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O Brasil e os blocos regionais: soberania e interdependência

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Historical essay on the development of the world economy, with emphasis on the role played by trading blocks in the creation of economic interdependence. Also examined is the process of integration how it contributes to the relative reduction of national sovereignty. This is a conceptual and empirical analysis of these phenomena and their relevance to the world economy at the dawn of the twenty-first century.
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O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
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O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS
soberania e interdependência
ma questão historicamente pertinente, para todos
os que se interessam pela evolução de longo pra-
zo da economia mundial, seria inquirir em que
tanto, prevalecer sobre os momentos de ruptura. O fim do
socialismo e a retomada do processo de globalização te-
riam recolocado o capitalismo na mesma postura de pree-
minência ideológica e de dominação material absoluta que
ele já ostentava em 1900. Estaríamos assistindo, no que
se refere algumas das características desse velho capita-
lismo, a um revival de valores em princípios que pare-
ciam ter sido aposentados pelo welfare state de meados
do século XX. Entretanto, haveria algo de fundamental-
mente novo na organização social do modo de produção
capitalista, desde que o laissez-faire da belle époque foi
deixado de lado pelos requerimentos dirigistas da Primeira
Guerra Mundial?
O papel do Estado na economia, obviamente, e prova-
velmente também o padrão-ouro monetário, sacrificado
no altar emissionista do papel-moeda sem lastro aparen-
te, constituem dois desses pontos de ruptura. Entretanto,
do ponto de vista estrutural, algo mais mudou no cenário
econômico mundial? Aparentemente pouca coisa, a jul-
gar pelo modo de funcionamento e pelos botões de co-
mando da economia capitalista. Com efeito, apesar dos
inúmeros choques e transformações estruturais por que pas-
sou a economia mundial no decorrer do longo século XX
medida, neste início de século XXI, ela difere de modo
significativo de sua equivalente funcional de 100 anos
atrás. Quais seriam os elementos de ruptura e quais aque-
les de continuidade que uma apresenta em relação à ou-
tra, com base nessa perspectiva histórica secular? Uma
primeira mudança de impacto, de natureza mais cultural
do que propriamente econômica, poderia ao mesmo tem-
po ser considerada como apresentando características de
continuidade: o capitalismo está novamente sozinho. De-
pois de um “breve” intervalo de 70 anos, em sua extensão
máxima, o modo de produção alternativo, baseado na apro-
priação supostamente coletiva dos meios de produção,
deixa o cenário da realidade para tornar-se uma simples
referência histórica e talvez mesmo, dentro de mais al-
gum tempo, um mero objeto de “arqueologia industrial”.
DOMINAÇÃO DO CAPITAL: DÉJÀ VU AGAIN?
A economia internacional voltou a ser basicamente de
mercado e os elementos de continuidade parecem, por-
Resumo: Ensaio histórico sobre o desenvolvimento da economia mundial, com ênfase no papel desempenhado
pelos blocos de comércio na construção da interdependência econômica contemporânea e pelos processos de
integração na diminuição relativa da soberania nacional. Análise conceitual e empírica sobre esses processos
e seu desempenho como entidades relevantes da economia mundial do começo do século XXI.
Palavras-chave: economia internacional; integração e blocos de comércio; Mercosul.
Abstract: Historical essay on the development of the world economy, with emphasis on the role played by
trading blocks in the creation of economic interdependence. Also examined is the process of integration how
it contributes to the relative reduction of national sovereignty. This is a conceptual and empirical analysis of
these phenomena and their relevance to the world economy at the dawn of the twenty-first century.
Key words: world economy; integration and trading blocks; Mercosul.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1): 3-16, 2002
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
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econômico, atores relevantes e processos produtivos per-
manecem basicamente os mesmos do que um século atrás.
O grupo de economias dominantes, por exemplo, que
respondia pela maior parte dos fluxos internacionais de
bens, serviços e capitais em 1900, continua, com poucas
exceções, a dar as cartas do jogo econômico neste início
de século XXI, da mesma forma que o sistema produtivo
continua a ostentar, grosso modo, os mesmos princípios
organizacionais e institucionais. Vejamos, em primeiro lu-
gar, os elementos de continuidade mais de perto.
Na Europa, com exceção do desaparecimento do Im-
pério Austro-Húngaro, que nunca teve características eco-
nômicas bem marcadas, os centros de poder econômico
são praticamente os mesmos. A Alemanha, que já tinha
ultrapassado, em 1900, a economia então dominante, a
da Grã-Bretanha, volta a integrar, depois da “segunda
guerra de trinta anos”, o pelotão das economias domi-
nantes, apesar de amputada de cerca da metade de seu
território e população e de reduzida à condição de anã
política durante a maior parte do período. Na Ásia, a as-
censão do Japão a grande potência econômica foi obvia-
mente confirmada, ainda que as promessas de liderança
tecnológica e financeira tenham sido seriamente questio-
nadas na última década do século XX. Cem anos atrás, a
Rússia e a China eram economias marginais em escala
planetária e assim permanecerão durante quase todo o
período: a União Soviética teve muito mais importância
na esfera política do que na econômica e o gigante asiá-
tico recuperava muito lentamente, no último quarto do
século XX, sua condição de maior economia do planeta,
que o Império do Meio ostentou até o começo do século
XVIII. Os Estados Unidos, convertidos de grande expor-
tador de produtos primários em primeira potência indus-
trial, já na passagem do século XX, permanecerão nessa
condição durante todo o período, acrescentando, a partir
dos anos 30, o título de primeira potência financeira, ao
operar-se, no seguimento da suspensão da conversibili-
dade da libra em 1931, a passagem à hegemonia finan-
ceira do dólar nos mercados financeiros (capitais para
empréstimos e investimentos diretos).
Da mesma forma, o velho capitalismo concentrador e
desigual, cujos “horrores econômicos” levaram Karl Marx
a propor um modo alternativo de produção, volta a mani-
festar-se em toda a sua pujança criadora e destruidora ao
mesmo tempo, retomando aliás o ciclo da internacionali-
zação que tinha sido tão bem analisado, em 1848, pelo
autor principal do Manifesto do Partido Comunista.1 Nada
mudou, praticamente, em relação a especialização produ-
tiva, organização da produção e dos mercados, trabalho
assalariado e sistemas contratuais, não fosse pelo reforço
das atividades do terciário – hoje quase dois terços da eco-
nomia nos países desenvolvidos – que Marx ignorava to-
talmente por considerá-las como “não produtivas”. Algo
mudou, por certo, no panorama geográfico da economia
mundial, o que é revelado pela incorporação das últimas
terrae incognitae ao movimento do capital, territórios antes
reservados ao modo de produção socialista que, ao desa-
parecer depois de setenta anos, se tanto, de vida “inútil”,
sempre foi marginal nos campos da tecnologia, das finan-
ças, do comércio e da inovação.
Ainda mais autocentrado e autárquico do que as eco-
nomias comandadas pelos regimes fascistas do entre-guer-
ras, o socialismo manteve-se – ou foi mantido – à mar-
gem da economia mundial. Ainda assim, os sistemas
baseados no planejamento estatal centralizado exerceram
certa influência no pensamento econômico do século XX,
contribuindo para moldar políticas econômicas que tive-
ram certa ascendência no imediato pós-guerra, como a in-
dução pública dos investimentos, o controle estatal da
oferta de “bens públicos” e os novos monopólios nacio-
nais nas esferas de transportes, comunicações, energia,
notadamente. Não obstante isso, o planejamento indicati-
vo e o controle estatal praticados em certas economias
capitalistas na segunda metade do século foram mais em
razão do legado do período de guerra, quando setores in-
teiros da economia possuindo algum significado estraté-
gico tiveram de ser mobilizados e controlados pelo Esta-
do, do que a algum compromisso ideológico com os
sistemas econômicos de tipo nacional-socialista ou comu-
nista. Vale lembrar, também, que a suposta herança
keynesiana dos anos 30, teve escassa influência nos pa-
drões de políticas públicas do período anterior à Segunda
Guerra Mundial, vindo a florescer, basicamente, nos sis-
temas de welfare state do pós-guerra. As mudanças polí-
ticas então introduzidas, tendo em vista o maior controle
governamental sobre o instrumental macroeconômico (de-
manda agregada, política fiscal, taxa de juros, movimen-
tos de capitais), respondiam mais a preocupações de or-
dem prática dos políticos e estadistas, acossados pela
memória da depressão dos anos 30, do que às contribui-
ções teóricas do grande pensador econômico britânico.
