentido de crise é neutro. Aquilo que se lhe segue dependerá
da nova organização sistémica que se consiga construir e do modo como cada um dos
elementos elaborar os significados da nova situação.
Nas famílias em que nasce uma criança com uma deficiência grave, algo de
fundamental é posto em causa, de acordo com a diversidade dos factores que
caracterizam cada situação. O retomar do desenvolvimento, que é também a saída da
crise, não passa por aceitar a nova situação. Aceitação tem um sentido passivo, de
inevitabilidade e de resignação. Claro que tem de haver aceitação enquanto
reconhecimento do facto em si, o nascimento da criança e a realidade da sua
deficiência. A sua não negação será importante, mas nada nos diz sobre a forma como
cada família pode enfrentar a situação e da forma dinâmica como retoma o
desenvolvimento saudável e adequado.
A partir daqui, o que vai estar em causa, nestas famílias, são os meios que vão utilizar
e os movimentos que vão fazer para tentar retomar o seu curso de desenvolvimento.
Um vasto conjunto de comportamentos tem a ver com a expressão emocional do
sofrimento que a situação trouxe. Os modelos que tentam descrever esse percurso por
etapas têm, de um modo geral, pouca eficácia explicativa. Em primeiro lugar porque a
sucessão das etapas e, especialmente, a sua duração não é sempre a mesma. Mas,
para além disso, num mesmo momento sobrepõem-se comportamentos e atitudes que
se poderiam considerar de etapas diferentes. O que nos mostra que, mais que uma
sucessão, estamos perante um dinamismo de componentes emocionais e de
conflitualidades cognitivas e afectivas que cada família tem de gerir.
Também considerar as acções como meras estratégias de coping é insuficiente para
compreender o seu papel num processo de desenvolvimento. Nessa perspectiva, por
exemplo, a negação ou a diminuição da importância do problema, seria uma estratégia
de coping que se traduziria apenas em não saber lidar com a situação. O que nos diz
pouco sobre o que daí decorre para o processo de desenvolvimento. Nesse processo,
cada comportamento é mais que um comportamento, tem um sentido e um significado
no cuidar da criança, na forma de viver e reorganizar o seu mundo interno e de refazer
as suas relações.
Muitos destes movimentos estão interligados ou mascarados, como, por exemplo a
revolta, a negação, a culpabilização ou os sentimentos depressivos:
Revolta – O discurso de revolta, contra tudo e todos, é inevitável nestas situações e é
quase sempre a resposta inicial. Corresponde ao pôr em causa tudo, começando por
uma inquietação existencial de revolta contra Deus, o destino ou a sorte, que de forma
tão dura parece ser responsável pela destruição de algo bom e idealizado, como
vimos. Essa revolta dirige-se, também muito frequentemente, contra alvos bem mais
acessíveis: os médicos ou outros profissionais de saúde, familiares ou amigos que
alguma coisa fizeram ou não fizeram, contra os que parecem não compreender ou não
ser suficientemente solidários e empáticos. Que o discurso dos pais sobre a criança e o
seu desenvolvimento tenha uma componente de revolta e raiva contra todos os que
podem ser responsáveis pala situação, pelas coisas que não se têm ou obstáculos que
se encontram, é inevitável e está presente em todas as famílias. Já a manutenção da
revolta como elemento emocional preponderante, ao longo dos anos, é um mau
preditor do bom desenvolvimento dos pais e, principalmente, da qualidade da
vinculação. A investigação tem mostrado que a manutenção de um discurso marcada
pela revolta está inversamente correlacionado com o desenvolvimento da vinculação
entre pais e criança (Pianta, Marvin & Morog, 1999). Ou seja, o elemento de revolta e
raiva está ainda na esfera da elaboração da perda da idealização e, portanto, ligado ao
bebé idealizado e ao sofrimento causado por ter sido posta em causa. Por isso, mesmo
quando esta revolta parece ter uma dimensão legítima de interesse pelos filhos e
defesa dos seus interesses e se manifesta por um litigio permanente com os
profissionais ou serviços que lhe dão apoio, frequentemente estamos perante pais ou
mães com dificuldades de elaboração da perda e, consequentemente, perante famílias
que têm maior dificuldade em estar disponíveis, e disponibilizar os seus recursos
emocionais, para o filho real, a criança concreta com a sua deficiência.
