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Rev Assoc Med Bras 2004; 50(4): 380-5
380
V
ASCONCELOS
MM
ET
AL
.
RESUMO – O
BJETIVO
. Descrever a introdução e o manejo da dieta
cetogênica em um grupo de seis crianças e adolescentes com
epilepsia refratária.
M
ÉTODOS
. Os autores reviram o prontuário médico de cada
paciente menor de 15 anos submetido à dieta cetogênica entre abril
de 1999 e julho de 2003 e compararam os resultados terapêuticos
e efeitos adversos e benéficos com a literatura pertinente.
R
ESULTADOS
. A dieta cetogênica foi introduzida para seis pacien-
tes, com idade mediana de sete anos (faixa: 1,8-12,2). A duração
média da aplicação da dieta foi 9,7 meses (faixa: 7 dias-4 anos).
I
NTRODUÇÃO
A epilepsia é um dos mais freqüentes e
graves distúrbios neurológicos na infância, com
incidência aproximada de 1% da população
1
.
Dentre as crianças acometidas, 20% a 30%
têm crises epilépticas refratárias às drogas
antiepilépticas (DAES)
2
. A consideração de op-
ções não-farmacológicas para o tratamento da
epilepsia refratária é oportuna, dadas as evi-
dências de que a freqüência de crises correla-
ciona-se fortemente com o prognóstico da
epilepsia
3
e de que o risco de letalidade da
epilepsia pediátrica é mais alto nos pacientes
com epilepsia intratável
4
. Embora a definição
de epilepsia intratável seja controversa, comu-
mente recorre-se ao conceito proposto por
Schmidt, segundo o qual um paciente deve
receber este diagnóstico quando suas crises
epilépticas não são controladas por doses má-
ximas toleradas de duas ou três DAES
5
. Exis-
tem três opções de tratamento não-farma-
cológico para o grupo de crianças e adolescen-
tes com epilepsia intratável: cirurgia para epi-
lepsia, estimulação do nervo vago e dieta
cetogênica (DC), a primeira das quais é inade-
quada para mais de metade dessas crianças
6
.
A DC foi criada por Wilder
7
, em 1921, na
Mayo Clinic, para tratar crianças com epilep-
sia. Partindo da antiga observação clínica, cita-
da na Bíblia (Mateus 17, 14-21), de que o jejum
exercia uma ação anticonvulsivante em paci-
entes epilépticos, Wilder concebeu uma dieta
com restrição de carboidratos, taxas minima-
mente adequadas de proteínas e alto teor de
lipídios, a qual mantinha uma produção hepá-
tica contínua de corpos cetônicos tanto no
estado alimentado quanto no jejum. Em vigên-
cia de cetose sangüínea contínua, há uma
fase de adaptação do metabolismo cerebral
estimada em até 20 dias, depois da qual
os neurônios passam a utilizar os corpos
cetônicos em lugar da glicose como principal
gerador de energia, e o efeito terapêutico é a
elevação do limiar convulsivo
8
. Embora se
desconheça o mecanismo de ação exato da
DC, alguns autores demonstraram que os
níveis sangüíneos de acetoacetato e β-hidroxi-
butirato guardam relação direta, porém não
linear, com o grau de proteção contra crises
epilépticas, e talvez esta proteção esteja
relacionada com um aumento das reservas
cerebrais de energia
9
.
Sabe-se que o potencial cetogênico de
uma dieta está em sua capacidade de iniciar e
manter a produção dos ácidos acetoacético e
*Correspondência:
Av. das Américas, 700 – sala 229 – bloco 6
CEP: 22640-100 – Rio de Janeiro – RJ
Tels: (21) 2132-8080 / 2132-7765
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Observou-se uma redução igual ou maior que 50% da freqüência
das crises epilépticas em metade dos casos. As complicações obser-
vadas foram leucopenia, constipação, desidratação, priapismo e
recorrência das crises epilépticas.
C
ONCLUSÕES
. A dieta cetogênica foi eficaz e segura em três
pacientes de uma série de seis casos com epilepsia intratável. A
complicação mais comum foi leucopenia.
U
NITERMOS
: Epilepsia. Criança. Tratamento. Dieta cetogênica. Corpos
cetônicos.