Em todo caso, no mesmo momento em que o keyne-
siasmo passou a enfrentar certo declínio intelectual e polí-
tico, sob o impacto do aríete ideológico do tatcherismo e
da reaganomics, inspirados diretamente em Hayeck, jo-
gavam-se algumas pás de terra no caixão do modo de pro-
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O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
dução socialista, falecido mais em virtude da inanição aguda
causada por sua inoperância econômica do que pelo vírus
da democracia política. Assistiu-se, a partir de 1989, não
tanto a um “fim da História”, mas a um “fim da Geogra-
fia”, uma vez que o levantamento das barreiras artificiais
ao deslocamento do capital fez surgir, no mesmo movi-
mento, um único “exército industrial de reserva”, obvia-
mente representado pela China e seus milhões de coolies
do novo capitalismo manchesteriano do século XXI.
Com efeito, o impacto da incorporação dos ex-países
socialistas aos circuitos da economia internacional não
seria muito grande como produto global (15%, se tanto,
do PIB mundial, em razão de sua baixa produtividade) e
menos ainda, em fase inicial, como aumento do comércio
(basicamente produtos primários, já que os manufatura-
dos “socialistas” tinham competitividade nula), mas as con-
seqüências seriam mais relevantes no que tange a divisão
internacional do trabalho, com uma expansão em torno
de 35% da população economicamente ativa. Esse incre-
mento do exército industrial de reserva se refletiria no au-
mento da participação da China nos fluxos de comércio
internacional, à medida que ela (ainda formalmente so-
cialista) passa a dirigir para o exterior a produção deriva-
da dos investimentos diretos estrangeiros (grande parte de-
les da diáspora chinesa no sudeste asiático) que ela passa
a acolher em volume expressivo nos anos 90.
Em que pese, no entanto, a manutenção de um mesmo
número definido de atores globais e a persistência de pa-
drões relativamente similares de produção, comércio e fi-
nanças, a economia globalizada e interdependente do co-
meço do século XXI apenas aparentemente se assemelha
àquela do início do século anterior. A grande diferença
manifesta-se no campo geopolítico (ou talvez no domínio
geoeconômico), pois o movimento de globalização reto-
mado no último terço do século XX é acompanhado pelos
processos de regionalização, destacando-se, nos últimos
40 anos, a formação, consolidação e expansão do bloco
europeu – comunidade européia do carvão e do aço, mer-
cado comum, Comunidade, depois União Européia –, que
é, de certa forma, o herdeiro coletivo das potências colo-
niais européias do final do século XIX.
BLOCOS REGIONAIS:
CONCEITO E MANIFESTAÇÕES EMPÍRICAS
Embora a designação de “bloco regional” possa ser
aplicada a qualquer grupo de países vinculados pela
contiguidade geográfica (blocos asiático, africano ou la-
tino-americano) ou por acordos intergovernamentais, de
tipo econômico ou político, o termo, em sua acepção res-
trita, refere-se aos agrupamentos de caráter comercial re-
sultando de um projeto integracionista. São exemplos de
blocos regionais a União Européia (UE), o Mercosul e o
Nafta, bem como dezenas de outras entidades menos co-
nhecidas. Mesmo se antecedentes existem na antigüidade
– Liga Ateniense – ou no começo da Idade Moderna –
Liga Hanseática, por exemplo –, trata-se de fenômeno
recente, coincidindo com a emergência da ordem interna-
cional pós-Segunda Guerra. O processo de formação dos
blocos regionais contemporâneos coincide com o desen-
volvimento dos processos de integração econômica, cujo
primeiro exemplo bem-sucedido foi o Mercado Comum
Europeu criado pelo tratado de Roma de 1957, converti-
do depois em Comunidade Européia e mais recentemente
(1992) em União Européia, contendo inclusive dispositi-
vos sobre moeda única.
O conceito de integração econômica aplica-se a enti-
dades de natureza política diversa, com realidades eco-
nômicas diferenciadas entre si, mas será melhor percebi-
do se considerado como um processo em etapas sucessivas:
área de preferências tarifárias, que comporta a simples
redução seletiva de tarifas entre dois ou mais sócios, sem
obrigações complementares como política comercial; zona
de livre-comércio, que liberaliza completamente o inter-
câmbio entre membros em um prazo determinado, con-
servando entretanto cada qual sua própria estrutura tarifária
em relação a terceiros países; união aduaneira, que com-
preende, ademais, a definição de uma tarifa externa co-
mum; mercado comum, que liberaliza completamente o
fluxo de fatores produtivos e de pessoas, além de obrigar
a adoção de políticas comuns nas áreas comercial, indus-
trial, agrícola e de concorrência, entre outras; união eco-
nômica e monetária, que pode comportar, como no caso
da UE, a abolição das moedas nacionais em favor de um
meio circulante comum a seus membros.
Os blocos regionais organizados em torno de um acor-
do de integração, como a UE, o Mercosul e o Nafta, apre-
sentam a dupla característica de serem discriminatórios
em relação aos países não-membros – isto é, excluindo
estes últimos das vantagens e benefícios recíprocos con-
cedidos aos membros, configurando, portanto, uma exce-
ção ao princípio da nação-mais-favorecida (NMF) admi-
nistrado pelas regras do GATT – e de contribuírem,
progressivamente, para o aumento da interdependência
econômica global, ao anteciparem e prepararem proces-
sos mais complexos e geograficamente mais amplos de
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
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liberalização comercial e de abertura econômica no qua-
dro do sistema multilateral de comércio, atualmente regi-
do pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A
multiplicação desse tipo de acordo comercial nas duas
últimas décadas do século XX obrigou inclusive essa or-
ganização a constituir, desde 1996, um Comitê sobre Acor-
dos Regionais de Comércio, com vistas a monitorar seu
desenvolvimento, a examinar sua consistência com as re-
gras do GATT-OMC e a evitar a generalização de práti-
cas excludentes e discriminatórias. Como exemplos des-
sas práticas podem ser citados os regimes especiais
aplicados a determinados ramos da economia – como a
Política Agrícola Comum da UE, por exemplo, altamente
distorcida das regras multilaterais de comércio –, que re-
sultam em reservas de mercado e dispositivos contrários
ao princípio do tratamento nacional, outro dos fundamen-
tos do GATT, com a reciprocidade.
No regime do GATT, os blocos regionais são regidos
pelo art. 24, que estabelece as condições pelas quais es-
ses agrupamentos (em geral sob a forma de zona de livre-
comércio ou de união aduaneira) podem ser progressiva-
mente constituídos como exceção à cláusula NMF
(geralmente no prazo de dez anos), devendo cobrir “subs-
tancialmente todo o comércio” entre os membros, sem in-
troduzir maiores barreiras tarifárias e restrições não-tari-
fárias do que as existentes no comércio desses países com
terceiros, anteriormente à criação do novo bloco. Em 2000,
existiam no mundo cerca de 130 agrupamentos regionais,
e 90 deles tinham sido notificados à OMC depois de sua
criação, isto é, 1995. Desse número, seis blocos tinham
sido declarados em conformidade com as regras do GATT-
OMC, mas apenas dois estavam ainda vigentes.
A UE, a mais exitosa experiência de integração econô-
mica conhecida, estabeleceu desde seu início o objetivo
do mercado comum (livre circulação de bens, serviços,
capitais e pessoas), atingido de forma acabada apenas em
1993, mas convivendo durante muito tempo com espaços
econômicos reservados aos nacionais de seus países cons-
titutivos (monopólios estatais ou exceções nacionais em
matéria de transportes aéreos, sistemas bancários, meios
de comunicação de massa, por exemplo). Já o Nafta é uma
simples zona de livre-comércio, embora reforçada por dis-
positivos liberalizantes abrangentes, cobrindo serviços,
investimentos, concorrência, compras governamentais e
propriedade intelectual. O Mercosul pretende ser um mer-
cado comum, ainda que em uma modalidade intergover-
namental e não sob o formato do direito comunitário como
no caso da UE. Entretanto, dez anos depois de sua cria-
ção, em 1991, ele ainda não conseguiu realizar plenamente
sua zona de livre-comércio ou implementar de maneira
integral sua união aduaneira. Os demais exemplos conhe-
cidos de integração combinam elementos de livre-comér-
cio com os de uma simples área de preferências tarifárias,
a primeira etapa da construção integracionista.
O modelo europeu de cooperação econômica e de in-
tegração comercial – que na verdade começou em 1951
com a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (Ceca)
– exerceu forte influência em toda a América Latina, ten-
do inspirado diversos experimentos integracionistas des-
de os anos de 1960, a começar pela Associação Latino-
Americana de Livre Comércio (Alalc), criada pelo Tratado
de Montevidéu desse ano e substituída, vinte anos depois,
pela Aladi, que a despeito do ambicioso objetivo integra-
cionista que ostenta no nome não passa de uma simples
zona de preferências tarifárias. É no âmbito da Alalc-Aladi
que se desenvolvem as experiências sub-regionais de
integração, a começar pelo Grupo Andino (criado com o
Pacto de Cartagena de 1969), convertido em Comunida-
de Andina em 1996 (sem que, no entanto, sua pretensão
em atingir a fase do mercado comum tenha sido sequer
vislumbrada), e sobretudo a do Mercosul, o mais impor-
tante bloco de países em desenvolvimento que pretendem,
tendencialmente, alcançar um mercado comum. A Aladi,
que oferece cobertura jurídica – do ponto de vista das re-
gras do GATT e dos compromissos multilaterais comer-
ciais – a todos os países da região, reagrupa quase toda
América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colôm-
bia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela), mais
o México (que solicitou uma derrogação de suas obriga-
ções em relação à cláusula NMF, pelo fato de ter aderido
ao Nafta) e, desde 1998, Cuba.