Negação - A negação é um movimento inevitável e fundamental face ao impacto da
existência de uma perturbação grave do desenvolvimento. Tem uma dimensão positiva
na medida em leva a que os pais não fiquem passivos e resignados perante um
diagnóstico tão doloroso, e os faz buscar segundas opiniões, especialistas mais
qualificados e técnicos mais competentes. É a tentativa de negação que também os
pode fazer explorar todas as possibilidades, na esperança que aquela situação, que lhe
identificaram como grave, não seja verdade mas apenas um sonho mau. No entanto, a
negação pode ter formas mais destrutivas quando os pais negam a realidade e
colocam a crianças sem ter assistência nem cuidados porque, supostamente deles não
necessita. Como pode ser também negação esperar para ver o que acontece,
perdendo muitas vezes os momentos óptimos para uma intervenção mais promissora
porque mais precoce. Mesmo os próprios profissionais podem muitas vezes estar
igualmente comprometidos nesta negação, quando evitam o diagnóstico ou o assumir
das sua implicações. A negação pode até ter formas mais dissimuladas e
aparentemente benévolas: os pais que se afadigam durante anos em procurar
soluções milagrosas, num aparente interesse pela sua criança também podem estar,
dessa forma fugindo e negando a realidade. O aspecto principal da negação não se
refere à negação da realidade da criança em si. Refere-se à tentativa de negar a
descontinuidade entre o bebé idealizado e a criança real. Acontece sempre que o
interesse pela criança alimenta a ilusão de que, com um pouco mais de terapia, de
esforço de educadores, de apoios de algum tipo, a criança real pode corresponder à
criança idealizada. A negação é também a negação do desaparecimento do bebé
imaginário e da sua idealização. Mesmo que mascarada sob as mais legítimas
reivindicações de mais ou melhor apoio técnico.
Culpabilização – A atribuição de culpa é um dos factores mais presentes neste
processo, muitas vezes associada à revolta e mesmo à negação. A culpa tem
consequências destrutivas sobre todo o sistema e é sempre um obstáculo ao retomar
do processo de desenvolvimento. Pode tratar-se da culpa atribuída aos médicos ou
outros técnicos que estiveram presentes nas fases pré ou peri-natal, ou associados ao
momento do diagnóstico. A manutenção dessa culpabilização representa sempre
algum tipo de fixação no bebé idealizado, mantendo a sua representação. Nestes
casos a culpabilização liga-se directamente à revolta. Pode ser também a
culpabilização do cônjuge, que tem frequentemente efeitos muito destrutivos,
porquanto implica uma atribuição causal relativamente à deficiência, que muitas vezes,
é irracional e se estende até às gerações anteriores. A sua destrutibilidade é sempre
muito grande em relação ao funcionamento ou coesão familiar, assim como ao bem
estar emocional. Muito frequentemos encontramos ainda formas de auto-
culpabilização, que parecem mais frequentes nas mães, que não permitem um retomar
saudável do seu desenvolvimento pois o abdicar do beber imaginário não parece
possível pela presença dessa ferida da culpa.
Sentimentos depressivos - O mal-estar depressivo é compreensível numa situação,
como esta, de profunda perturbação emocional. Mais do que isso, o sofrimento
depressivo é inevitável pois o que está em causa é, antes de mais, uma perda: do bebé
idealizado, com tudo o que ele representa. Questão diferente é a da existência de
depressão crónica nestas famílias. Embora alguns autores afirmem a sua
inevitabilidade, fazem-no mais com suporte num modelo teórico (a existência de uma
ferida narcísica irreparável) ou em estatísticas que mostram a maior incidência de
situações depressivas nestes pais. Nenhuma delas nos permite, por si só, validar essa
perspectiva e encontramos oscilações significativas das situações depressivas ao
longo do tempo, dependendo da capacidade de pais e mães elaborarem os seus
sentimentos depressivos e de retomarem a sua conflitualidade emocional prévia.