Artigo Original
DIETDIET
DIETDIET
DIET
AA
AA
A
CETCET
CETCET
CET
OGÊNICAOGÊNICA
OGÊNICAOGÊNICA
OGÊNICA
PP
PP
P
ARAARA
ARAARA
ARA
EPILEPSIAEPILEPSIA
EPILEPSIAEPILEPSIA
EPILEPSIA
INTRAINTRA
INTRAINTRA
INTRA
TÁVELTÁVEL
TÁVELTÁVEL
TÁVEL
EMEM
EMEM
EM
CRIANÇASCRIANÇAS
CRIANÇASCRIANÇAS
CRIANÇAS
EE
EE
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ADOLESCENTESADOLESCENTES
ADOLESCENTESADOLESCENTES
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: :
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RELARELA
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OO
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SEISSEIS
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CASOSCASOS
CASOSCASOS
CASOS
M
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ASCONCELOS
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,
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R. B
RITO
, M
ARIA
C
ECÍLEA
D.
DE
O
LIVAES
, G
ESMAR
V. H
ADDAD
H
ERDY
Trabalho realizado no
Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP) e
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, RJ
β -hidroxibutírico, o que depende das quanti-
dades e proporções relativas de lipídios, pro-
teínas e carboidratos contidos nos alimentos
ingeridos em cada refeição
10
. A glicose anula a
produção hepática de corpos cetônicos, via
secreção de insulina, porque converte-se facil-
mente em energia, ao passo que os ácidos
graxos são oxidados dentro das mitocôndrias,
gerando energia de maneira menos eficiente.
Em contrapartida, a oxidação dos lipídios
também gera como subprodutos os corpos
cetônicos, os quais podem servir de combus-
tível alternativo
10
. Supondo-se uma digestão e
absorção completas, a ingestão de 100 g de
carboidratos introduz 100 g de glicose e 0 g de
ácidos graxos no metabolismo; 100 g de
lipídios resultam em 10 g de glicose (o glicerol
é convertido em glicose em uma proporção
grama a grama) e 90 g de ácidos graxos; e 100 g
de proteína fornecem 58 g de glicose e 46 g de
ácidos graxos (a soma gerada é maior do que
100 porque, após a desaminação, os aminoá-
cidos convertem-se em glicose e ácidos graxos
em proporções variáveis)
10,11
. Estes dados
podem ser representados na fórmula:
K = 0,9L + 0,46P
AK C + 0,1L + 0,58P
Na qual K = potencial cetogênico, AK =
potencial anticetogênico, L = lipídios, P =
proteínas e C = carboidratos
10
.
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D
IETA
CETOGÊNICA
PARA
EPILEPSIA
INTRATÁVEL
Quando a razão cetogênica, K/AK, de uma
determinada dieta ultrapassa 1,5, a ceto-
gênese se instala e se expressa clinicamente
pelo aparecimento de cetonúria. Em termos
práticos, instituir a DC significa manter uma
dieta com razão, em gramas, de lipídios para
carboidratos e proteínas acima de 3:1
10
. As-
sim, estabelecem-se a taxa mínima de proteína
favorável ao crescimento, em geral 1 g/kg/dia,
e, com base em uma quantidade diária total
predeterminada de calorias, a taxa de lipídios.
A quantidade de carboidratos é definida pela
diferença entre a taxa calórica total e as calorias
fornecidas por lipídios e proteínas. Diz-se, por
exemplo, que o paciente seguirá uma DC de
4:1, contendo 4 g de lipídios para cada grama
de proteínas mais carboidratos.
Em uma tentativa de tornar a DC mais
palatável e menos constipante, Huttenlocher
utilizou óleo de triglicerídios de cadeia média
(TCM) como principal fonte lipídica
12
. Como
os TCMs são mais cetogênicos que os demais
lipídios, é possível oferecer uma maior pro-
porção de proteínas e carboidratos
8
. Contu-
do, eles encerram a desvantagem de induzir
diarréia, a qual tende a ceder com a continua-
ção da dieta
12
. Assim, a prática da DC no
tratamento da epilepsia infantil abrange duas
modalidades básicas: a dieta tradicional ou
“clássica” descrita inicialmente, baseada em
alimentos com alto teor lipídico como creme
de leite, manteiga, maionese, azeite e óleos
vegetais, e a dieta à base de TCM.
