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Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude

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Abstract

Apresentação Freakdiplomacy, or the advantages of being an accidental diplomat 11 Primeira Parte Relações internacionais e política externa do Brasil 1. Relações Internacionais e política externa do Brasil: perspectiva histórica 17 2. Ideologia da política externa: sete teses idealistas 31 3. Relações Brasil-Estados Unidos em perspectiva histórica 42 4. Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva 48 5. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica 53 Segunda Parte Economia internacional, globalização 6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 59 7. Debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração 63 8. Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais? 68 9. A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência? 74 10. Contra a antiglobalização 92 11. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador 115 12. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos 119 13. Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores 130 14. O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos 147 Terceira Parte Regionalismo, Integração 15. Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? 153 16. O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom senso 172 17. Problemas da integração na América do Sul: a trajetória do Mercosul 182 18. Acordos regionais e sistema multilateral de comércio: a América Latina 190 19. Contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração 204 20. Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro 216 Quarta Parte Política internacional, Questões estratégicas 21. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo 237 22. A China e seus interesses nacionais: reflexões histórico-sociológicas 253 23. Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial 257 24. O legado de Henry Kissinger 274 25. Pequena lição de Realpolitik 279 26. Estratégia Nacional de Defesa (END): comentários dissidentes 284 27. A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à END 292 Quinta Parte Ideias, cultura, problemas 28. O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou? 313 29. Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do americanismo 329 30. Reflexões a propósito do centenário do Barão 334 31. Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil? 340 32. O IBRI e a RBPI: contribuição intelectual, de 1954 a 2014 347 Apêndices Relação cronológica dos ensaios publicados no boletim Meridiano 47 367 Livros publicados pelo autor 375 Nota sobre o autor 379
Paulo Roberto de Almeida
PARALELOS COM O MERIDIANO 47
ENSAIOS LONGITUDINAIS E DE AMPLA LATITUDE
Hartford
Edição do Autor
2015
Paralelos com o Meridiano 47
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude
...................................
Paralelos com o Meridiano 47
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.
Edição do Autor - 2015
6
Direitos de publicação reservados:
© Paulo Roberto de Almeida
2015
_______________________________________________________
ALMEIDA, Paulo Roberto.
Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla
Latitude; Hartford: Edição do Autor, 2015.
380 p.
1. Política internacional. 2. Relações internacionais.
3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Economia.
7. Globalização 8. Brasil. 8. América Latina. 10. Título
_______________________________________________________
Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images
Contato com o autor:
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
(1.860) 989-3284
Esta versão: 16/04/2015
All the Globes frame, and spheres, is nothing else
But the Meridians crossing Parallels.
The Cross
John Donne
(24/01/1572 – 31/03/1631, Londres, Inglaterra)
9
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Índice
Apresentação
Freakdiplomacy, or the advantages of being an accidental diplomat 11
Primeira Parte
Relações internacionais e política externa do Brasil
1. Relações Internacionais e política externa do Brasil: perspectiva histórica 17
2. Ideologia da política externa: sete teses idealistas 31
3. Relações Brasil-Estados Unidos em perspectiva histórica 42
4. Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva 48
5. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica 53
Segunda Parte
Economia internacional, globalização
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 59
7. Debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração 63
8. Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais? 68
9. A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência? 74
10. Contra a antiglobalização 92
11. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador 115
12. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos 119
13. Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores 130
14. O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos 147
Terceira Parte
Regionalismo, Integração
15. Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? 153
16. O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom senso 172
17. Problemas da integração na América do Sul: a trajetória do Mercosul 182
18. Acordos regionais e sistema multilateral de comércio: a América Latina 190
19. Contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração 204
20. Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro 216
Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas
21. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo 237
22. A China e seus interesses nacionais: reflexões histórico-sociológicas 253
23. Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial 257
24. O legado de Henry Kissinger 274
25. Pequena lição de Realpolitik 279
26. Estratégia Nacional de Defesa (END): comentários dissidentes 284
27. A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à END 292
Quinta Parte
Ideias, cultura, problemas
28. O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou? 313
10
29. Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do
americanismo 329
30. Reflexões a propósito do centenário do Barão 334
31. Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil? 340
32. O IBRI e a RBPI: contribuição intelectual, de 1954 a 2014 347
Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados no boletim Meridiano 47 367
Livros publicados pelo autor 375
Nota sobre o autor 379
11
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Apresentação
Freakdiplomacy, or the advantages of being an accidental diplomat
Quando eu estava terminando de montar – esta é a palavra exata – este livro de ensaios
publicados no boletim Meridiano 47 fui presenteado com o livro Freakonomics, o livro de um
“rogue economist”, Steven D. Levitt, um desses pequenos gênios de Harvard e do MIT, e de
um jornalista, Stephen J. Dubner, que estava pesquisando sobre a psicologia da moeda para o
The New York Times Magazine. Do entendimento entre os dois nasceu esse livro, que eu já
conhecia de ler aos pedaços em livrarias, de dezenas de resenhas e referências elogiosas
publicadas em dezenas de outras publicações digitais ou impressas, e de um ou outro artigo da
dupla reproduzido nos espaços virtuais que todos frequentamos atualmente.
Apressado para terminar a assemblagem dos mais interessantes artigos que eu havia
publicado, desde 2001, no mais dinâmico boletim de relações internacionais já inventado na
academia brasileira, quase não pego o livro para, por uma vez, lê-lo atentamente. Bem, ainda
não terminei de devorar esse pequeno volume de ensaios bizarros – oportunamente
complementado por um novo, SuperFreakonomics, tratando dos mesmos assuntos pouco
convencionais na economia e no jornalismo – mas já cheguei à conclusão que eu e os autores
dos dois volumes (e outros virão) de economia contrarianista temos muito em comum: a
coincidência se resume basicamente no fato de sermos, eu e a dupla Freak, contestadores das
verdades reveladas, daquilo que os franceses chamam de idées reçues, ou seja, o pensamento
banal, aceito como correto nos mais diferentes meios em que essas ideias se aplicam (mas
geralmente de forma equivocada).
E por que digo isto, ao iniciar a introdução de um livro de “ideias já recebidas”, ou
pelo menos de ensaios já publicados? É porque eu já fui chamado, certa vez, de accident
prone diplomat, ou seja, alguém que busca confusão, o barulho, no meu caso, de fato, mais a
provocação do que a contestação gratuita. Com efeito, eu não consigo me convencer com
certas idées reçues nos meios que frequento, e estou sempre à busca de seus fundamentos,
justificações, provas empíricas, testemunhos de sua adequação e funcionamento no ambiente
em que deveriam operar, em condições normais de pressão e temperatura, enfim, o
entendimento convencional de como é ou de como deve funcionar a diplomacia, em especial,
a nossa, esta sempre tida por excelente e que, aparentemente, não improvisa. Talvez devesse
fazê-lo, em certas ocasiões...
12
Na verdade, antes de ser um accident prone diplomat, se isto é correto (o que duvido),
creio ser um diplomata acidental, alguém que se dava bem na academia, tangenciando as
áreas dos dois autores de Freakonomics, e que resolveu, num repente, ser diplomata. Posso
até recomendar a profissão, aos que gostam de inteligência, de cultura, de viagens, de debates
sobre como consertar este nosso mundo tão sofrido, aos que são nômades por natureza (como
é o meu caso e mais ainda o de Carmen Lícia), menos talvez aos que apreciam pouco um
ambiente meio Vaticano meio Forças Armadas. Com efeito, hierarquia e disciplina são os
dois princípios que estão sempre sendo lembrados aos jovens diplomatas como sendo a base
de funcionamento dessa Casa aparentemente tão austera, tão correta, tão eficiente no
tratamento das mais diversas questões da nossa diplomacia.