No ano de 1960, criou-se a Associação Européia de
Livre Comércio (Efta) com vistas a oferecer uma perspec-
tiva de liberalização dos intercâmbios aos países que não
aderiram, em 1957, ao projeto comunitário dos tratados
de Roma, em especial o Reino Unido e os países escan-
dinavos. A Efta agrupou, no início, todos os outros países
capitalistas europeus que não pertenciam à Comunidade
Européia, mas quase todos eles decidiram aderir, aos pou-
cos, ao sistema comunitário, à exceção da Suíça, da No-
ruega e da Islândia. Data dessa mesma época, o Mercado
Comum Centro-Americano (MCCA), que nunca realizou
seu objetivo nominal, contentando-se com acordos de li-
vre-comércio com seus vizinhos maiores, como México,
Venezuela, Colômbia e também o Chile. México, Vene-
zuela e Colômbia encontram-se por sua vez vinculados,
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O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
desde 1995, no chamado Grupo dos Três (G-3), que visa
à constituição de uma zona de livre-comércio num prazo
de dez anos.
Ainda no hemisfério americano, cabe reconhecer que
o maior agrupamento de todos, o já citado Nafta – assina-
do em 1992, em vigor desde 1994 entre os Estados Uni-
dos, o Canadá e o México – pode ser estendido a outros
países, como revelado em algumas concessões feitas a
países do Caribe e da América Central e, sobretudo, na
decisão tomada pelos Estados Unidos em novembro de
2000 a fim de negociar um acordo de livre-comércio com
o Chile, país que já mantém acordos similares com outros
dois membros do Nafta, o México (1992) e o Canadá
(1998). Dois pequenos grupos regionais atraem mais a
atenção do que efetivamente pesam na balança da região:
a Comunidade do Caribe (Caricom), criada em 1995 com
o objetivo de constituir um mercado comum, mas que não
logrou sequer ser uma zona de livre-comércio; e a Asso-
ciação dos Estados do Caribe (AEC, 1994), da qual fa-
zem parte inclusive Cuba, os centro-americanos, México
e Venezuela, e que se dedica mais à concertação e à coo-
peração econômica e política.
Na região da Ásia-Pacífico, destacam-se: a Associação
das Nações do Sudeste-Asiático (Asean), criada na época
da guerra fria (1967) para fortalecer a cooperação política
entre países anticomunistas, mas que admitiu, recentemente
o Vietnã ainda formalmente comunista e que tenta nego-
ciar uma zona de livre-comércio passando por um sistema
de preferências tarifárias; a Closer Economic Relations
(CER), zona de livre-comércio entre Austrália e Nova
Zelândia que pode evoluir para uma união econômica; e a
Asia Pacific Economic Cooperation (Apec), fórum de diá-
logo que associa quase todos os países da bacia do Pacífi-
co (inclusive no hemisfério americano) em um programa
de liberalização de comércio e de cooperação econômica.
Na África, a despeito de tantos experimentos, ao longo dos
anos, quanto na América Latina, o único bloco regional
com viabilidades comerciais – mas inúmeros obstáculos
políticos momentâneos – parece ser representado pela
Southern African Development Community (SADC), com-
posto por uma dúzia de nações meridionais sob a lideran-
ça da África do Sul, e que visa à constituição de um mer-
cado comum em médio prazo.
Na última década do século XX, os dois processos apa-
rentemente contraditórios – mas basicamente complemen-
tares – da globalização e da regionalização avançaram de
maneira constante e aparentemente bem-sucedida. A UE,
instituída pelo Tratado de Maastricht (1992) e constituí-
da em união monetária (entre onze membros apenas, em
sua fase inicial, entre 1999 e 2001), encontrava-se nego-
ciando o ingresso de mais de uma dezena de países da
Europa central e meridional e assinou um acordo-quadro
de cooperação com o Mercosul (1995), que poderá evo-
luir para uma zona de livre-comércio. Da mesma forma, o
Mercosul multiplicou, em sua fase de união aduaneira (a
partir de 1995), os acordos de associação com outros paí-
ses (Chile e Bolívia, em 1996 e 1997; África do Sul, em
2000) ou grupos de países (Comunidade Andina, em 1998,
sem sucesso porém, repetindo-se a iniciativa em 2000 para
implementação a partir de 2002).
A CAN partilha de muitas das preocupações do Mercosul
nas negociações levadas a efeito no quadro do chamado
processo hemisférico, cujo objetivo é a constituição, a par-
tir de 2005, de uma área de livre-comércio do Alasca à Ter-
ra do Fogo, concebida segundo o modelo do Nafta. As ne-
gociações, lançadas em Miami, em 1994, entre 34 países da
região (à exceção de Cuba), foram de fato iniciadas com
base na reunião de cúpula de Santiago (1998) e ratificadas
em Quebec (2001); se exitosas, elas podem levar à
implementação da Alca depois de 2005, embora subsistam
vários imponderáveis econômicos – acesso a mercados de
produtos agrícolas ou medidas antidumping, por exemplo –
e políticos – correspondência com movimentos e processos
similares de liberalização no âmbito da OMC, iniciativas
semelhantes da UE em direção ao Mercosul. Esse bloco,
com apoio da CAN, logrou obter, em 1997, na conferência
ministerial de Belo Horizonte, que a eventual formação da
futura Alca se fizesse segundo o modelo da adição dos es-
quemas comerciais existentes na região – conceito de
building-blocks –, e não pela simples diluição ou integra-
ção individual dos países latino-americanos ao acordo do
Nafta, como pretendiam então os Estados Unidos.
COMÉRCIO: LIBERALISMO, PROTECIONISMO,
MULTILATERALISMO E REGIONALISMO
Os fluxos de comércio explodiram ao longo do século
XX, saindo do quadro dos tratados bilaterais típicos da-
quele século – com cláusulas condicionais e limitadas de
nação-mais-favorecida – para o âmbito dos acordos mul-
tilaterais regidos pelo GATT a partir de 1948. Poucas na-
ções, a exemplo da Grã-Bretanha – entre 1856 e a Primei-
ra Guerra Mundial –, praticavam o livre-comércio, mas
as barreiras tarifárias e não-tarifárias eram bem menos im-
portantes no século XIX do que vieram a ser na passagem
para o século XX e, sobretudo, depois da grande crise de
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1929. Depois do protecionismo dos anos 30, o comércio
internacional cresceu a ritmos sustentados no pós-guerra,
atuando como indutor de modernização tecnológica e de
ganhos de competitividade. De fato, o ritmo de expansão
do comércio internacional, nesse período, apresentou ta-
xas consistentemente superiores ao crescimento do pro-
duto global, evidenciando o aumento da especialização, a
diminuição dos custos de transportes e uma estratégia de
market sharing por parte das empresas transnacionais.
Elas são, na verdade, as grandes responsáveis, a partir
dos anos 50, pelo aumento do comércio mundial, que, à
diferença do início do século XX, não mais se reduzia à
troca de produtos acabados entre economias nacionais, mas
passou a ser cada vez mais dominado pelo intercâmbio de
produtos semi-acabados e de componentes, que são ex-
portados, não mais para “países”, mas para outras firmas,
muitas vezes afiliadas ou subsidiárias das primeiras. A
partir do quarto final do século XX, um terço, senão mais,
do comércio internacional passou a ser realizado entre as
próprias firmas multinacionais, em geral no sentido Nor-
te-Norte, já que o comércio Norte-Sul continua a ser do-
minado por um padrão mais tradicional de trocas, envol-
vendo matérias-primas e commodities contra manufa-
turados e outros produtos de maior valor agregado.