Devido à descoberta de novas DAES, a
partir da década de 1960, aliada às dificuldades
em seguir seus princípios rigorosos, a DC
foi relativamente esquecida, embora alguns
centros, como a Universidade Johns Hopkins
13
,
tenham continuado a usá-la. Tornou-se evi-
dente no decorrer do tempo que pelo menos
um quinto das crianças epilépticas não respon-
dia favoravelmente a quaisquer das DAES
disponíveis ou precisavam de doses excessivas
desses medicamentos, com efeitos colaterais
intoleráveis. Desse modo, a popularidade da
DC cresceu na década de 1990
8
, e foram
publicadas várias séries de casos descrevendo
sua eficácia
14-16
.
Os objetivos deste trabalho são descrever
a experiência dos autores com a aplicação da
DC clássica a um grupo de seis crianças e
adolescentes com epilepsia intratável e enfa-
tizar a eficácia e os elevados benefícios em
potencial da DC.
M
ÉTODOS
Este é um estudo retrospectivo que
avaliou o uso da DC em um grupo de seis
crianças e adolescentes com epilepsia
previamente intratável, definida aqui pela
resposta desfavorável a três drogas antie-
pilépticas. Os autores reviram o prontuário
médico de cada paciente menor de 15 anos
submetido à DC, entre abril de 1999 e julho
de 2003, com atenção especial às caracte-
rísticas clínicas da doença subjacente, os
exames complementares (eletroencefalo-
grama, exames de imagem, dados labo-
ratoriais), o tipo de crise e, quando possível,
a síndrome epiléptica. Estudou-se o núme-
ro de DAE previamente usadas. Analisaram-
se os seguintes aspectos da DC: eficácia
(considerou-se como critério de eficácia
uma redução igual ou maior que 50% na
freqüência de crises epilépticas), efeitos
benéficos associados (p. ex., sobre o humor
ou a cognição), tolerância, dificuldade de
aplicação, alterações laboratoriais e compli-
cações. A base de comparação da freqüên-
cia de crises eram as últimas quatro semanas
antes da DC, registradas em diário pelos
pais. À internação para introdução da DC,
cada crise epiléptica era registrada pela
equipe médica e de enfermagem e, após a
alta hospitalar, os pais foram orientados a
manter um registro sistemático da hora,
duração e características de cada crise
convulsiva.
Protocolo da dieta cetogênica
Os autores seguiram a DC clássica, con-
forme descrita por Wilder
7
e divulgada por
Freeman et al.
17,18
. Os critérios de inclusão
no estudo foram idade do paciente entre 1
e 15 anos, uso prévio de pelo menos três
DAES apropriadas em doses máximas, au-
sência de acidose metabólica ou algum ou-
tro distúrbio metabólico definido, capacida-
de psicossocial da família em aplicar a dieta
e ausência de doenças intercorrentes. Cada
paciente foi submetido a uma anamnese
completa, exames físico e neurológico mi-
nuciosos e entrevista psicossocial dos res-
ponsáveis. Os pais e todos os adultos que
conviviam com cada paciente foram instru-
ídos durante no mínimo duas consultas
acerca dos benefícios e riscos em potencial
da DC, dificuldades na implantação da dieta
e erros freqüentes na sua execução, e
tiveram de assinar um consentimento infor-
mado para que o paciente fosse submetido
à DC. Não houve autorização prévia da
Comissão de Ética em Pesquisa da institui-
ção dos autores porque os seis pacientes
não foram assistidos dentro de um protoco-
lo formal de estudo. Antes da internação,
realizaram-se exames laboratoriais para ex-
cluir infecções ou outras intercorrências, e foi
solicitado aos pais observar a criança atenta-
mente com o objetivo de definir a freqüência
de crises epilépticas pré-DC. Os exames
preliminares foram hemograma completo,
gasometria arterial, perfil bioquímico sangüí-
neo (incluindo o sódio, potássio e cloreto;
cálcio, fosfato, magnésio e fosfatase alcalina;
aspartato-aminotransferase, alanina-amino-
transferase e bilirrubina total; glicemia; uréia
e creatinina), exame de urina e urocultura,
exame parasitológico de fezes, proteínas
séricas e lipidograma.