Atenção, eu disse diplomacia, que é uma técnica, e não política externa, que pode ser
qualquer uma que seja posta em marcha pelas forças políticas temporariamente dominantes no
espectro eleitoral do país. Política externa pertence a um governo, a um partido; a diplomacia
pertence a um Estado, que possui instituições permanentes, entre elas essa que aplica a
política externa de um governo por meio da diplomacia. E por que então o título
Freakdiplomacy que inaugura este prefácio? Não preciso responder agora, e provavelmente
nem depois, mas a resposta talvez esteja em cada um dos ensaios reunidos nesta coletânea de
artigos publicados desde 2001 no boletim Meridiano 47. Ninguém há de recusar o fato de
que, desde 2003 pelo menos, o Brasil vive tempos não convencionais, nos quais assistimos
coisas nunca antes vistas na diplomacia, que por acaso é o título de meu livro mais recente.
Pois bem, reunindo tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores – diplomata
acidental, hierarquia, disciplina, ideias de senso comum, etc. – e juntando tais conceitos aos
ensaios aqui compilados, vocês terão uma explicação para o sentido geral de minha obra,
anárquica, dispersa, contestadora, por vezes contrarianista, mas explorando, como os dois
autores de Freakonomics, the hidden side of everything, ou, neste caso, o lado menos
convencional da diplomacia, aquele que explora certas verdades reveladas e ousa apresentar
outras ideias que não necessariamente fazem parte do discurso oficial. Esta talvez seja a razão
de eu também apreciar, muitíssimo, uma seção da revista Foreign Policy, desde a sua
reorganização por Moisés Naím, que se chama “Think Again”, ou seja, reconsidere, ou pense
duas vezes, pois a resposta, ou a explicação pode não estar do lado que você costuma
encontrar, mas que talvez esteja escondida em alguma dobra da realidade, por uma dessas
surpresas do raciocínio lógico, por alguma astúcia da razão ou por algum outro motivo que se
encontra enterrado, e quase esquecido, na história.
13
A vantagem de ser um diplomata acidental está justamente no fato de poder perseguir,
nem sempre impunemente, o outro lado das coisas, e de poder contestar algumas dessas idées
reçues que passam por certezas consagradas, ou pela única postura possível no funcionamento
convencional da grande burocracia vaticana, que também leva jeito de quartel (mas acordando
um pouco mais tarde). Durante todos estes anos em que venho colaborando com o boletim
Meridiano 47, e desde algum tempo com seu irmão mais novo, digital, Mundorama, tenho
podido exercer meu lado irreverente e pouco convencional para tratar de aspectos muito
pouco convencionais de nossa Freakdiplomacy nestes anos do nunca antes (et pour cause).
Atenção: estes ensaios não brotaram, originalmente, de trabalhos de pesquisa, ou
daquilo que se chama, usualmente, de scholarly work, isto é, o material resultante de estudos
meticulosos, ou objeto de revisão cega por pares, que está mais propriamente coletado em
meus livros publicados. Eles são, eu diria, peças de simples divertimento intelectual, ainda
que vários deles contenham aparato referencial (notas de rodapé, bibliografia, citações doutas,
etc.) e também sejam o reflexo de muitas leituras sérias e anotadas ao longo de meus anos de
estudo e trabalho. Mas, destinados a um veículo mais leve, e não a uma revista científica, eles
constituem reflexões de um momento, de um problema, de algum freak-event que valia a pena
registrar em um artigo mais curto.
Devo a existência de mais este livro de coletânea de meus próprios textos a meu
amigo, colega acadêmico e grande editor de publicações leves e mais pesadas, o professor
Antonio Carlos Lessa, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a
quem aprendi a admirar desde nossos primeiros passos conjuntos na reorganização da Revista
Brasileira de Política Internacional, recuperada por mim de uma morte certeira, quando do
falecimento de seu editor no Rio de Janeiro, Cleantho de Paiva Leite, no final de 1992. O
professor Lessa foi o animador constante, e mais ativo, de diversas outras publicações que
marcaram, e ainda marcam sua trajetória na UnB, algumas desaparecidas, em forma impressa
ou digital, como foi o caso de Relnet, por exemplo (onde foram publicados alguns destes
ensaios em sua primeira encarnação), outras resistentes e persistentes, como a própria RBPI e
este boletim Meridiano 47, justamente. Sem o professor Lessa, o boletim não existiria, e sem
o seu trabalho incansável não teríamos tantos e tão bons produtos saindo das fornalhas do
IBRI e do IRel-UnB. A ele dedico, portanto, esta compilação seletiva, com meus
agradecimentos renovados pelo seu esforço e sua pertinácia nos empreendimentos.
Todos estes meus ensaios, na forma em que foram publicados, estão em princípio
disponíveis nos arquivos digitais do boletim Meridiano 47 (ver este link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive ou este aqui:
14
http://mundorama.net/category/2-biblioteca/boletim-meridiano-47/). O que vai aqui
compilado foi retirado de meus próprios arquivos, em processador usual de texto, para
contornar os problemas de formatação de texto em suporte digital, mas corresponde, em
princípio, ao que foi publicado. Nem tudo o que publiquei vai aqui reproduzido, em ordem
não cronológica, mas organizada por grandes categorias de estudo. Ficaram de fora diversos
artigos circunstanciais, todas as resenhas de livros – já coletadas em outras publicações
digitais que organizei – e alguns textos de menor importância. Todos aqueles efetivamente
publicados (salvo distração minha) estão ordenados cronologicamente no apêndice ao final do
volume, onde também figuram os respectivos links para revisão dos mais desconfiados ou
curiosos. Também tenho colaborado, agora como colunista não pago, com outra iniciativa do
Prof. Antonio Carlos Lessa, Mundorama, um veículo ainda mais leve que Meridiano 47, e
que libera eventualmente material para posterior publicação neste último (como ocorreu com
alguns destes meus ensaios).
O lado “freak”, ou divertido, de ser um diplomata acidental está justamente na
possibilidade de poder escrever livremente sobre assuntos sérios e menos sérios, com a
liberdade editorial que só existe nos veículos leves, sem precisar cumprir todo o ritual chato
dos requisitos acadêmicos ligados às revistas “sérias” – como a RBPI, por exemplo, com a
qual também colaboro, de diversas maneiras – e sem precisar atentar para a langue de bois
normalmente associada às publicações oficiais, onde o lado vaticano inevitavelmente
predomina. Foi nestes ensaios que eu explorei o lado meio escondido de certas verdades
reveladas do meio profissional, uma atividade que sempre me deu imenso prazer por
combinar com meu jeito contrarianista de ser.
Dito isto, preciso voltar a coisas mais sérias, como o segundo volume de minha
história das relações econômicas internacionais do Brasil, que me espera desde vários anos a
partir da conclusão do primeiro volume (Formação da Diplomacia Econômica no Brasil).
Assim que terminar, vou voltar a me divertir, nas páginas de Meridiano 47, nos arquivos
digitais de Mundorama, ou nos meus próprios veículos de divulgação.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 16 de abril de 2015
15
Primeira Parte
Relações Internacionais e política externa do Brasil
17
1. Relações internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva
histórica
Integrado como território produtivo nos circuitos do capitalismo mercantil
durante a fase da primeira globalização, que corresponde aos grandes descobrimentos
europeus, o Brasil começa a se constituir como povo e como nação no curso de três
séculos de colonização portuguesa. Não há estado ou poder político autônomo, daí a
ausência de relações internacionais próprias, que não aquelas determinadas de modo
reflexo pelo poder metropolitano.
A transferência da sede da monarquia opera uma primeira experiência de
política externa, mas o sentimento nacional só se consolida a partir da constituição do
Estado independente. A lenta afirmação de uma política exterior nacional se faz ao
longo da segunda fase da globalização capitalista, quando ocorrem a primeira (máquina
a vapor) e a segunda (eletricidade) das revoluções industriais de nossa era, que não
mudam, contudo, o caráter primário-exportador da inserção econômica internacional do
País.