Face a esta situação de crise e de perda, a questão passa a ser então: que faz a
família ? Tem dois grandes caminhos: ficar de alguma maneira ligada à fase anterior e
ao bebé imaginário ou, então, organizar o seu luto por ele.
3. O luto
Para prosseguir o seu processo de desenvolvimento, a família tem de fazer o luto pela
perda que sofreu: a perda do bebé idealizado, imaginário. Como qualquer perda, ela
exige que se lhe siga um processo de luto. Não que alguém tenha morrido, mas algo
se perdeu. Esse bebé tem de ser deixado. O luto refere-se ao processo em que, ao
longo de um determinado período, a pessoas elabora a sua perda.
Temos então uma desilusão. No sentido em que o bebé imaginário nunca chegou a
nascer . Pelo contrario, o bebé que nasceu com deficiência corresponde às maiores
angústias e ansiedades que, muito possivelmente, acompanharam a gravidez. A
desilusão funda o luto. A perda dos nossos objectos relacionai é sempre, como vimos,
acompanhado de dor mental e de sofrimento emocional.
O que aqui se perdeu foi não a pessoa, o bebé, mas o objecto interno idealizado com o
qual o processo vinculativo começou a ter lugar.
a) Factores presentes na elaboração do luto
Vários factores vão estar presentes neste processo de luto. Uns de natureza interna e
outros como contextuais.
No domínio contextual é importante tudo o que tem a ver com a rede social. Ao nível
mais próximo tem especial importância a relação intra-familiar, como a coesão familiar
(Franco & Apolónio, 2002), mas será importante toda a rede social não-formal: família
alargada, vizinhos, amigos, elementos da comunidade. Claro que o que temos vindo a
defender é que o retomar do desenvolvimento não se faz apenas em função do apoio
recebido, seja para as questões práticas do dia a dia seja para o equilíbrio emocional.
No entanto, certamente que esse suporte pode tornar os pais e mães mais disponíveis
para as sua tarefas desenvolvimentais, porque mais libertos de outros factores de
stress que se associam à situação mas lhe são secundários. A este nível não é
desprezar qualquer tipo de rede ou apoio social, incluindo os apoios formais que estas
famílias podem encontrar nas estruturas sociais e comunitárias em que vivem. É
importante a forma como a família se sente apoiada e luto não se resolve com
intervenção psicológica.
Ao nível interno, para alem das características de cada um dos pais, da sua
personalidade , factores e história pessoais, um conceito fundamental é o de
resiliência. Este conceito, ainda tão controverso, pode, de certo modo integrar muitos
desses factores pessoais e, mais do que isso, interligar-se com outros. Quando, em
investigação anterior (Franco & Apolónio, 2002), explorámos a resiliência das mães, os
factores mais importantes na forma como elas fizeram face ao problema foram: a
coesão familiar e a própria criança. O que nos mostra que a resiliência não tem a ver
apenas com dimensões internas (depressividade, auto-conceito, robustez psicológica)
mas interage com outros factores que são vividos de uma forma única e pessoal.
b) Pais presos no seu luto
Os pais que não elaboram este luto serão, compreensivelmente pais deprimidos ou
incapazes de se relacionarem emocionalmente com a criança, umas vezes dominados
pelos estados depressivos outras lutando contra eles. Podemos chamar a estes pais
funcionais, ou seja, pais que, em virtude do seu sofrimento emocional, não podem mais
do que tratar do seu filho, não podendo exercer uma verdadeira e completa
parentalidade, mas apenas podendo ser cuidadores de uma criança que exige mais do
que as outras.