A introdução da DC exigia uma inter-
nação de no mínimo cinco dias, realizada
após a verificação dos resultados dos exa-
mes de triagem. Os autores adotaram o
recurso de manter o paciente em jejum até
o aparecimento de cetose plena (detectada
através de cetonúria no grau 4+). Durante
o jejum, o paciente foi mantido com hidra-
tação intravenosa sem glicose em dois ter-
ços da taxa hídrica plena e monitorado
com aferição dos sinais vitais e medição da
glicemia capilar e cetonúria a cada seis ho-
ras. Uma vez ao dia, enviavam-se ao labora-
tório amostras para a glicemia, eletrólitos,
ácido úrico, uréia e creatinina, amino-
transferases hepáticas e exame de urina.
Uma vez instalada a cetose plena, a DC era
iniciada. As refeições foram introduzidas em
volumes progressivos, 1/3 do volume no
primeiro dia, 2/3 no segundo dia e volume
total no terceiro dia. Para facilitar a prepara-
ção da dieta no hospital, os autores optaram
por fornecer apenas a gemada (contendo
creme de leite com teor de lipídios de 35%,
ovo e triglicerídios de cadeia média) nas três
refeições diárias
17
. Durante a internação, a
equipe médica e de enfermagem observava
e registrava a hora e duração de cada crise
clínica; os pais foram instruídos na prepara-
ção rigorosa das refeições no lar e no mane-
jo de uma balança eletrônica com escala em
gramas; neste estudo, utilizaram-se balan-
ças eletrônicas portáteis da marca Tanita,
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ET
AL
.
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ESULTADOS
No total, seis pacientes (cinco meninos e
uma menina) foram submetidos à DC. A idade
mediana no início da dieta foi de sete anos
(faixa: 1,8 a 12,2 anos). A duração média da
aplicação da dieta foi 9,7 meses (faixa: 7 dias-
4 anos). Observou-se uma redução igual ou
maior que 50% da freqüência das crises
epilépticas em três dos seis casos estudados.
A Tabela 1 resume as características clíni-
cas dos seis pacientes. A Tabela 2 mostra as
complicações, o efeito da DC sobre as crises,
a cognição dos pacientes e os resultados
laboratoriais observados.
A execução da DC foi dificultada por
intercorrências em dois casos. No sexto dia de
internação do caso 2, a avó visitou a criança e,
assustada com sua astenia, decidiu alimentá-la
modelo 1140. Após a alta hospitalar, o
paciente passava a receber suplementos
de cálcio, ferro e um polivitamínico. O
acompanhamento ambulatorial incluiu revi-
sões semanais durante as primeiras quatro
semanas, consultas mensais nos três meses
seguintes e, então, consultas bimestrais
regulares. Além do registro diário das crises,
os pais foram incentivados a verificar a
cetonúria matinal diariamente com tira
reagente específica ao longo de toda a
duração da DC.
A DC foi calculada usando-se o software
Keto Diet Meal Planner, distribuído gratuita-
mente pelo Lucile Packard Children’s
Hospital da Universidade de Stanford, nos
Estados Unidos (porém, foi preciso adaptar
os valores nutricionais dos alimentos aos
produtos nacionais). Adotaram-se os se-
guintes parâmetros para cálculo das refei-
ções: razão cetogênica inicial (proporção
entre gramas de lipídios e gramas de prote-
ínas + carboidratos) de 4:1, taxa diária de
proteína de 1 g por kg de peso corporal,
taxa calórica calculada em aproximadamen-
te dois terços das necessidades de manu-
tenção tendo como base o peso ideal, nú-
mero fixo inicial de três refeições diárias e
taxa hídrica um pouco abaixo das necessida-
des de manutenção e limitadas a 1 ml por
quilocaloria ao dia. À alta hospitalar, cada
criança recebia um cardápio com cinco ou
seis refeições rigorosamente calculadas
com proporções nutricionais idênticas, que
podiam ser oferecidas em qualquer uma das
três refeições diárias.
Tabela 1 – Resumo dos seis pacientes submetidos à dieta cetogênica
Drogras antiepilépticas
5
Sexo Idade no Tipo de crise Quadro Eletroencefalograma
3
Exames de Prévias No início
início da ou síndrome neurológico
2
imagem
4
da DC
DC (anos) epiléptica
1
CASO I Fem 4,5 CPC com AGD Pontas-ondas RME aos 3 anos CBZ, CLB, PB
generalização lentas bilaterais normal; RME DZP, GBP,
secundária e independentes aos 4,5 anos: LTG, PB,
(E > D); atrofia cerebral PHT, CGB,
atividade de VPA
base suprimida
à E.