No final do século XIX, a despeito de transformações econômicas ocorridas
durante o Império, o Brasil se inseria na divisão internacional do trabalho da mesma
forma como em seu início: como uma Nação dotada de afirmada vocação agrícola para
o monocultivo de exportação, ainda que alguns produtos momentâneos — como a
borracha, por exemplo — viessem a disputar a primazia ao café nessa fase e no começo
do século XX. A República trará poucas modificações a uma estrutura econômico-
social essencialmente conservadora, não obstante a promissora experiência
industrializadora de seus primeiros anos. O que a República introduz de novo são
princípios alternativos de política externa, como o pan-americanismo, por exemplo,
numa área em que o Império tinha mantido, ou sido mantido em, um relativo isolamento
das demais repúblicas do continente. A afirmação da República se dá num terreno em
que o legado monárquico não tinha ainda se esvanecido, sobretudo nos meios
diplomáticos, ocorrendo mesmo alguns episódios “jacobinos”, no casa das intervenções
estrangeiras durante a revolta da Armada, por exemplo.
Mas, do ponto de vista econômico, os problemas que passam a atormentar a
jovem República eram os mesmos que tinham angustiado a jovem nação independente:
o problema da mão-de-obra (desta vez como imigração) e os investimentos estrangeiros
e os capitais de empréstimo, origem de monumental dívida externa que estaria sempre
18
sendo jogada para a frente. A questão financeira — com a negociação do Funding Loan
de 1898 — e o problema da “defesa do café” (promoção comercial e propaganda no
exterior) são os grandes assuntos da diplomacia econômica do Brasil nesse período, cuja
inserção na divisão internacional do trabalho continuaria sendo feita pelo simples lado
da exportação primária. Tem início, assim, uma diplomacia do café, que continuaria
durante todo o período de afirmação de nossa “vocação agrícola”.
A era do Barão, 1902-1912
Os elementos relevantes do relacionamento externo nessa fase são os dos limites
territoriais deixados em aberto pela nulificação do Tratado de Madri, mediante o
trabalho diplomático de delimitação das fronteiras ainda duvidosas. A figura
proeminente nessa fase é, evidentemente, a do Barão do Rio Branco (1902-1912),
verdadeiro patrono e elemento ideológico central no processo de formação da moderna
diplomacia brasileira. Outras questões proeminentes são a do equilíbrio no Cone Sul,
problema indissociável da política americana conduzida pela Chancelaria, e a da
participação do Brasil nas conferências de paz de Haia. Na vertente econômica
destacam-se os empréstimos para estocagem de café e o primeiro exemplo de “currency
board” de nossa história econômica, com a criação da Caixa de Conversão em 1906.
A República dos bacharéis, 1912-1930
Essa República de “bacharéis”, que vai atravessar grosso modo todo o primeiro
período republicano, tenta inserir o Brasil no chamado “concerto de nações”, inclusive
pelo envolvimento na Primeira Guerra e na ulterior experiência da Liga das Nações,
motivo de uma das grandes frustrações na história multilateral da diplomacia brasileira.
No que se refere às questões relativas à inserção do País no “concerto de nações
civilizadas”, parecia evidente que o relacionamento político com as potências
econômica e militarmente significativas não poderia se fazer em pé de igualdade, como
a visão bacharelesca e jurídica das elites monárquicas e republicanas pretendeu,
inutilmente, alimentar a ilusão durante um largo período. Desde as agruras do
relacionamento com a Inglaterra vitoriana, passando pela participação algo frustrada nas
conferências de paz de Haia, até a experiência humilhante da Liga das Nações, o Brasil
se verá confrontado a posturas externas que iam do desprezo e da soberbia ao que —
mais tarde e em outro contexto — se chamaria de benign neglect. Cabe destacar, porém,
que, mesmo num contexto cultural ainda fortemente “colonizado” ideologicamente, a
19
“república dos bacharéis” não se afastará, grosso modo, da missão já desenhada pelas
elites da “monarquia ilustrada” no sentido de buscar, incessantemente, afirmar os
interesses nacionais no quadro de um sistema internacional fortemente discriminatório
em relação a “potências menores”, nações anteriormente colonizadas, ou, enfim,
formações periféricas de uma forma geral.
Crise e fechamento internacional: 1930-1945
Com a retração da interdependência econômica global, nas crises politico-
militares e financeiras da primeira metade do século XX, o Brasil formula uma política
externa própria, com o objetivo de aprofundar o desenvolvimento. A “era nacional”
introduz, no cenário das relações internacionais do Brasil, o que se poderia chamar de
“mudança de paradigma”. As alterações na correlação de forças sociais e na própria
estrutura decisória do sistema político brasileiro, introduzidas pela Revolução de 1930
(e por seus desenvolvimentos subsequentes), não poderiam, é claro, deixar de afetar a
natureza das relacionamento externo do País, em escala ainda não experimentada até
aquela conjuntura histórica. Apesar de que a diplomacia brasileira continua, por um
certo tempo mais, a apoiar-se na tradição bacharelesca e jurídica vinda do século XIX e
sem embargo de que as preocupações de seus quadros principais ainda estivessem
marcadas por uma atitude “essencialmente ornamental e aristocrática” — para empregar
uma terminologia cunhada por Hélio Jaguaribe —, é nessa fase que se passa de uma
postura mais ou menos passiva em relação ao sistema internacional dominante para uma
tentativa de inserção positiva, e portanto afirmativa, nos quadros da ordem mundial em
construção.
O subperíodo é dominado pela redefinição de prioridades políticas e das alianças
externas no contexto das crises da ordem política e econômica internacionais dos anos
1930, com dificuldades para a preservação de escolhas autônomas em face dos limites
objetivos — guerra e bloqueios — à atuação puramente diplomática. Elementos de
destaque no contexto externo são constituídos pela crise econômica inaugurada pelo
crack da bolsa de Nova York, em 1929, pela questão da dívida externa – na qual se
observa uma moratória de fato, seguida de renegociação com os credores bilaterais - e,
sobretudo, pela política de alianças e de equilíbrio pendular entre imperialismos rivais,
entre os quais se destacam os Estados Unidos e a Alemanha nazista.
Em muitos países europeus e em diversas outras regiões do mundo civilizado se
travava então uma surda (por vezes aberta) luta entre doutrinas ideológicas rivais, com
20
destaque para as correntes fascistas e autoritárias e, em menor plano, os diversos
movimentos de afiliação socialista ou comunista. No plano interno, não se pode deixar
de notar os desafios insurrecionais comunista e integralista, em 1935 e 1938
respectivamente, que não deixaram de ter conexões internacionais bem marcadas. A
guerra civil espanhola, na qual chegam a combater inclusive voluntários brasileiros —
geralmente saídos do movimento aliancista de 1935 — epitomiza essa fase de intensos
conflitos ideológicos e de apelos dramáticos à solidariedade internacional. No final do
período, o Brasil define-se pela política de “grande aliança atlântica”, confirmada pela
participação na Segunda Guerra Mundial e pelo alinhamento com as posições norte-
americanas.
Persiste em filigrana, durante toda essa fase, uma consciência nítida das elites
dirigentes em relação ao atraso material e tecnológico do País, mesmo se essa percepção
ainda não tivesse sido conceitualmente definida nos termos da grande divisão entre
desenvolvimento e subdesenvolvimento que vai mobilizar a agenda internacional no
imediato pós-guerra e nas décadas seguintes. Em todo caso, grande parte das energias
da diplomacia varguista, no capítulo das relações econômicas externas, será mobilizada
em função da necessidade de se lograr recursos financeiros e materiais para a instalação
de uma usina siderúrgica no País, o que será alcançado mediante o apoio dos Estados
Unidos à construção de Volta Redonda.