Por outro lado, uma parte desse intercâmbio também
começou a ser realizado ao abrigo de sistemas preferen-
ciais, como são os esquemas de integração e os blocos de
comércio, seja no formato mais simples das zonas de li-
vre-comércio, seja nos mais sofisticados de tipo mercado
comum ou união monetária. Esses arranjos econômicos,
sancionados ou não pelo sistema multilateral de comér-
cio regido pelo GATT, começaram a ser feitos, em certa
medida, para contornar obstáculos não-tarifários que pas-
saram a ser erigidos à medida que as rodadas de negocia-
ções multilaterais do GATT foram reduzindo, em níveis
geralmente insignificantes, as tarifas aplicadas a bens in-
dustriais pelos países mais avançados. Em determinado
momento, o desarme tarifário deu lugar a discussões so-
bre obstáculos não-tarifários e outras medidas não quan-
tificáveis – chamadas de “zona cinzenta” – cujo impacto
cresceu valendo-se do momento em que novos competi-
dores agressivos, como os países emergentes da periferia
capitalista, passaram a oferecer uma gama mais ampla de
produtos de melhor qualidade nos mercados mundiais.
O protecionismo comercial pode ser ocasional e sujeito
a lobbies setoriais que fazem pressão pela defesa de empre-
gos em determinadas indústrias – como nos EUA, onde ele
em geral assume a forma de abusivas medidas antidumping
ou dos direitos compensatórios – ou institucionalizado e sis-
temático, como no caso da “Política Agrícola Comum” da
União Européia, baseada em mecanismos complexos de pro-
teção à produção local – via subsídios à produção e restri-
ções quantitativas, como quotas e picos tarifários contra as
importações – complementada pela competição desleal no
comércio externo, mediante subvenções ilegais às exporta-
ções. Geralmente aplicado ao setor agrícola ou no caso de
algumas indústrias tradicionais não competitivas – siderúr-
gicas, têxteis, calçados –, o neoprotecionismo dos países
desenvolvidos subtrai aos países emergentes e em desen-
volvimento o benefício que eles poderiam retirar do co-
mércio exterior enquanto fator indutor de crescimento e de
transformação estrutural de suas economias.
Alguns mecanismos compensatórios foram desenvol-
vidos a partir dos anos 50 e sobretudo nos 60 para inte-
grar de forma mais completa os países em desenvolvimento
na economia mundial. Eles se manifestam no sistema ge-
ral de preferências – pelo qual os países industrialmente
avançados fazem concessões tarifárias àqueles menos
avançados, sem exigir compensações em troca – e em al-
guns acordos concessionais que tendem a reproduzir an-
tigas relações de dependência formalmente abolidas com
a descolonização. A conferência das Nações Unidas so-
bre comércio e desenvolvimento – UNCTAD – tentou con-
sagrar, nos anos 60 e 70, formas mais avançadas de rela-
cionamento comercial, financeiro e tecnológico entre
países ricos e pobres que pudessem institucionalizar, por
meio de acordos multilaterais, o princípio do tratamento
diferencial e mais favorável em favor dos últimos, mas os
primeiros sempre manifestaram preferência por arranjos
mais flexíveis, caracterizados pela concessionalidade uni-
lateral e seletiva (inclusive do ponto de vista político).
Práticas discriminatórias e modalidades pouco transparen-
tes de acesso a mercados continuam, portanto, a marcar o
comércio internacional, a despeito do grande progresso
que se logrou quando, no final da Rodada Uruguai de ne-
gociações comerciais multilaterais, se passou, em 1995,
do regime mais “permissivo” do GATT-1947 para os
mecanismos mais estritos do GATT-1994 e da OMC.
Não obstante isso, o tratamento discriminatório mani-
festa-se sobretudo sob a forma dos esquemas de integra-
ção, geralmente entre países vizinhos. Os blocos regio-
nais de comércio adotam como ponto de partida a
contigüidade geográfica para desenvolver mecanismos
preferenciais de acesso aos mercados dos países-membros,
mas a maioria limita-se a esquemas pouco elaborados, ao
estilo das zonas de livre-comércio como o Nafta (embora
9
O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
ele contemple arranjos reforçados em serviços, investi-
mentos e propriedade intelectual). Alguns blocos comer-
ciais avançam a ponto de se converter em mercados co-
muns (como pretende ser o Mercosul, que ainda precisa
completar sua união aduaneira) e apenas um, a União
Européia, consolidou seu mercado comum e deu passos
decisivos para converter-se em união econômica e mone-
tária, tendo adotado inclusive uma moeda comum, o euro.
Os blocos comerciais tornaram-se importantes atores
da economia internacional, justificando-se que a OMC
tenha decidido instituir, um ano após sua criação, um co-
mitê dedicado a monitorar suas atividades, de maneira a
assegurar que esses arranjos – que, por sua natureza dis-
criminatória, podem desviar fluxos de intercâmbio – pre-
servem a compatibilidade com as regras do sistema mul-
tilateral. Em todo caso, na passagem do século XX para o
XXI, o processo de liberalização comercial poderia ser
impulsionado tanto pelas rodadas multilaterais adminis-
tradas pela OMC, cuja estrutura é formalmente igualitá-
ria, como pelos mecanismos geograficamente restritos dos
blocos comerciais.
Entre eles, o Mercosul – uma bem-sucedida experiên-
cia político-econômica e o mais importante esquema de
integração entre países em desenvolvimento – parece amea-
çado de ser colocado em situação de diluição comercial
antecipada sob pressão da Alca (Área de Livre-comércio
das Américas), projeto que envolve todo o hemisfério (com
exceção de Cuba). Criado pelo Tratado de Assunção de
1991, o Mercosul juntou numa mesma união aduaneira –
com a perspectiva de se avançar para um mercado comum
– as economias da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do
Uruguai, aos quais se associaram, mediante um acordo de
livre-comércio de 1996, Chile e Bolívia. Como resultado
de uma reunião de chefes de Estado dos países da Améri-
ca do Sul em Brasília, em setembro de 2000, negociações
estavam sendo travadas para a conformação de um espaço
econômico integrado nesse continente até 2005, unindo os
países do Mercosul e os da Comunidade Andina.
ALCA: FIM DA SOBERANIA ECONÔMICA
BRASILEIRA E DESAPARECIMENTO
DO MERCOSUL?
Admitindo-se que a opção pelo estabelecimento de um
espaço integrado em seu imediato entorno geográfico,
tal como evidenciado na experiência do Mercosul, cons-
titui uma das principais vertentes da estratégia brasilei-
ra de inserção econômica internacional na atualidade,
pode-se perguntar em que o desenvolvimento dessa mo-
dalidade restrita de interdependência econômica contri-
bui para o fortalecimento de sua economia e como a
irrupção da proposta da Alca pode, ao contrário, enfra-
quecer a “soberania” econômica do Brasil e colocar em
perigo as fundações do Mercosul. Registre-se que as
questões mencionadas já comportam uma opção de prin-
cípio pelo Mercosul e uma recusa apriorística da Alca,
como parece ocorrer com a maior parte dos atuais co-
mentaristas da economia brasileira.
Com efeito, muitas das questões que cercam o debate
sobre as vantagens e desvantagens da Alca para o Brasil e
o Mercosul vêm sendo contaminadas por uma espécie de
parti pris ideológico, ou seja, uma posição de princípio
que, por um lado, tende a recusar, em caráter absoluto, os
fundamentos e as implicações econômicas da zona de li-
vre-comércio hemisférica, aceitando, por outro lado, a es-
tratégia política de “menor custo” do Mercosul para a eco-
nomia brasileira ou a opção pela associação desse bloco
com a supostamente mais benigna União Européia. São
politicamente realistas ou economicamente racionais tais
pontos de vista e correspondem aos interesses bem pen-
sados da sociedade brasileira, que parece ter chegado a
uma nova etapa de sua transição para a modernidade?
Essa não é a postura assumida neste ensaio, que pro-
pugna um exame ponderado de cada um dos elementos
em jogo, que tem em vista exclusivamente a formulação
da melhor estratégia possível de inserção econômica in-
ternacional do Brasil. Caberia discutir cada um dos argu-
mentos favoráveis ou contrários à Alca, tentando separar
o que se apresenta como realidade econômica decorrente
da liberalização, ou seu possível desdobramento, do que
se poderia classificar como posicionamento político em
relação ao projeto proposto pelos EUA para o continente.
Outra distinção importante a ser feita é a que se refere ao
que se poderia chamar de “componentes estruturais da
Alca” – seus elementos “imanentes”, em linguagem
kantiana – e a simples mecânica do processo negociador,
que vem-se desenvolvendo desde a segunda metade dos
anos 90 e promete estender-se até o início de 2005, pelo
menos, segundo o que foi acordado em nível ministerial
em Buenos Aires e ratificado na cimeira de Quebec, em
abril de 2001.