CASO 2 Masc 1,8 Espasmos Esclerose Hipsarritmia TCC: NZP, PB, VPA
infantis, tuberosa calcificações VPA
mioclonias e subependimárias
CPC
CASO 3 Masc 7,9 CPC, TCG AGD Hipsarritmia TCC normal DZP, OCBZ, OCBZ, PB
modificada PB
CASO 4 Masc 6,1 TCG, AGD Pontas-ondas RME normal CBZ, CLB, CBZ, PB
mioclonias, lentas bifrontais DZP, LTG, PB,
ausência atípica TPM, VPA
CASO 5 Masc 12,2 TCG, crises AGD Traçado TCC e RME CBZ, CNZ, CBZ,
atônicas e compatível com normais. PB, VPA CNZ, PB
tônicas SLG
CASO 6 Masc 11,5 CPC, às vezes Hipomelanose Pontas-ondas RME normal CBZ, DZP, CBZ, TPM
generalização de Ito lentas à E LTG, OCBZ,
secundária PHT, TPM,
VPA
*Abreviaturas:
1
CPC; crises parciais complexas; TCG = convulsão tônico-clônica generalizada.
2
AGD = atraso global do desenvolvimento.
3
D = direita; E = esquerda; SLG = síndrome de Lennox-Gastaut.
4
RME = ressonância magnética do encéfalo; TCC = tomografia computadorizada de crânio.
5
Por convenção, usam-se as abreviaturas internacionais
28
: CBZ = carbamazepina; CLB = clobazam; CNZ = clonazepam; DZP = diazepam; GBP = gabapentina; LTG = lamotrigina; NZP = nitrazepam;
OCBZ = oxcarbazepina; PB = fenobarbital; PHT = fenitoína; TPM = topiramato; VGB = vigabatrina; VPA = ácido valpróico.
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IETA
CETOGÊNICA
PARA
EPILEPSIA
INTRATÁVEL
com suco de laranja. A cetose foi prontamente
interrompida pelo aporte de carboidrato. Este
incidente levou à suspensão da dieta, a pedido
da mãe do paciente, apesar da excelente res-
posta terapêutica inicial. O caso 6 apresentou
dois episódios de recorrência das crises epi-
lépticas ao longo de 13 meses: o primeiro
quando ingeriu uma única batata frita e apre-
sentou uma crise clônica breve, e o segundo
no dia do aniversário da irmã, quando houve
quebra da cetose e ele teve duas crises epilép-
ticas noturnas — provavelmente por ter trans-
gredido a dieta durante a festa.
D
ISCUSSÃO
Neste estudo, três em seis crianças
com epilepsia submetidas à DC mostraram
uma redução persistente maior ou igual a
50% da freqüência de crises epilépticas.
Embora a baixa potência estatística de uma
série de apenas seis casos não permita
definir a eficácia do tratamento, o resulta-
do foi comparável à taxa de eficácia de
54% no estudo multicêntrico prospectivo
envolvendo 51 crianças de Vining et al.
16
e
um pouco inferior à taxa de 62% descrita
em um estudo retrospectivo de 58 crian-
ças por Kinsman et al.
14
.
Alguns autores afirmam que a DC não é
tão utilizada porque ela é pouco palatável
14
,
mas a prática da dieta demonstra que sua
aceitação pode ser alta. Desde que percebam
uma melhora significativa no estado clínico de
seus filhos, pais e familiares costumam tolerar
a rigidez na aplicação da DC para manter a
cetose sangüínea contínua
18
. Porém, os inci-
dentes descritos no caso 2, quando a avó da
criança infringiu a DC, e no caso 6, quando a
ingestão de uma única batata frita desencadeou
crise epiléptica, devem servir de alerta para a
necessidade de uma explicação detalhada da
introdução e da manutenção da DC a todos os
familiares e responsáveis que conviverão com
o paciente, enfatizando os percalços e os
efeitos colaterais possíveis.