Uma política exterior tradicional: 1945-1960
Essa fase tem início pela participação tentativa e parcial do Brasil na construção
de uma nova ordem mundial, na conferência de Bretton Woods, em 1944, a partir de
quando a reorganização econômica do mundo é enquadrada pela luta entre os modelos
rivais do liberalismo e do socialismo. Ela tem continuidade com a afirmação incisiva –
já no segundo Governo Vargas - dos interesses nacionais no quadro inédito de
diminuição dramática dos atores relevantes no plano internacional — em função da
bipolaridade introduzida pela Guerra Fria— e, portanto, de redução simultânea das
parcerias economicamente “rentáveis” nesse quadro de opções obrigatórias. Mas, a
“opção americana” que então se desenha se faz também no contexto da emergência de
uma diplomacia do “desenvolvimento”, que se afirmará plenamente na fase seguinte.
Se, por um lado, a doutrina da “segurança nacional” define o sustentáculo ideológico da
Guerra Fria, o Pan-americanismo, por outro, mobiliza os esforços da diplomacia para a
“exploração” da carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É
21
nesse quadro de barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o
Brasil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral digna de registro, a Operação
Pan-Americana, proposta pelo Governo Kubitschek em 1958.
No plano econômico externo, é nessa fase que tem início a negociação dos
primeiros acordos de produtos de base – café, cacau, açúcar, entre outros -, com a
criação concomitante das organizações multilaterais setoriais que se ocupam desses
produtos, ao mesmo tempo em que o Brasil suscita, em 1956, mediante a demanda
formal de reestruturação das dívidas oficiais bilaterais, a criação de um foro de credores
que mais adiante evoluirá para a constituição do Clube de Paris (1961). Ainda no
terreno da diplomacia econômica multilateral, essa fase corresponde aos primeiros
exercícios negociadores de política comercial no GATT, quando o Brasil renegocia sua
adesão, em 1957, a partir da nova Lei Aduaneira e de reclassificação tarifária.
A política regional é marcada por uma certa ambiguidade entre o equilíbrio
estratégico e o isolamento diplomático, visível sobretudo no relacionamento com o
principal parceiro e rival, a Argentina, mas o quadro evolui, sobretudo a partir da era
Kubitschek, para a superação da competição e sua substituição pela convivência e pela
cooperação. Começa a ter voga, nessa época, sob a impulsão do economista argentino
Raul Prebisch, o chamado “modelo cepalino”, isto é, a promoção do desenvolvimento
nacional por meio de políticas ativas de industrialização, eventualmente mediante a
cooperação econômica no contexto sul-americano e a promoção de esquemas de
integração. Tais esforços, inclusive por um certo mimetismo em relação ao mercado
comum europeu recentemente (1957) instituído, resultarão, em 1960, na criação da
Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC). No plano institucional
interno, é também nessa fase que se completa a profissionalização da carreira
diplomática, cujo acesso passa a se dar, desde 1946, por vestibular organizado pelo
Instituto Rio Branco e na qual a ascensão funcional confirma mais intensamente o
mérito do que o background familiar.
A política externa independente: 1961-1964
A prática da política externa independente, em sua primeira modalidade nos
conturbados anos Jânio Quadros-João Goulart, representa uma espécie de parênteses
inovador num continuum diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto
da revolução cubana e o processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o
não-alinhamento ao primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição
22
cada vez mais acirrada entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e
pela influência política junto às jovens nações independentes. Não surpreende, assim,
que a diplomacia brasileira comece a repensar seus fundamentos e a revisar suas linhas
de atuação, em especial no que se refere ao tradicional apoio emprestado ao
colonialismo português na África e a recusa do relacionamento econômico-comercial
com os países socialistas. A aliança preferencial com os Estados Unidos é pensada mais
em termos de vantagens econômicas a serem barganhadas do que em função do xadrez
geopolítico da Guerra Fria. Formuladores protagonistas dessa nova maneira de pensar
foram políticos relativamente tradicionais como Afonso Arinos e San Tiago Dantas e
alguns diplomatas de espírito inovador como Araújo Castro.
É nesse período que, ao lado da tradicional dicotomia Leste-Oeste, se começa a
proclamar uma divisão do mundo ainda mais insidiosa, Norte-Sul, entre países
avançados e países subdesenvolvidos. O Brasil foi um dos articuladores mais ativos das
propostas desenvolvimentistas que resultaram na criação, em março de 1964, da
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujos
objetivos eram, nada mais, nada menos, do que a revisão completa da arquitetura do
sistema multilateral de comércio e a criação de mecanismos — sustentação de produtos
de base, sistema geral de preferências comerciais em favor dos exportadores de
matérias-primas, não reciprocidade nas relações de comércio — suscetíveis de
promover uma inserção mais ativa dos países em desenvolvimento na economia
mundial. Quando a primeira sessão da conferência se realizava, em Genebra, o golpe
militar no Brasil sinalizou, entretanto, um retorno a padrões mais tradicionais de política
externa.
A volta ao alinhamento, 1964-1967
O reenquadramento do Brasil no “conflito ideológico global” representa mais
uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos Estados Unidos no momento
do golpe militar contra o regime populista do que propriamente uma operação de
reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em todo caso, observa-se um curto
período de “alinhamento político”, durante o qual a nova “diplomacia do marechal”
Castelo Branco — em contraposição àquela resolutamente nacionalista aplicada por
Floriano Peixoto durante a revolta da Armada — adere estritamente aos cânones oficiais
do Pan-americanismo, tal como definidos em Washington: registre-se, numa sequência
de poucos meses, a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos
23
países socialistas, assim como a participação de força de intervenção na crise da
República Dominicana. A política multilateral e as relações bilaterais, de modo geral,
passam por uma “reversão de expectativas”, para grande frustração de parte da nova
geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política externa
independente.
No plano econômico externo, a volta à ortodoxia na gestão da política
econômica permite um tratamento mais benigno da questão da dívida externa, seja no
plano bilateral, seja nos foros multilaterais do Clube de Paris ou nas instituições
financeiras internacionais, como o FMI. É sintomático aliás que a única assembleia
conjunta das organizações de Bretton Woods a realizar-se no Brasil, tenha tido por
cenário o Rio de Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando também se negocia a
instituição de uma nova liquidez para o sistema financeiro internacional, o Direito
Especial de Saque do FMI.
Revisão ideológica e busca de autonomia tecnológica: 1967-1985
Mas, a postura de princípio favorável a uma política exterior de tipo
“tradicional” ou a aceitação indiscutida de regras diplomáticas caracterizadas pelo
“alinhamento incondicional” às teses do principal parceiro ocidental vinham tendo cada
vez menos vigência no Brasil contemporâneo, mesmo no regime dos militares adeptos
da doutrina da segurança nacional. Basicamente, essas atitudes apenas se manifestaram
nos primeiros anos do pós-guerra e no seguimento imediato do movimento militar de
1964, para serem logo em seguida substituídas por atitudes mais pragmáticas. A atitude
“contemplativa” em relação aos EUA — partilhada igualmente pelos militares e pelas
elites, de modo geral, durante a Guerra Fria — cede progressivamente lugar a uma
diplomacia altamente profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos
de ação a um mundo em rápida mutação, e instrumentalizada essencialmente para o
atingimento dos objetivos nacionais do desenvolvimento econômico.
Tem início, então, a participação plena do Brasil nos esforços de construção de
uma “nova ordem econômica internacional”, com atuação destacada em todos os foros
multilaterais abertos ao engenho e arte de uma diplomacia mais madura e liberta das
alianças exclusivas da Guerra Fria. O período pode ser caricaturalmente identificado
com a “diplomacia dos rótulos”, que efetivamente se sucedem entre 1967 e 1985, a
saber: (1) “diplomacia da prosperidade” ainda no Governo Costa e Silva; (2) “Brasil
Grande Potência”, no período Médici; (3) “pragmatismo responsável”, sob a presidência
24
Geisel; (4) “diplomacia ecumênica”, já no último governo militar desse ciclo, o de
Figueiredo.