Tais pais funcionais estão dominados pela acção e não pela relação parental. Todas as
suas forças e recursos passam a estar ao serviço das necessidades da criança que
deles carece, não vivendo os verdadeiros vínculos que pressupõem bidireccionalidade
e envolvimento emocional mútuo e recíproco.
4. Re-idealização
Este processo de luto é, no entanto, diferente de outros no que ser refere ao
desaparecimento da representação do objecto e do próprio objecto. O problema que
temos aqui é de natureza diferente. Aqui há uma criança que permanece. Será
adequado falar de luto ? Na língua portuguesa temos apenas uma mesma palavra para
designar o processo emocional e as formas ou sinais visíveis de o viver. Mas estamos
sempre a referir-nos ao processo emocional interno.
Mas, este processo não termina no processo de luto e na sua elaboração. Em
simultâneo, a questão fundamental passa a ser o que fazer com a criança. Como se
pode estabelecer um vínculo, uma ligação, com essa criança que não foi desejada, não
foi imaginada nem esperada. Não se trata de restabelecer ou recuperar um vínculo
mas de criar um vínculo com “outra” criança.
Aqui temos de nos socorrer de novo da teoria. Se a premissa que todas as crianças
nascem primeiro na idealização dos pais, e, mais do que isso, é essa idealização que
lhes dá possibilidade de existirem e serem criadas, a questão nuclear no
desenvolvimento destes pais e da criança não é o luto mas o que se lhe segue. Se o
que foi idealizado não nasceu, pois era o “outro”, há agora uma criança a ser cuidada e
investida emocionalmente como filha.
Assim sendo, também esta tem de ser re-idelaizada, ou seja, magnificada e fantasiada
na imaginação dos pais e no seu desejo em relação a ela. A re-idealização pressupõe
sempre o não retornar à idealização inicial, abdicando de qualquer movimento visando
a sua manutenção ou sobrevivência. Representa, por isso, a possibilidade de investir
emocionalmente o bebé real e deixá-lo percorrer o caminho que se considera essencial
para toda e qualquer criança.
Questão fundamental é compreender a natureza desta idealização. Se a inicial assenta
sobre o bebé ideal, esta confronta-se com o bebé real e as suas características.
Representa, por isso, a fertilidade emocional dos pais que se tornam capazes de
pensar sobre ele tal como ele é, e poderá ser e não como poderia ter sido.
É esta fertilidade emocional que pode dar às crianças um lugar para nascer. Não o
esforço, dedicação ou sacrifício dos seus pais. Nem o apoio social nas tarefas práticas
a realizar, por si só. Pensar isso seria o mesmo que dizer que o problema da
negligência ou do abandono não se coloca como risco de desenvolvimento quando a
comunidade possui boas instituições de acolhimento. Crianças filhos de pais funcionais
seriam crianças emocionalmente descuidadas. Assistidas mas não investidas na
promoção do seu desenvolvimento.
Sem reidealização temos, apenas, como vimos, pais funcionais. Ou seja, pais cuidando
de crianças com base no seu esforço, das suas estratégias de coping e procurando
apoio. Mas não pais amorosos e emocionalmente envolvidos. É isto de define a
parentalidade e a criação de laços e vínculos imprescindíveis ao desenvolvimento da
criança.
A re-idealização implica um segundo nascimento da criança. Assim, ao invés do que
acontece habitualmente, um nascimento que se deu primeiro na realidade e depois na
imaginação dos pais.
a) Dimensões da re-idealização
Devemos interrogar-nos sobre quais as características e condições para tal
investimento emocional. O que foi dito anteriormente em relação à idealização em geral
também é aplicável para a reidealização destas crianças. Também continuam a poder
identificar-se três dimensões: uma estética, uma ligada às competências e outra ligada
à temporalidade (perspectiva temporal futura).