Com efeito, até a conclusão dessas negociações, cujos
contornos específicos dependem muito do conteúdo do
mandato negociador a ser atribuído pelo Congresso ao
Executivo dos Estados Unidos, torna-se difícil especular
sobre benefícios e ameaças da Alca para a economia do
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
10
Brasil e para o esquema do Mercosul. Pode-se no entanto
antecipar, com base nas evidências até aqui demonstra-
das, que o legislativo e os negociadores americanos vêem
a construção da Alca como mero resultado da derrubada
de barreiras latino-americanas aos produtos e serviços dos
EUA, cabendo-lhes bem pouco fazer com suas próprias
barreiras, senão a eliminação geral, com as exceções de
praxe, das tarifas em geral baixas aplicadas na importa-
ção de produtos. Essa não tem sido a visão da diplomacia
brasileira, que procura colocar na mesa de negociações
outros elementos importantes com vistas a lograr um acor-
do final mais equilibrado, não apenas em relação ao aces-
so a mercados – em que são evidentes diversos focos
setoriais de protecionismo americano – mas também no
que se refere a normas e disciplinas de política comercial,
terreno no qual são igualmente claras as restrições aplica-
das a produtos estrangeiros no mercado americano.
Um ponto precisa ficar claro no debate que se vai se-
guir. A compreensão do que seja um acordo de livre-co-
mércio varia muito de perspectiva, segundo se faça uma
análise acadêmica dos resultados da abertura econômica
e da liberalização dos mercados ou se parta de evidências
mais empíricas resultantes de um processo negociador
concreto. Na primeira visão, de modo geral de cunho eco-
nomicista, a liberalização comercial, quaisquer que tenham
sido sua amplitude e distribuição entre parceiros, é vista
como positiva, pois que conduzindo a uma alocação óti-
ma de recursos e uma utilização mais eficiente da dota-
ção em fatores. Na segunda perspectiva, pode-se dizer que
não existe, para a maior parte dos negociadores, essa fi-
gura utópica do “livre-comércio”, um conceito puramen-
te imaginário que só se materializa nos escritos dos teóri-
cos acadêmicos, mas na verdade dotado de pouco
embasamento prático; para eles, trata-se de lograr a me-
lhor situação possível de reciprocidade no processo de
abertura comercial, administrando áreas de liberalização
progressiva em função das vantagens percebidas ou apa-
rentes. Trata-se de um dilema teórico-prático que não pode-
rá ser resolvido no presente texto, que tem apenas o objetivo
de oferecer alguns elementos de reflexão sobre as opções do
Brasil e do Mercosul na presente fase de discussões sobre a
consolidação interna e o aprofundamento do bloco sub-re-
gional em face da opção hemisférica representada pela Alca.
A discussão pode ser organizada em torno de algumas
perguntas fundamentais, as mesmas que vêm sendo repe-
tidamente colocadas pelos representantes dos meios de
comunicação aos negociadores e estudiosos acadêmicos
do processo hemisférico.
A Alca é desejável, benéfica ao Brasil, funcional para
seus objetivos de desenvolvimento econômico e social?
A Alca representa uma espécie particular no gênero in-
tegracionista, tratando-se de um processo de liberaliza-
ção controlada dos mercados e de abertura administrada
da economia que já vem sendo aplicado pelo Brasil desde
que ele assumiu compromissos negociais nesse sentido em
princípios dos anos 60 (criação da Alalc) e, com maior
ênfase, com base nos esquemas bilaterais de integração
com a Argentina (1986-88) e, de forma quadrilateral, com
os demais parceiros do Mercosul (1991). Os cálculos so-
bre custos e benefícios desse gênero de abertura foram
conduzidos de forma mais ou menos empírica pelos res-
ponsáveis políticos e econômicos em cada uma dessas
oportunidades e julgados compatíveis com as necessida-
des de desenvolvimento do Brasil, ainda que em nenhum
dos casos se tenha alcançado a liberalização total e a
integração completa dos mercados.
Do ponto de vista estrito do desempenho ótimo das
oportunidades econômicas, toda experiência de integra-
ção, ainda que na forma simplificada da eliminação de
barreiras aduaneiras sob um regime de livre-comércio, é
desejável, quanto a uma situação de plena autonomia eco-
nômica, pois que corresponde a uma etapa inicial de
liberalização de mercados e de inserção nos circuitos da
interdependência mundial, mesmo em um âmbito geográ-
fico mais restrito. Os economistas, procedendo a uma si-
mulação teórica de caráter extremo, recomendariam aliás
uma liberalização unilateral erga omnes, isto é, condu-
zindo à plena integração com o mundo, pois que permi-
tindo nesse caso o livre fluxo de fatores e uma alocação
ótima das dotações econômicas. Esse tipo de exercício
ricardiano não foi contudo tentado por nenhum país da
era moderna, tendo apenas se manifestado de maneira mais
ou menos abrangente sob o capitalismo de vanguarda da
Inglaterra vitoriana. Desde então, as experiências de
liberalização têm sido conduzidas sob forma condicional
e restrita, tendo alcançado maior desenvolvimento na
Europa ocidental, nos diversos esquemas ali conhecidos
desde o final dos anos 40 (no Benelux, na Ceca, na Co-
munidade Européia, na Aelc, na União Européia, nota-
damente). Todos esses exemplos têm confirmado empi-
ricamente os pressupostos teóricos traçados pelos econo-
mistas sobre os benefícios da liberalização ampliada.
Não deveria, portanto, ser diferente para o Brasil, tan-
to no formato mais restrito do Mercosul como no esque-
ma ampliado de uma futura Alca, ainda que não se possa
arriscar previsões mais positivas quanto a seu caráter fun-
11
O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
cional, ou não, para seus objetivos de desenvolvimento
econômico e social. Em princípio, a resposta é positiva,
ainda que de forma indireta, uma vez que a integração e a
liberalização produzem situações de maior eficiência
alocativa, conduzindo ipso facto ao aumento da produti-
vidade, à expansão do emprego e à elevação dos níveis de
remuneração. Deve-se no entanto observar que o proces-
so de liberalização comercial, estrito senso, não tem como
missão histórica “produzir” desenvolvimento, isto é, pro-
vocar transformações estruturais na formação social que
envolve o sistema econômico, mas tão-somente produzir
maior eficiência produtiva, o que por si só não gera dis-
tribuição de riqueza ou justiça social. A agenda desen-
volvimentista é algo mais amplo que a forma de organiza-
ção social da produção, implicando em um complexo jogo
de fatores políticos e sociais que ultrapassam em muito as
possibilidades transformadoras da abertura econômica e
comercial.
Resumindo: a Alca pode ser benéfica para o Brasil, mas
não se deve esperar que ela resolva todos os nossos pro-
blemas de desenvolvimento econômico e social no curto
ou médio prazo; estes só podem ser encaminhados inter-
namente, com a mobilização de outros vetores de trans-
formação estrutural – educação, capacitação profissional,
investimentos em ciência e tecnologia, modernização
institucional, etc. –, não de maneira exógena quando de
um impulso originado no entorno econômico externo.
Mercosul e Alca são compatíveis entre si?; a Alca não
pode simplesmente dissolver o Mercosul e condená-lo
ao desaparecimento enquanto experimento sub-regio-
nal? Em princípio, Alca e Mercosul são plenamente com-
patíveis entre si e até complementares, uma vez que os
esquemas de livre-comércio, mesmo baseados em proces-
sos negociais autônomos e independentes, tendem a se re-
forçar mutuamente e a produzir eficiências dinâmicas que
potencializam os ganhos alocativos. No que se refere es-
pecificamente ao caso desses dois esquemas americanos,
pode-se argumentar que uma zona de livre-comércio maior
tende a absorver e a diluir a menor, que foi o que ocorreu,
comparativamente (no gênero união aduaneira), entre o
Benelux e a Comunidade Européia no decorrer dos anos
70 e 80.
Esse não deveria ser o destino, porém, do Mercosul,
que corresponde a uma etapa superior da família integra-
cionista, suplementando seu compromisso de livre-comér-
cio com as obrigações de uma união aduaneira (tarifa ex-
terna comum, política comercial comum) e visando
alcançar, num horizonte histórico ainda indeterminado,
uma situação de mercado plenamente unificado. De ma-
neira que o Mercosul sobreviveria e até poderia aumentar
seu grau de coesão interna ao enfrentar o desafio de uma
zona de livre-comércio envolvente, mesmo se no caso da
Alca trata-se, potencialmente, de uma “super” zona de li-
vre-comércio, compreendendo aspectos pouco usuais nesse
gênero de exercício (como compromissos em matéria de
propriedade intelectual, política da concorrência, compras
governamentais e outros compromissos setoriais não es-
tritamente comerciais). Na prática, é evidente que o “mer-
cado comum do Sul” não passa, atualmente, de uma zona
de livre-comércio deficiente e incompleta, pois que pre-
judicada pela existência de alguns setores restritos à aber-
tura interna recíproca e de outros funcionando sob regi-
me de comércio administrado. Sua união aduaneira “em
fase de implementação” é consistente com os pressupos-
tos teóricos e empíricos desse tipo de esquema, pois que
tendo de conviver com exceções nacionais à tarifa exter-
na comum, regimes comerciais específicos a algumas si-
tuações nacionais “temporárias e excepcionais” e de fato
carente de uma administração aduaneira uniforme e dota-
da de regras claras (falta de um código aduaneiro ou dis-
posições quanto à arrecadação fiscal, por exemplo).