A despeito dessas classificações mais ou menos arbitrárias, tratou-se,
basicamente, de uma “diplomacia do crescimento”, consubstanciada na busca da
autonomia tecnológica, inclusive a nuclear, com uma afirmação marcada da ação do
Estado nos planos interno e externo. Mas, observa-se também nesse período a
confirmação da fragilidade econômica do País, ao não terem sido eliminados os
constrangimentos de balança de pagamentos que marcaram historicamente o processo
de desenvolvimento brasileiro: as crises do petróleo, em 1973 e 1979, seguida pela da
dívida externa, em 1982, marcam o começo do declínio do regime militar.
Redefinição das prioridades e afirmação da vocação regional: 1985-2000
Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil poderiam ser
atualmente caracterizados pelos seguintes processos: redefinição das prioridades
externas, com afirmação da vocação regional — processo de integração sub-regional no
Mercosul e de construção de um espaço econômico na América do Sul —, opção por
uma maior inserção internacional e aceitação consciente da interdependência — em
contraste com a experiência anterior de busca da autonomia nacional —, com a
continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no quadro de
processos de reconversão e de adaptação aos desafios da globalização. A diplomacia
passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a de tipo bilateral ou
aquelas de ordem estritamente profissional corporativa: são elas a regional, a
multilateral (principalmente no âmbito da OMC) e a presidencial.
As mudanças de ordem política, econômica e diplomática nas relações
internacionais do País, neste período recente, são tão variadas, e de tal magnitude —
tanto as surgidas internamente como as induzidas de fora —, que qualquer tentativa de
levantamento das “questões relevantes” nesta fase da história nacional correria o risco
de deixar de fora problemas importantes de uma agenda externa crescentemente
diversificada e extremamente complexa, seja no âmbito multilateral ou nos diversos
planos bilaterais. Mencione-se, por obrigatória, a questão nem sempre bem colocada da
“opção” entre uma “política externa tradicional” — por definição “alinhada” — e uma
“política externa independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento
bipolar no cenário geopolítico global. Superando, contudo, o invólucro “ideológico” da
postura externa do País nesse período, e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se
25
procurou classificar a diplomacia da era “militar”, assume importância primordial,
independentemente da postura política particular de cada Governo frente aos desafios
do cenário internacional, a questão do desenvolvimento econômico, verdadeiro leit
motiv da diplomacia brasileira contemporânea.
A política externa brasileira, desde os anos 50 pelo menos, foi basicamente uma
política econômica externa, mesmo se problemas de ordem regional (rivalidade com a
Argentina), de tipo político-ideológico (desafio insurrecional segundo o modelo
“castrista”) ou de cunho social-humanista (direitos humanos, por exemplo) ocuparam
frações significativas da agenda diplomática em momentos determinados desse período.
Sem praticamente nenhum tipo de exceção, todas as grandes questões de política interna
do País — industrialização, capital estrangeiro, política energética e de “segurança
nacional” (começando pelo petróleo, passando pelo programa nuclear e chegando à
política de informática), modernização tecnológica etc. — são também, e antes de mais
nada, questões de política externa da Nação.
São essas as questões — acrescidas de algumas outras que delas derivam: dívida
externa, meio ambiente, exportações de artigos militares etc. — que estão no centro das
relações internacionais do Brasil contemporâneo e que, como tais, devem conformar o
próprio “menu” de um estudo global das relações internacionais do País. Uma outra
questão, mais recente, mas que faz parte igualmente da agenda econômica “externa” da
Nação, veio a elas se juntar em forma permanente: a política de integração regional, em
especial o processo de constituição de um mercado comum no cone sul americano.
Ainda que esta última issue diplomática tenha resultado, basicamente, de uma
opção de public policy cuja natureza foi fundamentalmente política — e mesmo
“geopolítica”, no bom sentido da palavra —, isto é, a decisão tomada, ao concluir-se o
período militar, de encerrar a tradicional postura de conflito e de concorrência com a
Argentina para substituí-la por uma de cooperação e de integração, essa questão
representa, igualmente, um capítulo específico, ainda que inédito, da densa agenda
brasileira no campo das relações econômicas internacionais. Ela é uma vertente,
provavelmente a mais importante na atualidade, da já chamada “diplomacia do
desenvolvimento”.
Assim como a industrialização e a modernização econômica do País foram
perseguidas de maneira persistente, desde longas décadas, pela sociedade em seu
conjunto, a integração regional passa a fazer parte do horizonte histórico futuro da
26
nacionalidade. Num mundo em rápida mutação, com cenários geopolíticos e
geoeconômicos ainda não totalmente claros, a opção de política regional adotada pelo
Brasil passa a conformar um dos pontos mais importantes de sua agenda internacional.
Como tal, essa questão deve figurar em posição de destaque em qualquer estudo que se
empreenda, doravante, sobre as relações internacionais do Brasil. Nova fase de inserção
econômica internacional, com a redefinição de algumas linhas de sua política externa
(integração sub-regional), se define no bojo da terceira fase da globalização capitalista,
que corresponde igualmente a um processo de grandes transformações na economia e na
sociedade brasileiras.
Finalmente, nenhum estudo das relações internacionais do Brasil poderia
descurar a perspectiva propriamente globalizante — e “primariamente” comparatista —
consistindo em pensar sua inserção num sistema internacional cujas bases de
funcionamento estão em processo de transformação acelerada. Não está ainda
totalmente claro que estrutura de tomada de decisões políticas, em nível mundial, e que
conformação precisa, em termos de sistema hierarquizado (ainda que segundo novos
princípios), terá a ordem emergente atualmente, que passa a substituir o cenário bipolar
enterrado ao mesmo tempo em que se cobre de terra o caixão do socialismo mundial.
Em todo caso, essa “nova ordem” já não mais consistirá, apenas, de duas
superpotências, algumas potências médias e vários Estados “emergentes”. Os
fenômenos de “globalização” — não apenas restrito à internacionalização dos circuitos
produtivos — e de “regionalização” — com a formação de blocos econômicos e
políticos em diversas regiões do planeta — prometem introduzir novas variantes nos
modelos até aqui conhecidos de sistema internacional, tais como referidos
anteriormente: o modelo dos impérios universais, o das cidades-Estado comerciais e o
moderno sistema de Estados. O cenário histórico futuro indica, previsivelmente, que o
estudo das relações internacionais de um País como o Brasil terá de trabalhar, durante
um certo tempo ainda, com os conceitos de “Estado periférico” e de “potência média”.
Ainda assim, o padrão de relacionamento de um Estado desse tipo com os atores
principais do sistema internacional, bem como o peso específico de nações “periféricas”
na estrutura do poder mundial sofrerão mudanças significativas em direção do horizonte
2000. Nesse sentido, uma reflexão comparada sobre as tendências de desenvolvimento
dos Estados médios, com base nos elementos de análise já disponíveis, poderá
contribuir a uma melhor compreensão da agenda diplomática de um país-continente
como o Brasil.