A possibilidade dos pais da criança olharem para ela e acharem-na bonita é uma
dimensão fundamental da constituição do vínculo. O ditado português “quem o feio
ama bonito lhe parece” remete-nos para a verdade estética do vínculo. Esta dimensão
estética está ligada à vertente narcísica da paternidade: a possibilidade dos pais
mostrarem aos outros o seu filho, que vêm como bonito, esperando que do outro lado
haja o mesmo reconhecimento de beleza. É esta dimensão da re-idealização que pode
impedir que muitas crianças sejam retidas em casa, pelos seus pais, a salvo do olhar
dos outros. É também o que permite o seu cuidado estético para além do funcional.
Que não sejam apenas bem alimentados ou tenham as terapias certas, mas alvo de
tudo aquilo que, de aparentemente supérfluo, todos os pais querem dar às suas
crianças para que fiquem bonitas, sejam vistas como bonitas e gostem delas.
A segunda dimensão, a relativa às competências e capacidades é a que, por definição,
se encontra afectada nestas crianças. A falta de capacidades ou competências é o que
concretiza a sua situação de portador de deficiência. Quando se defende que nos
trabalho com estas crianças nos devemos centrar no que elas são capazes de fazer e
não naquilo que não são capazes, devemos estar a dizer muito mais do que um
modelo, ou uma técnica de trabalho com ela. A possibilidade dos pais (como também
os técnicos) reconhecerem as competências dos seus filhos com deficiência é
fundamental nesta re-idealização. O pai ou a mãe da criança deficiente motora não a
poderá mais idealizar como a grande desportista que porventura idealizou no passado;
mas se a conhecer, compreender as suas competências pode, agora, idealizá-la talvez
como a medalhada nos jogos paralimpicos e, assim mesmo uma grande desportista.
E esta idealização, para estes pais, não é menos mobilizadora do que para outros que
pensaram que um dia os seus filhos seriam grandes músicos, desportistas, médicos ou
homens de negócios. O que está em causa é a capacidade de idealizar a partir da não
negação, ou seja, a partir da realidade que se conhece neste momento, na sua
realidade actual e nos seus limites futuros. A inclusão educativa, social, desportiva ou
cultural destas crianças só faz sentido, só pode acontecer, se alguém, para elas, for
capaz de idealizar, desejar algo de bom, belo e exigente, tendo em conta a sua
realidade mas desejando muito para alem dela. O limite é sempre o mesmo: o de não
cair em negação que seria, de novo, voltar à idealização original, ao outro, à criança
que não nasceu.
A dimensão futuro adquire-se assim na possibilidade de pensar o futuro.
Frequentemente os pais destas crianças vivem angústia e stress intensos
relativamente ao futuro, o seu e do dos seus filhos. Mas o futuro é, por definição, a
dimensão do que se espera, da esperança e do desejo. Podermos pensar sobre o
futuro é alimentar possibilidades, alimentar esperança. Estes pais, como todos os
outros, não podem saber o que vai acontecer no seu futuro e no dos seus filhos. A
paralisia operacional seria a incapacidade de pensar sobre isso que acompanha os
sentimentos de inutilidade, impossibilidade e helpless (incapacidade de se defender ou
agir sem ajuda).
Muitas vezes os pais, ou as mães, dizem que a sua realidade é tão difícil que apenas
podem pensar e enfrentar o dia a dia (um dia de cada vez). Mesmo assim são esses
que têm, muito frequentemente, na sua vivência, mais dimensões de esperança. Que
pode advir das suas convicções religiosas, ideológicas ou de acreditar em si mesmo,
quanto mais não seja para não se sentirem esmagados emocionalmente pelo presente.
Esta dimensão futuro aparece muitas vezes ligada à mudança de vida de alguns pais e
mães que se envolvem na criação de respostas que não existem, para a sua criança e
para as outras. Tornando-se assim em instrumento de mudança social e de criação de
serviços. Já não na perspectiva de proteger a sua criança, centrando-se sobre ela e a
sua reabilitação, mas ajudando a construir futuro para ela e para outras crianças ou
famílias em situação similar.