Com o aumento no interesse pela DC a
partir de 1994
8
, deu-se maior atenção à
toxicidade e aos efeitos colaterais da dieta
19-
23
. Na presente série de casos, todas as três
crianças tratadas com a DC por período su-
perior a dois meses apresentaram leucopenia
(contagem de leucócitos < 4.500 células/
mm
3
), uma complicação ainda não citada na
literatura consultada pelos autores. Os casos
1, 3 e 5 apresentaram contagens totais de
leucócitos mínimas, respectivamente, de
Antes de oferecer a opção terapêutica da
DC à família de uma criança com epilepsia
supostamente intratável, é preciso considerar
que o fracasso do tratamento farmacológico
pode decorrer de diversos outros fatores,
como erro de diagnóstico, dose insuficiente ou
horário impróprio da medicação, baixa adesão
à terapia, classificação errônea do tipo de crise
epiléptica, ou a presença de uma doença pro-
gressiva do sistema nervoso central
3
. Nos seis
pacientes incluídos neste estudo, o diagnóstico
de epilepsia intratável foi escrupulosamente
revisto e confirmado. Todos os pacientes
haviam recebido no mínimo três DAES em
doses máximas (Tabela 1).
O uso do relato pelos pais da freqüência
de crises epilépticas para aferir a resposta à
DC não é o método ideal para avaliar a
eficácia de uma terapia antiepiléptica, mas os
três pacientes que responderam à dieta exi-
biram melhora acentuada da função global
(p. ex., de ambulação independente) associa-
da à redução ou resolução das crises. Embora
imperfeito, o registro diário pelos pais da
freqüência de crises também foi utilizado em
estudos prévios
14-16
, e parece ser o método
mais prático e exeqüível em estudos de acom-
panhamento a longo prazo sobre epilepsia.
Tabela 2 – Parâmetros e resultados da dieta cetogênica em seis pacientes com epilepsia intratável
Razão Taxa calórica Duração Complicações Efeito sobre Efeito sobre a Laboratório
2
cetogênica diária
1
as crises cognição
CASO 1 4:1, depois 5:1 60 4 anos; em uso Leucopenia, Redução > 50% Deambulação G 42, AU 9,8
constipação independente, pH 7,28,
voltou a falar Col 192, TG 65, Leuc 3,6
CASO 2 4:1 75 7 dias Desidratação e Sem crises até — G 38, AU 9,5,
letargia a suspensão pH 7,35
CASO 3 4:1 60 25 meses; em Baixo ganho Redução > 50% Melhora da fala, G 61, pH 7,31,
uso ponderal, deambulação Col 220, Tg 139,
leucopenia independente Leuc 3,4
CASO 4 4:1 68 52 dias Recorrência das Redução > 50% Melhora G 48, AU 8,3,
crises no início; depois, transitória da pH 7,29
crises de ausência fala
persistentes
CASO 5 4,25:1 52 18 meses; em Leucopenia, Sem crises há 13 Melhora da fala, G 45, pH 7,21,
uso constipação meses deambulação Col 262, Tg 79,
independente, Leuc 2,69
menos sialorréia
CASO 6 3,5:1, depois 42 51 dias Perda de 20% do Piora das crises Melhora global G 52, AU 8,9,
3,75:1 peso, priapismo pH 7,31,
Col 201, Tg 99
1
Em quilocalorias por quilograma de peso corporal por dia.
2
AU = nível sérico máximo de ácido úrico (mg/dL); Col = nível sérico máximo de colesterol (mg/dL); G = nível mínimo da glicemia (mg/dL); Leuc = contagem mínima de leucócitos (x 1.000/mm
3
); pH = pH sangüíneo
arterial mínimo; Tg = nível sérico máximo de triglicerídios (mg/dL).
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AL
.
3.600, 3.400 e 2.690 células/mm
3
, após
períodos de tempo em uso da DC de 5 a 22
meses. A leucopenia não foi acompanhada de
complicações infecciosas e, nos três casos,
remitiu espontaneamente. Woody et al.
19
descreveram uma deficiência da função dos
neutrófilos em nove crianças de um a nove
anos de idade tratadas com a DC, mas não
mencionaram qualquer alteração quantitativa
dos leucócitos. A ocorrência de priapismo
durante a primeira semana de uso da DC no
caso 6 também não fôra mencionada na lite-
ratura, mas não é possível definir se este
adveio ou não da introdução da DC. A
acidose metabólica foi leve a moderada e
transitória no início da DC nos seis pacientes
estudados, mas eventualmente é grave o su-
ficiente para motivar a suspensão da DC
18
.