27
Relações econômicas internacionais do Brasil, 1500-1890
Anos
Produção
principal
Região
dominante
Mão-de-
obra
Centro
econômico
Relações internacionais,
processos econômicos
1500-
1580
pau-brasil,
produtos
da floresta
Mata
atlântica,
costa do
Nordeste
Índios
feitorias e
entreposto
s na costa,
sesmarias
Incorporação das novas
terras aos circuitos
mercantis; produtos exóticos;
exercício do monopólio
português e tentativas de
usurpação por outras
potências europeias
1580-
1670
açúcar,
tabaco,
pecuária
Nordeste
Índios e
escravos
negros,
tropeiros
Salvador
Estabelecimento do
pacto colonial: exclusivo
econômico metropolitano;
regime do tráfico,
monopólios de Estado e das
companhias de comércio;
dominação espanhola e
invasões estrangeiras;
expansão do território
1670-
1790
ouro e
pedras
preciosas,
açúcar
Minas
Gerais,
costa do
Nordeste
Escravos,
faiscadore
s,
trabalhado
res livres
Salvador,
Ouro
Preto, Rio
de Janeiro
Desenvolvimento da
economia interna (minas,
pecuária, algodão);
concessões de Portugal à
Inglaterra; opressão fiscal da
metrópole, quebra de
monopólios pelas reformas
pombalinas; esgotamento da
economia do ouro
1790-
1830
algodão,
café,
pecuária
vários
arquipélag
os
econômico
s
Escravos,
primeiros
colonos
Rio de
Janeiro
Processo da
independência, abertura dos
portos, tratados desiguais
com a Inglaterra,
desenvolvimento das
primeiras atividades fabris,
expansão do café na região
fluminense e da criação no
Sul; primeiro Banco do
Brasil
1830-
1850
café,
algodão
Sul,
Sudeste,
escravos,
ainda
poucos
imigrantes
Rio de
Janeiro,
São Paulo
Diversificação da
economia, empréstimos
externos; primeiras
siderúrgicas, contestação e
recusa dos tratados de
comércio; livre navegação no
Prata; tráfico sob pressão,
estagnação da economia
açucareira; déficits
comerciais, primeira tarifa
28
protecionista
1850-
1890
café,
borracha,
pecuária
Sul,
Sudeste,
Amazônia
colonos
europeus,
brasileiros
,
primeiros
operários
São Paulo,
Rio de
Janeiro
Dominação econômica
do café, surto temporário do
algodão, começo do boom da
borracha, desenvolvimento
da infraestrutura (ferrovias,
telégrafos), investimentos
estrangeiros, forte imigração
europeia; alternância de
tarifas protecionistas e
liberais; declínio da
hegemonia econômica
britânica, diversificação de
parceiros e começo da
presença norte-americana;
superávits comerciais;
atividades fabris em diversos
centros urbanos
Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil.
Relações econômicas internacionais do Brasil, 1890-2000
Anos
Produção
principal
Região
dominante
Mão-de-
obra
Centro
econômico
Relações internacionais,
processos econômicos
1890-
1920
Borracha,
café,
algodão,
surtos
iniciais de
industriali
zação
Amazônia,
Sudeste,
Nordeste
seringueir
os,
agricultor
es,
operariad
o fabril
São Paulo,
Manaus,
Belém
Boom da borracha
propicia ganhos a
proprietários de seringais,
comerciantes e compradores
estrangeiros (a Amazônia se
internacionaliza, antes de
entrar em decadência); surto
industrializador no Sudeste
atrai investimentos diretos
estrangeiros em serviços e na
manufatura; política
comercial protecionista;
começo da “relação especial”
com os Estados Unidos e do
declínio da preeminência
britânica; diplomacia do café
e empréstimos para
sustentação do produto.
1920-
1940
O café
torna-se
predomin
ante;
industriali
zação
errática
Sudeste;
cresciment
o
industrial
em São
Paulo
Operariad
o paulista;
emergênci
a da
burguesia
industrial
São Paulo
como
centro
industrial,
Rio de
Janeiro
como
Diplomacia do café
determina o essencial da
política externa; empréstimos
externos para estabilização
da produção começam a ser
feitos na praça de NY;
passagem da hegemonia
29
centro
financeiro
britânica para a norte-
americana (aumento dos
investimentos diretos de
firmas dos Estados Unidos).
1940-
1964
A
industriali
zação
ocupa o
centro das
políticas
econômic
as do
Estado
Sudeste;
esforços
de
incorporaç
ão de
regiões
mais
afastadas à
economia
nacional
Operariad
o fabril de
SP;
expansão
das zonas
de
fronteira
agrícola
Grande
concentra
ção do
desenvolv
imento no
Sul
Diplomacia do
desenvolvimento, com
promoção da industrialização
substitutiva; políticas de
controle cambial e abertura
seletiva ao capital estrangeiro
(tentativa de relação especial
com os Estados Unidos);
promoção de acordos sobre
produtos de base e de
aquisição de equipamentos
estrangeiros.
1964-
1990
Autonomi
a
econômic
a e
tecnológic
a pela
autarquia
Sudeste
(indústrias
de
segunda
geração);
Engenheir
os,
tecnólogo
s, homens
de
negócios
Expansão
das
conurbaçõ
es mais
desenvolv
idas no
Sudeste
Reinserção, num
primeiro momento, nas
correntes dominantes da
economia capitalista, depois
prosseguimento de caminho
autônomo de capacitação
tecnológica; esforços de
exportação e de
diversificação da base
econômica; iniciativas nos
terrenos nuclear e de
tecnologias sensíveis, com
surgimento de contencioso
externo com principal
parceiro hemisférico;
acúmulo de grande dívida
externa e de desequilíbrios
setoriais e sociais;
modernização econômica
com pouco progresso social.
1990-
2000
Produção
diversifica
da;
exportaçõ
es de
commoditi
es, mas
estrutura
industrial
avançada
Sudeste
continua a
concentrar
metade do
PIB
nacional,
mas
ocorre um
processo
de
interioriza
ção do
cresciment
o
Sociedade
industrial
e de
serviços;
mas a
população
ainda
dispõe de
baixo
nível de
educação
formal
Ampliação
do
mercado
para
cobrir o
Mercosul
Busca de inserção
econômica internacional;
tentativas de estabilização
econômica, com avanços e
fracassos; aumento
considerável do PIB, mas
continuidade de níveis pouco
equitáveis de distribuição de
renda.
Avanços no processo de
integração regional, mas
baixo nível de coordenação
de políticas econômicas.
30
Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil .
Evolução conceitual da diplomacia econômica no Brasil, séculos XIX e XX
Século XIX
Século XX
Comercial
Depois de exercício de livre-
cambismo, Brasil adota política
comercial própria, baseada na
reciprocidade estrita; política
comercial mais fiscalista do que
industrializante; protecionismo
oportunista ou ocasional; baixa
proteção efetiva; as alíquotas
tarifárias passam de ad valorem a
específicas no período;
Política tarifária pragmática na
maior parte do período; alta
proteção efetiva; alíquotas
retornam ao conceito de ad
valorem; protecionismo vinculado
a objetivos industrializantes;
revisão da política comercial como
instrumento de desenvolvimento;
adoção de perspectiva
integracionista e possibilidade de
livre-comércio no final do período;
Financeira
Fragilidade orçamentária do Estado
obrigou a empréstimos para gastos
correntes, pagamento de
obrigações externas e aplicação em
alguns projetos de
desenvolvimento; dependência de
banqueiros londrinos;
“diplomacia dos créditos
externos” vinculada a objetivos
geopolíticos do Brasil na Bacia do
Prata (empréstimos ao Uruguai e
Argentina);
Empréstimos comerciais, bilaterais
e multilaterais vinculados a
projetos de desenvolvimento;
dependência dos mercados de
capitais em determinados períodos;
inadimplência ocasional; recurso
ao FMI;
política de créditos externos
vinculada a objetivos comerciais
em países em desenvolvimento;
defaults dos tomadores de créditos;
Investiment
os
Precocidade patentária,
acompanhamento dos progressos
tecnológicos em curso na Europa e
nos Estados Unidos; política
reativa de atração de capitais
produtivos e de novos inventos
para o País; poucas reservas de
mercado; ausência de critérios;
Política de desenvolvimento
tecnológico associada a restrições
patentárias; períodos de abertura e
de fechamento em relação ao
capitais estrangeiros; várias
reservas de mercado e conceito de
similaridade nacional; política
substitutiva; nova lei de patentes
no final do período;
Força de
trabalho
Política de “braços para a lavoura”,
preservando o tráfico e a
escravidão, e tímida política de
atração de colonos “europeus” por
falta de uma lei de terras; recusa de
comerciantes ou de trabalhadores
independentes;
política errática de atração de
“colonos”;
Sucesso na “importação” de
imigrantes europeus, mas ainda
prática de seletividade “racial” e
profissional; pouca atenção à
importação de “cérebros”;
restrições crescentes; de
importador a moderado
“exportador” de mão-de-obra;
Multilateral
Brasil “presente na criação” das
primeiras uniões de cooperação;
precocidade na presença nos
Participação na elaboração na
“ordem econômica” do século XX;
presença em todos os foros
31
primeiros esforços de coordenação
multilateral, mas pouca capacidade
efetiva de influenciar as decisões
das demais “potências” do
concerto internacional;
relevantes; ativo relacionamento
com os parceiros economicamente
mais importantes; aumento
progressivo da influência nos
processos decisórios multilaterais;
Institucional
- funcional
Burocracia “patrimonialista”, com
seleção elitista do pessoal
diplomático; definição precoce de
seção encarregada de temas
comerciais; diplomatas negociam
acordos e agentes consulares
defendem interesses comerciais;
ampla presença geográfica;
processo decisório interativo com a
elite política e com a área
fazendária; representantes da classe
política na chefia da Secretaria de
Estado;
Estrutura funcional-burocrática
profissionalizada; diplomatas com
especialização econômica cobrem
todos os aspectos da presença
externa (absorção da carreira
consular); ampliação da rede
diplomático-consular no exterior;
menor apelo político-partidário na
direção do Itamaraty e menor
osmose com a área fazendária;
novos critérios de seleção do
pessoal diplomático e dos padrões
de mobilidade ascensional.
Fonte: Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (em
fase de publicação)
782. “Relações Internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva
histórica”, Washington, 22 de março de 2001, 13 p. Revisão do trabalho n. 748 (Relação
de Publicados n. 241), elaborado em 19 de setembro de 2000, para conferência sobre
“Brasil 500 anos”, feita em 9/11/2000 na Universidade de Santiago de Compostela.
Publicado na revista Meridiano 47, Boletim e Análise de Conjuntura em Relações
Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, abr./mai./jun.
2001, n. 10/11/12, p. 2-11; ISSN 1518-1219; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_10_11_12.pdf). Disponível no site pessoal:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/782RelIntBrasilPRA.pdf. Incorporado ao livro
Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford,
2015). Relação de Publicados n. 274.
32
2. Ideologia da política externa: sete teses idealistas
Le canon a tué le féodalisme.
L’encre à écrire va tuer la société moderne.
Napoleão
A reflexão irônica de Napoleão – já imperador, solidamente instalado no comando
de seu império europeu e exercendo plenamente o poder – era dirigida, não sem ironia e
desdém, contra aqueles que começavam a ser designados, segundo a expressão então
cunhada por Destutt de Tracy, pelo conceito de ideólogos. Para Napoleão, esses litterati
nouvelle manière – que de maneira otimista ou ingênua, acreditavam que poderiam
influenciar a política dos príncipes – viviam concebendo grandes projetos de reforma da
sociedade sem qualquer embasamento na realidade ou sem atender um mínimo
compromisso com a coerência.
A situação não modificou-se substancialmente desde aqueles dias e a classe dos
ideólogos – uma subespécie da categoria mais ampla dos trabalhadores intelectuais –
proliferou de maneira extraordinária na era contemporânea. Alguns ideólogos
consideram-se a si mesmos “intelectuais independentes”, muito embora vários deles
sejam propensos a trocar voluntariamente essa condição pela carreira mais emocionante
de “conselheiro de príncipes” (desde, é claro, que estes últimos estejam dispostos a
ouvi-los e a acatar seus conselhos aparentemente sensatos e descompromissados).
De certa forma, os diplomatas constituem, no plano da política externa, os
ideólogos dos estados modernos. Eles estão sempre procurando soluções inovadoras a
velhos e novos problemas das relações internacionais, combinando propostas singelas
de melhoria da situação mundial com a expressão mais imediata dos interesses
concretos de seus países respectivos. Ao fazê-lo, ele operam um mélange de Idealpolitik
com Realeconomik, o que não deixa de representar uma aplicação ponderada da
tradicional receita de equilíbrio entre os requerimentos de mudança e as pressões do
status quo.
Se os fundamentos da ação diplomática não estiverem contaminados pela
ambiguidade ou pela incoerência, tal tipo de atuação representaria nada mais do que
uma demonstração do mais puro bom senso. Mas, se é verdade também que a política
externa nada mais é do que a continuidade da política interna por outros meios, é mais
O canhão matou o feudalismo. A tinta de escrever vai matar a sociedade moderna.
33
fácil ser ideólogo no plano nacional ou doméstico do que no das relações internacionais,
inclusive porque, pelo menos desde a ruptura renascentista do monopólio papal sobre a
legitimidade dos estados, não existem mais príncipes com estatura internacional. Daí
porque, mesmo ideólogos da política externa como os diplomatas devem desviar muito
de sua atenção para os fatores domésticos da política internacional de seus estados, o
que no caso deste texto é assumido de forma explícita.
As reflexões que se seguem buscam, precisamente, discutir as raízes internas das
posições internacionais assumidas pelo Brasil ou, de outra forma, recolocar no plano
nacional alguns dos fundamentos da atuação externa do Brasil, que muitos julgam poder
apreender apenas na interação com outros estados e no contexto exclusivamente
externo. Não é esta a posição do autor, que apenas considera compreensível a política
externa de um estado quando os diplomatas que a aplicam são capazes de situá-la no
contexto dos interesses domésticos e da “ideologia nacional” que a sustenta.
A diplomacia brasileira, por exemplo, sempre ostentou em suas bandeiras
ideológicas os princípios da independência e da soberania nacionais, o que nos parece
muito sensato e compreensível. Nada nos deveria impedir, contudo, enquanto
“ideólogos” da diplomacia, de contestar alguns dos fundamentos dessas idéias e de
discuti-las abertamente. Ao fazê-lo confessamos candidamente que pretendemos colocar
em causa algumas dessas idées reçues sobre a inserção internacional do Brasil e os
requerimentos para uma eventual mudança de status. Assim, as sete teses “idealistas”
relacionadas abaixo pretendem comentar, se não discutir, velhos princípios da política
externa brasileira que costumam ser reafirmadas de tempos em tempos. O objetivo é
confessadamente provocador.
1. Os objetivos nacionais permanentes
Nunca é demais lembrar: esses objetivos precisam ser permanentemente
reafirmados, sobretudo para diplomatas, que vivem num mundo em estado de mutação
permanente. Entretanto, alguém, na Casa de Rio Branco, ainda sabe quantos ou quais
são eles? Tinham certamente uma presença mais vigorosa na época em que os militares
ocupavam o poder político, quando a Escola Superior de Guerra, uma espécie de
“Sorbonne” do pensamento estratégico nacional, convidava anualmente o ministro das
relações exteriores a pronunciar conferência magistral sobre o assunto: invariavelmente,
o discurso começava por retomar os fundamentos desses objetivos nacionais
34
permanentes, como recomendavam aliás os próprios manuais da ESG, o bastião
conceitual mais visível da ideologia do poder nacional.
Mas, o fato é que, hoje, o tema está visivelmente em baixa, e ninguém mais se
lembra de retomar a lista para verificar se estamos ou não indo pelo bom caminho.