É então a re-idelização que permite retomar o processo de desenvolvimento dos pais
na relação com o seu filho com deficiência. Um desafio que requer tempo, mas em que
o tempo é cada dia menor. A Intervenção Precoce, neste sentido, seria a possibilidade
de encontrar o processo para que o vinculo se estabeleça o mais cedo e solidamente
possível. Este processo interno não se faz desconsiderando dimensões e variáveis
pessoais e contextuais.
b) Contextos e factores associados ao investimento emocional
Resiliência - O processo de fortalecimento da relação pais-criança não se faz à custa
das competências dos pais (de tipo interno) o que de algum modo faria depender de si
(da sua estrutura de personalidade ou das suas características – estilos cognitivos ou
outros) todo o processo. O conceito de resiliência ( Silva, 2006) tem aqui lugar.
Referindo-se a todos os factores que reforçam os pais nesse percurso. Num sentido
muito geral, essa resiliência é também construída na medida em que os pais são
capazes de usar os seus recursos próprios e os contextos para progredir no seu
desempenho. A re-idealização liga-se aos movimentos resilientes.
Relações e redes sociais - Outro factor importante é o tipo de suporte que a família
pode ter no seu contexto de vida. Em primeiro lugar as dimensões intrafamiliares desse
suporte, como a coesão familiar a partilha de tarefas e de perspectivas dentro do casal
e dentro da família mais restrita. Depois a família alargada e o apoio que esta possa
prestar, tanto emocional como prático. Fundamental será ainda a existência de
recursos e serviços de proximidade da comunidade em que a família vive. Podem ser
sistemas públicos de educação, saúde, reabilitação, educação especializada ou outros
organismos e respostas sociais. A rede social informal (amigos, vizinhos, grupos de
pertença) é outro dos elementos que pode servir de suporte fundamental para que
estes pais possam retomar os seu processo de desenvolvimento sem soçobrarem sob
o esforço, cansaço ou isolamento que a sua situação de vida pode acarretar.
No entanto, como sabemos da prática, muitas vezes é a própria existência de serviços
que leva a que os técnicos pensem que os pais “desinvestiram” as crianças. O que nos
diz que o suporte, por si só, nada esclarece sobre a natureza do desenvolvimento. Pelo
que, todos os factores de suporte são fundamentais na promoção da ligação ao bebé e
na retoma do desenvolvimento. Mas podem também não servir para mudar algo de
fundamental e ser apenas uma partilha do esforço e sacrifício, numa generalização do
desinvestimento da criança. Que passa a ter multicuidadores, mas sem vinculo.
Objectivos e limites do modelo
A existência de um modelo teórico permite alcançar dois grandes grupos de objectivos:
um ao nível da intervenção e outra ao nível da investigação.
Primeiramente permite guiar o trabalho técnico de apoio às famílias, nomeadamente o
que é feito ao nível do desenvolvimento emocional do pais. Mais do que responder às
suas necessidades actuais, os diferentes técnicos têm de estar aptos a compreender
as suas problemáticas de desenvolvimento, tanto quanto as da criança. Qualquer
modelo só será útil na medida em que permita aos técnicos, e às próprias famílias,
terem uma maior consciência do ponto em que se encontram, daquilo com que
trabalham ou que têm pela frente.
Para isso é importante mais investigação. Pelo que presente modelo pretende também
propor uma forma de situar e promover essa investigação. Nomeadamente gerando
instrumentos e metodologias que permitam avaliar e situar as famílias num dos
pontos definidos pelo modelo, tendo em conta o peso real das diferentes variáveis que,
em cada caso, terá de ser diferentes. Verificámos anteriormente que o impacto da
intervenção ao nível familiar é sempre menor e mais difícil de avaliar, por exemplo na
Intervenção Precoce (Franco & Apolónia, 2008 a; 2008b). Um modelo que permita
elucidar o sentido do desenvolvimento e que esclareça os objectivos e fins últimos da
intervenção na própria família poderá tornar-se num referencial profícuo para a
compreensão das famílias das crianças com deficiência ou com sérios problemas de
desenvolvimento
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