Ainda assim, mesmo que o comércio intra-Mercosul seja
absorvido e dissolvido no esquema mais amplo da Alca, o
Mercosul tenderá a sobreviver como construção institucio-
nal, pois que resultando de uma decisão política no mais alto
nível, que aponta para sua progressão contínua, ainda que
lenta e por vezes intermitente, em direção de um mercado
comum e talvez até mesmo de uma união econômica, a exem-
plo da Europa de Maastricht (pelo menos no que se refere à
união monetária). Os perigos que cercam sua evolução co-
mercial derivam mais dos desafios competitivos associados
ao pólo econômico dominante e da força centrífuga do dólar
dos EUA, do que da Alca em si, que seria pouco relevante se
fosse hipoteticamente subtraída a potência hegemônica. Con-
tudo, mesmo nessa situação extrema de eventual inoperân-
cia econômica do Mercosul em razão da preeminência abso-
luta dos EUA no esquema hemisférico, o projeto sub-regional
do Cone Sul tende a sobreviver, pois que ele compreende
bem mais do que simples compromissos liberalizadores, es-
tendendo-se a entendimentos sociais, administrativos e de
políticas setoriais outras que as meramente econômicas (jus-
tiça, turismo e cultura, ciência e educação, previdência so-
cial, entre várias outras), o que justificaria a continuidade
desse projeto político e societal.
Resumindo: a Alca representa um enorme desafio para
a continuidade e para a afirmação da personalidade do
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
12
Mercosul, mas a sua dissolução só se daria por expressa
decisão e vontade dos dirigentes políticos dos países-mem-
bros, não em função da criação e implementação plena de
uma zona de livre-comércio hemisférica, que de forma
alguma eliminará, ao contrário até estimulará, o desen-
volvimento de outras vertentes integrativas entre os paí-
ses-membros e associados do Mercosul. Este tem um ca-
pital político e uma cultura própria que jamais serão
alcançados no plano hemisférico, por mais poderosa e
abrangente que venha a ser a Alca no domínio econômico
e comercial.
O projeto da Alca não representa uma ameaça funda-
mental às economias do Brasil e do Mercosul, pelo fato
de que sua vocação liberalizadora vai além da agenda
tradicional de uma zona de livre-comércio, ou devido
a que os elementos de assimetria estrutural são extre-
mamente relevantes quando confrontados ao cenário
mais homogêneo da América do Sul ou à dimensão mais
modesta de todas as outras economias hemisféricas, à
exceção dos EUA? – Sem dúvida que a pauta negociado-
ra da Alca vai muito além do que vinha sendo aceito como
a agenda “normal” de uma zona de livre-comércio – com-
preendendo apenas liberalização do intercâmbio de bens,
mais algumas disposições de caráter aduaneiro para evi-
tar triangulação indevida –, abrangendo serviços, proprie-
dade intelectual, compras governamentais, investimentos
e outros aspectos menos relevantes, segundo um progra-
ma de abertura e de regulação que já se convencionou cha-
mar de “OMC plus”. Pode-se no entanto argumentar que
a Alca apenas antecipa, ou acelera, esses aspectos pouco
usuais das “velhas” zonas de livre-comércio e que tanto o
Brasil como o Mercosul encontrariam a mesma pauta de
reivindicações liberalizantes numa próxima rodada de
negociações comerciais multilaterais ou se decidissem
empreender esforço similar com outros esquemas regio-
nais (como a CAN, a UE ou outros grupos de países).
Nem tudo porém é tão-somente uma questão de tem-
po, já que a ambiciosa agenda da Alca certamente coloca
desafios de monta aos países do Cone Sul, em especial no
que se refere aos diferenciais de competitividade nos di-
ferentes setores que serão presumivelmente incorporados
ao esforço liberalizador hemisférico (serviços, compras
governamentais, investimentos, por exemplo). Todavia,
deve-se observar que os mesmos temas encontram-se pre-
vistos no exercício interno ao Mercosul, processo extre-
mamente complexo e tematicamente diversificado, a des-
peito mesmo do pequeno número de países engajados e
da dimensão mais modesta de seus aparelhos produtivos
e de serviços, em grande medida voltados para os pró-
prios mercados nacionais. Mais uma vez neste caso, a Alca
coloca ao Mercosul o desafio de seu próprio aprofunda-
mento interno, preservando áreas de preferência sub-re-
gional em um cenário mais amplo de liberalização pro-
gressiva no plano hemisférico. A homogeneidade cultural
e a intensidade de vínculos intra-Mercosul deve atuar em
seu benefício, estimulando negócios no âmbito sub-regio-
nal mesmo em face de oportunidades ou desafios poten-
ciais no cenário continental mais vasto.
Alternativamente, os perigos presumidos ou efetivos
para o Mercosul derivados do esquema da Alca poderiam
ser pressentidos de acordo com as assimetrias fundamen-
tais que caracterizam as economias do hemisfério, não
apenas como dimensão bruta (a chamada economia de
escala), mas essencialmente em razão dos diferenciais in-
trínsecos de produtividade e de capacidade de penetração
mercadológica. Ainda aqui, os perigos são mais supostos
do que reais, uma vez que algumas vantagens comparati-
vas naturais e dinâmicas dos países do Mercosul podem
servir de contrapeso ou atuar em seu benefício, no con-
fronto com a potência avassaladora do gigante do Norte.
É de se esperar, por exemplo, que mesmo depois de em-
preendido sério esforço de modernização produtiva e de
aggiornamento tecnológico por parte dos países do
Mercosul, os diferenciais de produtividade permanecerão
importantes em relação àqueles observados em setores de
serviços e ramos industriais nos quais os EUA já detêm
uma liderança incontestável. Mesmo nesse caso, os dife-
renciais de custos de mão-de-obra para serviços associa-
dos, particularidades dos mercados locais, diferenças ou
especificidades culturais, assim como o simples fator da
proximidade geográfica atuarão em benefício do Brasil e
do Mercosul para ampla gama de bens e serviços, produ-
zindo portanto atração de investimentos e transferência
de tecnologia em um horizonte de tempo indeterminado
depois de começada a implantação da Alca.
Em análise puramente econômica, aliás, a “ameaça” das
assimetrias não apresenta a mesma relevância estrutural,
se pensada fora de um esquema de capitalismo “nacional”.
Com efeito, os economistas deduzem uma situação de
maior racionalidade econômica intrínseca quando um país
industrialmente menos desenvolvido associa-se, em esque-
ma de livre-comércio, a um parceiro mais poderoso, não
quando dois ou mais países igualmente “subdesenvolvi-
dos” empreendem a construção de um “mercado comum”.
Daí as freqüentes críticas de economistas “liberais” ao
esquema do Mercosul, manifestando eles a opinião de que
13
O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
o Brasil deveria abrir-se diretamente aos EUA num exer-
cício de comércio preferencial, pois tal situação conferi-
ria mais vantagens a sua economia menos avançada, ade-
mais de permitir o desenvolvimento das especializações
produtivas. Na prática, como já constatamos, as situações
de livre-comércio nunca são perfeitas, persistindo espaços
de liberalização restrita e diversos mecanismos de proteção
setorial que inviabilizam o pleno jogo da movimentação de
fatores idealizada pelos economistas teóricos.
Não se trata de uma questão que possa ser resolvida in
abstracto, podendo apenas ser equacionada no terreno
concreto das negociações para a definição das regras da
futura zona de livre-comércio hemisférica, assim como no
domínio bem mais prático (e microeconômico) das asso-
ciações produtivas que serão promovidas voluntariamen-
te pelas próprias empresas, independente da vontade dos
governos. Com efeito, as empresas, conhecendo o cená-
rio ambiental em que terão de atuar em determinado se-
tor, antecipam-se às medidas governamentais de “imposi-
ção” de novas regras, construindo alianças táticas e acordos
pragmáticos com competidores e parceiros em seu setor
de atividade, atuando assim para reduzir de modo progres-
sivo tais assimetrias. Esse processo será tão mais rápido
quanto mais desregulado e aberto for o mercado setorial
em questão.
Não é certo, por exemplo, que empresas brasileiras e as
do Mercosul sejam invariavelmente menos atuantes do que
as dos EUA em todos os setores abertos à competição, assim
como não é seguro que o diferencial mercadológico em
favor das empresas multinacionais seja válido em todas as
situações de acesso e de penetração em novos mercados.