Outros eventos adversos em potencial da
DC incluem alteração do estado mental (até
mesmo coma), hiperlipidemia, hiperuricemia,
hipocalcemia, hipoglicemia, desidratação, cons-
tipação ou diarréia, recusa alimentar, desmi-
neralização óssea, litíase renal e infecções re-
correntes
21
. Em um relato de cinco crianças
que apresentaram complicações sérias e ame-
açadoras à vida durante o tratamento com a
DC, como perda ponderal, disfunção hepáti-
ca, hipoproteinemia e acidose tubular renal,
Ballaban-Gil et al. enfatizaram a necessidade
de supervisão estreita quando a DC é asso-
ciada ao uso de ácido valpróico, o qual pode
inibir a fosforilação oxidativa
21
. Um relato re-
cente mencionou a possibilidade de complica-
ções cardíacas em crianças submetidas à DC
22
;
houve um prolongamento do intervalo QTc
em três de 20 crianças submetidas à DC,
porém apenas uma criança necessitou que a
dieta fosse suspensa.
A introdução da DC clássica preconiza um
período de jejum inicial para acelerar a
cetogênese e obter o efeito terapêutico dese-
jado. Como este período de jejum é exigente
do ponto de vista metabólico e encerra um
risco mais alto de descompensação clínica (p.
ex., o caso 2), a recomendação recente de
iniciar a DC sem jejum é promissora; Wirrell
et al.
24
descreveram 14 crianças submetidas à
DC sem jejum inicial, com aumento gradual da
taxa cetogênica da dieta de 1:1 até 3:1 ou 4:1
ao longo de três a quatro dias. O tempo médio
até a obtenção de cetose plena foi de 58 horas
(faixa: 40 a 84 horas). A cetose foi alcançada
por 13 das 14 crianças.
A aplicação da DC também foi sugerida
para o manejo nutricional de crianças com
determinados distúrbios metabólicos, como a
deficiência da proteína transportadora de
glicose (doença de DeVivo), deficiência de
piruvato-desidrogenase e defeitos da glicólise
cerebral
25
. Por outro lado, deve-se realizar
uma triagem metabólica antes de instituir a
DC, pois determinados distúrbios metabólicos
podem ser agravados pela dieta, como a defi-
ciência de piruvato-carboxilase, a porfiria, a
deficiência de carnitina, os distúrbios mito-
condriais e os defeitos da oxidação dos ácidos
graxos
26
.
C
ONCLUSÃO
Considerando-se a redução dos custos da
assistência médica de crianças com epilepsia
intratável quando a DC é bem-sucedida
27
e as
taxas de eficácia da DC de até 62% citadas na
literatura
14,16
, os autores do presente estudo
acreditam que sempre que possível a DC deve
ser instituída como uma prova terapêutica às
crianças com epilepsia intratável, mesmo antes
de se contemplar uma opção terapêutica mais
definitiva e invasiva como a cirurgia para
epilepsia.
A
GRADECIMENTO
Os autores desejam agradecer à
nutricionista Ana Lúcia Pires Augusto, Prof
a
.
Assistente do Departamento de Nutrição e
Dietética da Universidade Federal Flumi-
nense, por sua participação competente e
prestimosa na implantação da dieta cetogênica
no Hospital Universitário Antônio Pedro.
Conflito de interesse: não há.
S
UMMARY
K
ETOGENIC
DIET
FOR
INTRACTABLE
EPILEPSY
IN
CHILDREN
AND
ADOLESCENTS
:
REPORT
OF
SIX
CASES
B
ACKGROUND
. This study aims to report on use
of the ketogenic diet in a group of six children and
adolescents with intractable epilepsy.
M
ETHODS
. Authors reviewed the medical
records of every patient under 15 years of age
who received the ketogenic diet between April
1999 and July 2003. A comparison is made
between treatment results, adverse events and
beneficial effects with the pertinent medical
literature.
R
ESULTS
. The ketogenic diet was administered
to six patients, whose median age was 7.0 years
(range, 1.8-12.2). Average duration of diet
application was of 9.7 months (range, 7 days-4
years). A reduction equal to or greater than 50%
in seizure frequency was observed in half of the
cases. Complications included neutropenia,
constipation, dehydration, priapism, and seizure
recurrence.
C
ONCLUSIONS
. The ketogenic diet was effective
and safe in three out of six patients with
intractable epilepsy. Neutropenia was the most
common complication. [Rev Assoc Med Bras
2004; 50(4): 380-5]
K
EY
WORDS
: Epilepsy. Child. Therapy.
Ketogenic diet. Ketones.
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Artigo recebido: 20/10/03
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