Segmentação da demanda, disponibilidade de fatores, apre-
sentação dos produtos, identificação cultural e sobretudo
capacidade adaptativa e imaginação criadora podem atuar
em proveito de empresas locais em certas áreas de bens e
serviços. O Brasil, historicamente, já demonstrou possuir
uma enorme capacidade de “digestão” de novas tendên-
cias e de novas técnicas produtivas, não havendo razão para
acreditar que ele não saberá responder ao desafio que a
Alca coloca para o seu sistema produtivo e para a sua ca-
pacidade inovadora. A passividade e o fatalismo nunca
foram traços da personalidade brasileira.
Resumindo: a Alca possui, sem dúvida, certo poten-
cial “destruidor” de empregos, em função das diferenças
reais ou presumidas, de escala e de produtividade, entre
as economias hemisféricas, assim como pelo fato de ela
estender-se a uma gama tão ampla de setores que ultra-
passa, por vezes, a capacidade “balanceadora” e a missão
“restauradora” das condições “normais” de competição por
parte dos governos nacionais. Sem embargo, os perigos
são mais aparentes do que reais, uma vez que o próprio
setor privado encontrará soluções pragmáticas a tais
assimetrias, que representam outras tantas oportunidades
para ganhos temporários antes que a liberalização regio-
nal converta-se em verdadeiro processo de globalização.
Nesse caso, o excesso, ou a tentativa, de regulação gover-
namental pode dificultar, mais do que facilitar, o proces-
so de superação das assimetrias existentes.
Meio ambiente e normas laborais são fatores limitan-
tes e negativos no esquema de negociações hemisféri-
cas?; tais cláusulas vão bloquear a expansão do comér-
cio ou o livre fluxo dos investimentos? – Tais normas, a
exemplo das barreiras técnicas e outras medidas não-tari-
fárias que limitam ou obstaculizam o pleno acesso aos mer-
cados, podem efetivamente constituir fatores limitantes a
uma verdadeira liberalização hemisférica, pois que con-
firmando, se implementadas com base em uma visão ex-
clusivamente nacional da questão, o sistema de “arquipé-
lago de economias” que caracterizou, durante muito tempo,
a economia internacional. A dificuldade não está tanto na
fixação de determinado padrão, supostamente mais eleva-
do, para equacionar problemas no campo trabalhista e na
proteção do meio ambiente – algo continuamente tentado
nos foros multilaterais –, mas em sua utilização abusiva,
de forma unilateral, para bloquear a livre movimentação
de bens, serviços e de capitais e tecnologias, inclusive
mediante o recurso a sanções de natureza comercial. Essa
possibilidade deve ser simplesmente vetada na mesa de ne-
gociações, pois que correspondendo a uma reação prote-
cionista dos que desejam “fazer girar para trás a roda da
história”, ou seja, impedir que o capital dissemine-se pelo
planeta, aproveitando as melhores chances de custo-bene-
fício para uma alocação “ótima” de recursos.
Parece ocorrer, nesse particular, uma curiosa colusão
de interesses e de propósitos entre sindicalistas do Norte
e seus contrapartes do Sul, entre ONGs de ecologistas das
duas pontas do continente americano, entre refratários
pragmáticos (por definição de direita) e opositores ideo-
lógicos (geralmente de esquerda) ao livre-comércio, ade-
mais da já conhecida (e pouco santa) aliança entre
antiglobalizadores de todos os quadrantes do hemisfério.
Normas laborais e ambientais converteram-se no terreno
comum de luta de todos os que se posicionam contraria-
mente à Alca, seja pelos nobres motivos da defesa efetiva
do meio ambiente e dos direitos humanos, seja por aque-
les bem mais interessados (e por vezes mais mesquinhos)
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
14
da defesa do emprego local ou de uma idílica produção
saudável (e subsidiada), em fazendas familiares suposta-
mente protegidas da concorrência selvagem introduzida
pelas variedades geneticamente modificadas. O mais es-
tranho, certamente, é ver sindicalistas do Sul defendendo
empregos no Norte – uma vez que a introdução de nor-
mas laborais tem precisamente como objetivo impedir a
“fuga” do capital, e portanto a transferência de empregos
ao sul do Rio Grande – ou ecologistas, normalmente con-
trários à desigualdade inerente às estruturas econômicas
internacionais, promovendo o protecionismo agrícola nos
países desenvolvidos ou a manutenção involuntária de po-
pulações inteiras de coletores-extrativistas nas regiões tro-
picais em níveis próximos da miséria absoluta.
A formulação tentativa e a promoção ativa de normas
e padrões ambientais e laborais mais avançados, quando
combinada aos estímulos adequados para a livre circula-
ção de fatores, inclusive da mão-de-obra, pode no entan-
to atuar como elemento de melhoria nos padrões de vida
da maioria da população, sobretudo nos países ainda em
desenvolvimento, servindo para elevar a produtividade do
trabalho e a performance geral das economias mais atra-
sadas. Sua vinculação a acordos de comércio tem a virtu-
de, porém, de bloquear a disseminação desses mesmos pa-
drões que seus promotores querem ver implementados,
uma vez que dificulta a mobilidade do capital e a transfe-
rência de tecnologia pela simples razão de inibir os flu-
xos de comércio, em lugar de estimulá-los.
Resumindo: um sistema de códigos de conduta, de ca-
ráter voluntário, mas de adesão progressiva, para padrões
ambientais e laborais pode permitir superar situações de
bloqueio “psicológico” que vêm contribuindo para con-
taminar o ambiente negociador da Alca. Quanto ao Bra-
sil, consciente das limitações, mas também dos enormes
progressos realizados nessas áreas, não parece ter algo a
temer baseado na fixação de metas mais ambiciosas nos
terrenos social e ambiental. A fixação de metas indicativas
para a adesão progressiva dos países, mais do que a de-
terminação de padrões uniformes para todos numa escala
sincrônica de tempo, pode servir para reconciliar o capi-
tal e o trabalho, assim como ecologistas e empresas.
Práticas abusivas de salvaguardas comerciais e de
antidumping, assim como políticas deliberadamente
distorcivas das condições de comércio, a exemplo das
medidas de apoio interno na área de agricultura, po-
dem falsear os resultados da Alca, tornando o exercí-
cio liberalizador meramente retórico e desequilibra-
do? – Certamente, o Brasil e o Mercosul devem atuar com
toda a determinação possível para eliminar as práticas mais
danosas à liberdade de comércio nos terrenos em que ele
apresenta uma competitividade “natural” bastante supe-
rior à do parceiro supostamente mais poderoso. Os EUA,
com efeito, já declararam que pretendem deixar intocada,
no processo de negociações da Alca, sua panóplia de
medidas de defesa comercial, numa postura contraditória
com o espírito de qualquer negociação multilateral, na qual
todos os elementos possuindo incidência nos fluxos de
comércio devem ser honestamente objeto de exame e even-
tual discussão quanto a sua adequação ao novo espaço
econômico integrado.
Esse posicionamento tem menos a ver com a suposta
consistência desses mecanismos nacionais de defesa co-
mercial com as regras do GATT do que com o elemento
de chantagem política exercido pelo Congresso contra a
liberdade de ação dos negociadores do Executivo dos
EUA. Trata-se de elemento puramente político, não sus-
tentável em qualquer critério econômico de competição
leal e de abertura negociada de mercados, e inteiramente
dependente do exercício de uma efetiva capacidade
negocial que deve poder manifestar-se no caso do Mercosul
e do Brasil em particular.
Resumindo: um acordo de livre-comércio hemisférico
no qual determinados componentes da agenda permane-
cem unilateralmente inegociáveis – uma reprodução eco-
nômica do conhecido aforismo orwelliano segundo o qual
no “socialismo comercial” todos são iguais, mas alguns
são “mais iguais do que outros” – não parece correspon-
der aos princípios aprovados em Belo Horizonte, em 1997,
quanto ao equilíbrio de resultados e ao compromisso
indivisível em benefício de todos.
A Alca conduzirá à desnacionalização da economia bra-
sileira? Subsistirão políticas setoriais em nível nacional,
diminuirá a margem de liberdade alocada à política eco-
nômica governamental? – A eventual “desnacionalização”
– não de setores, mas de frações de mercados setoriais – com
base na venda ou fusão de empresas brasileiras a gigantes
estrangeiros não será diferente ou em todo caso maior do
que já ocorre no âmbito do processo de globalização atual-
mente em curso, que foi voluntariamente assumido pelo Brasil
como um desafio importante a ser vencido, não como uma
ameaça a ser evitada. Em nenhum dos processos conhecidos
de ativa interdependência econômica, como são os existen-
tes no âmbito da OCDE e a fortiori no seio da UE, diminuiu
o papel do Estado ou se enfraqueceu a economia nacional,
pela simples razão de que o capital estrangeiro passou a par-
ticipar com maior intensidade dos esquemas produtivos in-
15
O BRASIL E OS BLOCOS REGIONAIS: SOBERANIA E INTERDEPENDÊNCIA
ternos e dos circuitos locais de produção e distribuição. Ao
contrário, as “pequenas” empresas locais adquirem dimen-
são nacional e, então, passam a atuar no plano internacional,
constituindo um “capitalismo multinacional” que foi até agora
o apanágio dos países mais avançados. Ocorreu assim nos
casos de Portugal e Espanha, assim como da Itália, e não há
porque descartar que tais processos venham a ocorrer igual-
mente no âmbito do Brasil e do Mercosul.
O Brasil tem, por certo, um crônico problema de défi-
cit em transações correntes e de desequilíbrio na balança
de pagamentos, que acompanharam todo o seu processo
de industrialização. Entretanto, tais fragilidades estão
igualmente associadas ao ambiente geral dos negócios,
mais do que à ausência de capacidade reguladora do Es-
tado, que assumirá formas novas num cenário mais previ-
sível de planejamento microeconômico. O fato de que par-
ceiros estrangeiros passem a atuar em setores antes vedados
ou mais limitados à presença de multinacionais não se tra-
duz necessariamente numa desintegração automática das
cadeias produtivas, antes numa integração destas a circui-
tos mais amplos nos planos hemisférico ou mundial.
É evidente, por outro lado, que qualquer acordo inter-
nacional que se faça em áreas ainda inéditas de regulação
multilateral ou regional, como é o caso da Alca – que pa-
rece apontar para um instrumento relativamente “intrusivo”
como políticas setoriais ou de mecanismos regulatórios –
redunda numa diminuição da esfera da soberania absolu-
ta dos Estados nacionais e na redução ulterior dos pode-
res regulatórios dos legisladores econômicos e, na outra
vertente, num aumento do grau de interdependência das
economias e da margem de liberdade alocada aos agentes
econômicos privados. Contudo, isso é próprio das tendên-
cias atuais tanto do regionalismo, como do multilateralismo
econômico, assim como da própria agenda negociadora
internacional, das quais participa o Brasil em plena cons-
ciência de causa e tendo sempre como critério absoluto
de atuação o interesse nacional na matéria. Entre esses cri-
térios não se situa o de privilegiar o capital estrangeiro
em detrimento do capital nacional, mas em atribuir a am-
bos um ambiente regulatório relativamente uniforme quan-
to às regras gerais de exercício da atividade, o que é co-
nhecido em terminologia “gattiana” como tratamento
nacional.
Resumindo: a internacionalização da economia brasi-
leira e a constituição de firmas nacionais de dimensão in-
ternacional – algo presumivelmente desejado, mesmo pelo
mais ferrenho opositor da Alca e do capitalismo norte-
americano – se dará, não no quadro de um suposto pro-
cesso de “preparação” da economia brasileira para “en-
frentar a concorrência externa” – período de tempo que é
sempre indefinido e invariavelmente dependente de con-
dições “ótimas” de políticas macroeconômicas, comercial
e industrial, que nunca se realizam na prática –, mas no
próprio bojo da globalização, seja ela restrita ao hemisfé-
rio ou ampliada em escala planetária. Processos de “acu-
mulação primitiva” nunca ocorreram de fato, a não ser nas
análises ex-post que tendem a racionalizar a experiência
histórica e a oferecer como “modelo” o que nunca passou
de um processo único e original como desenvolvimento
socioeconômico de determinada formação nacional.2
O Brasil estaria isolado se decidisse permanecer fora
da Alca? – Trata-se de uma decisão inteiramente políti-
ca, de acordo com uma hipótese extrema, mas que será
tomada com base numa análise econômica e diplomáti-
ca no curso do processo negociador. A Alca não é o úni-
co processo negociador de que participam ou participa-
rão o Brasil e o Mercosul, bastando mencionar o processo
bi-regional com a União Européia, os entendimentos no
contexto da África austral e a opção preferencial no âm-
bito da América do Sul. As opções para o Brasil e para o
Mercosul não estão fechadas, como alguns cenários mais
pessimistas parecem antecipar. É bem mais provável,
aliás, não existir uma Alca, por razões que não teriam
nada a ver com a oposição ou relutância brasileira (mas
mais provavelmente com a relutância do Congresso e do
próprio Executivo dos EUA), do que ser concluída uma
Alca sem a participação do Brasil.
Uma revisão de meio século do multilateralismo eco-
nômico e político revela que nenhum país de dimensões
“respeitáveis”, seja ele “atrasado”, seja desenvolvido, per-
manece isolado no cenário internacional. A experiência his-
tórica da China, da Índia, da Rússia, e dos próprios países
desenvolvidos ocidentais, a começar pelos EUA e passan-
do pelos grandes da Europa – hoje unidos no mais exitoso
experimento de integração já conhecido – confirma que o
isolamento é uma fase temporária e passageira de qualquer
processo de emergência e consolidação de novas estrutu-
ras de poder econômico e político mundial. A posição do
Brasil em relação ao sucesso – ou fracasso – das negocia-
ções da Alca não deveria fugir a essa regra não escrita da
diplomacia contemporânea. O Congresso dos EUA, aliás,
teria provavelmente maior responsabilidade nesse eventual
fracasso, do que uma suposta “intransigência” do Itamaraty
ou do Governo brasileiro. Muito depende, em todo caso,
da capacidade negociadora da diplomacia brasileira no
terreno da barganha concreta em torno da Alca, bem como
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(1) 2002
16
de sua capacidade “explicativa” em direção dos públicos
externo e interno. Nesse particular, o Brasil – dotado de
uma diplomacia econômica que deita raízes nas primeiras
décadas do século XIX – pode considerar-se bem servido
e dispondo de enormes vantagens comparativas em rela-
ção a vários outros países do continente.
NOTAS
1. A retomada do ciclo da globalização capitalista, numa paródia ao
Manifesto de 1848, foi analisada no livro de Almeida (1999).
2. Este último ponto apresenta certa importância (teórica) do ponto de
vista da sociologia do desenvolvimento econômico, mas tem pouca
relevância prática do ponto de vista do negociador governamental ou
do estadista, que precisam responder às preocupações de suas respec-
tivas clientelas, sempre inquietas com qualquer tipo de penetração es-
trangeira na economia nacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, P.R. de. Formação da diplomacia econômica no Brasil:
as relações econômicas internacionais no império. São Paulo,
Senac-Funag, 2001.
________ . Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da
globalização. São Paulo, Juarez de Oliveira, 1999.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA: Doutor em Ciências Sociais. Autor de
Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (pralmeida@mac.com).
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Os diferentes arranjos institucionais do Uruguai e do Reino Unido importam para as tomadas de decisões sobre os processos de integração regional? Este estudo compara os casos para identificar os fatores que levaram à estabilidade uruguaia no Mercosul e à saída britânica da União Europeia. Os dados mostram que Westminster foi um facilitador para que o Brexit ocorresse, enquanto o presidencialismo Uruguaio poderia dificultar uma barganha parecida no Mercosul.
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Os capítulos que compõem esta obra são resultado do esforço de investigação de dois grupos de pesquisa, vinculados ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná PPGCP/UFPR). O Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Tecnologia (PONTE), que contribui com quatro capítulos deste livro, tem como agendas de pesquisa principais Jornalismo Político, Democracia Digital e Comunicação Pública. O Grupo de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública (CPOP) dedica-se a pesquisas na área de Mídias e Eleições, além de outros estudos vinculados à interface Comunicação e Política. Integrantes do CPOP também colaboram com quatro capítulos nesta coletânea.
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O artigo examina um conjunto de editoriais do jornal O Estado de S. Paulo a fim de compreender de que maneira o periódico se posiciona discursivamente em relação ao Mercosul. Organiza-se o estudo da opinião da empresa jornalística a partir de três aspectos: o contexto político recente do bloco; o desempenho de seus agentes diplomáticos; as vantagens e desvantagens políticas e econômicas que a integração teria trazido para o Brasil. A hipótese é a seguinte: Por defender em sua carta de princípios editoriais a ideia de livre mercado, OESP cultiva uma imagem negativa do Mercosul. A seleção do corpus levou em conta 16 textos publicados entre janeiro e junho de 2013. Por meio da Análise do Discurso, foram identificadas cinco principais Formações Discursivas na amostra: (1) o que o jornal denomina de “amarras” do Mercosul; (2) uma alegada incompetência ou passividade do governo brasileiro; (3) o caráter protecionista da Argentina; (4) o perfil “antidemocrático” da Venezuela diagnosticado pela publicação em tela; e (5) a suspensão do Paraguai do bloco como um “golpe”. Conclui-se que a opinião da empresa jornalística tende a desqualificar o bloco, destacando a concepção de que o Mercosul seria uma estratégia econômica fracassada e que traria consideráveis prejuízos ao Brasil.
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