Esses objetivos pareciam ter algo a ver com a preservação da segurança da pátria frente
às ameaças externas, com a afirmação e a defesa do interesse do país, a preservação da
integridade do território nacional, a projeção internacional do estado brasileiro, a
consolidação de seu potencial econômico e militar e o desenvolvimento integral da
nação, fazendo do Brasil uma sociedade mais justa e mais humana. Em outros termos,
nada de muito démodé, ao contrário, uma agenda perfeitamente atual, compatível com
programas eleitorais de centro, esquerda ou direita.
Em função desses objetivos ainda válidos, como situar o papel e a função da
política externa brasileira? Ela poderia ser definida, parafraseando Clausewitz, como a
continuação da política interna por outros meios. Adotando, em conseqüência, uma
visão mais idealista (mas não menos “utilitarista”) da diplomacia brasileira, o objetivo
precípuo da política externa não deveria ser, unicamente, o de representar o país no
exterior e menos ainda o de contribuir para uma pretendida grandeza nacional, a
exemplo do slogan “Brasil grande potência” típico daquele passado militar.
Se examinarmos a lista, a constatação que se poderia fazer é a de que, atualmente,
nada parece afetar a integridade do território nacional, nem parece existir qualquer
ameaça externa à segurança da pátria ou à consolidação de seu potencial econômico e
militar, a não ser, talvez, nossa própria capacidade, domesticamente fabricada, de
provocar danos ao meio ambiente nacional ou de colocar em risco a saúde e o bem estar
da população. Bem mais difícil, contudo, seria apontar precisamente o que poderia
constituir o chamado “interesse nacional”, pois cada grupo social ou movimento
político parece ter sua própria definição do que seja um “projeto nacional” estabelecido
em função dos “interesses do país”.
Se conseguirmos, entretanto, reduzir a um denominador comum as aspirações dos
mais diversos setores ou partidos no que se refere ao interesse público nacional, a
expressão mais frequente a ser ouvida seria, muito provavelmente, a noção de
“desenvolvimento”. Este é o leit-motiv e o verdadeiro fulcro da ideologia nacional,
como aliás já tinham constatado, meio século atrás, filósofos como Álvaro Vieira Pinto
e sociólogos como Alberto Guerreiro Ramos. Nesse contexto, a função mais importante
e fundamental da política externa deveria ser, tão simplesmente, a de coadjuvar o
35
processo de desenvolvimento econômico e social da nação. Assim, o critério essencial
pelo qual deveria pautar-se a atuação de cada diplomata brasileiro é a promoção do
progresso material e cultural da sociedade brasileira, objetivo de alguma forma
intangível e certamente mais fácil de ser pregado do que efetivado, ou ainda de ser
operacionalizado na prática. Em outros termos, não existe um critério unívoco de
transposição de “oportunidades externas” em “possibilidades internas”, para utilizar
conceitos caros a Celso Lafer. O que remete o diplomata à esfera do bom senso, ou
então, à situação de ele ter capacidade de perceber e identificar, na trama por vezes
complexa da agenda internacional, o que exatamente corresponde ao interesse nacional
e que tipo de inserção externa seria mais suscetível, preferencialmente a outras
alternativas, de conduzir o Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável. Ainda
incerto quanto ao roteiro a ser seguido? Isto é compreensível, mas a solução consiste,
tão simplesmente, em conhecer profundamente o Brasil e ter uma visão clara da
economia política de nosso desenvolvimento social.
2. A independência nacional
No passado, esse conceito já foi equalizado ao exercício pleno da soberania, o que
tanto tinha a ver com a capacidade de o estado manter abertas todas as opções possíveis
para a demonstração de seu poder, como com a não dependência de qualquer fonte de
abastecimento externa. Historicamente, nem o primeiro objetivo foi jamais alcançado,
nem o segundo, que é não apenas ilusório como economicamente irracional, apresenta
qualquer viabilidade prática ou finalidade instrumental, do ponto de vista do sistema
produtivo. Em termos estritamente econômicos, o conceito pode ser traduzido pelo
coeficiente de abertura externa, que representa a parte do comércio exterior na formação
do produto. No Brasil, a noção assume ares de imperativo categórico, a ponto de
figurar, na Carta de 1988, como um dos princípios constitucionais que guiam as
relações internacionais do país, como se os líderes do país – ou, vá lá, os diplomatas –
fossem capazes de colocá-la em risco.
Durante os períodos de fechamento da economia internacional, como a partir da
crise de 1929 e durante a depressão dos anos 1930 e os anos de guerra, não havia
mesmo outra opção senão a chamada self-reliance, ou seja, o recurso a fontes
alternativas internas de suprimento e a ênfase no mercado interno. No atual contexto
internacional, contudo, esse objetivo permanente deveria ser procurado não
necessariamente na direção da independência econômica stricto sensu, mas sim
36
mediante uma ativa interdependência com os grandes centros da economia mundial,
quando não através de uma internacionalização cada vez mais intensa da economia
brasileira. A globalização torna irrelevante qualquer diferenciação entre o mercado
interno e o externo e, se alguma distinção pode haver, ela sempre resultaria em destacar
a superioridade do mercado externo, tanto em termos de renda agregada como em
função da demanda ampliada e do upgrade tecnológico.
A antiga concepção da independência nacional – entendida em determinadas épocas
como a realização da plena autonomia decisória em matéria econômica, quase como a
conformação de uma espécie de autarquia produtiva –, nunca contribuiu, de fato, para a
verdadeira independência nacional, mas sim a fragilizou, a ponto de tornar o País menos
propenso a responder aos desafios da competição externa. Apenas uma espécie de
substrato inconsciente da antiga “prevenção contra o estrangeiro” ou a manifestação
delongada de um complexo de inferioridade hoje aparentemente superado – e aos quais
não são alheios certos equívocos de nossas elites políticas – têm impedido a necessária
(e inevitável) internacionalização mais intensa do sistema produtivo brasileiro ou a
afirmação desinibida da presença cultural no exterior.
Da mesma forma, é carente de sentido a noção de que o país necessita primeiro
afirmar-se economicamente ou de que suas empresas devem capacitar-se
tecnologicamente ou fortalecer-se financeiramente antes de que possam ser colocadas
em prática políticas de abertura econômica e de liberalização comercial. Em outros
termos: globalização sim, mas ainda não, esperemos mais um pouco para resolver
problemas imediatos. Ao contrário: a multinacionalização das empresas brasileiras
ocorrerá no bojo e pari-passu ao processo de internacionalização da economia
brasileira. A globalização pode não ser o objetivo final, mas representar tão
simplesmente um meio de alcançar determinados objetivos, que não são os da
internacionalização em si, mas os do aumento da eficiência e da capacidade de
competição dos agentes econômicos nacionais.
3. O interesse nacional e a cooperação internacional
A cooperação internacional costuma ser identificada com a disponibilidade de
“excedentes nacionais”, isto é, o fato de um determinado país, após sua fase de
“acumulação primitiva”, ter deixado de ser receptor de assistência financeira ou técnica
externa para tornar-se, ele mesmo, provedor de ajuda ao desenvolvimento, a exemplo
dos membros do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação
37
e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na verdade, o processo é mais difuso, como
indica o fato de o Brasil ter aderido, em 1960, à Associação Internacional de
Desenvolvimento (do Banco Mundial) na condição de contribuinte líquido, ao mesmo
tempo em que recebia, para o Nordeste por exemplo, ajuda assistencial sob a forma de
alimentos ou outros tipos de doações. Os dois lados da equação “cooperação
internacional” se confundem por vezes, não havendo uma função de substituição que
corresponde exatamente ao processo histórico mediante o qual o sistema econômico de
um país passa, numa determinada etapa, de receptor líquido de recursos externos à
condição de exportador de capitais.
O interesse nacional não deve ser concebido como uma busca egoísta de vantagens
exclusivas para o país, no contexto regional ou internacional, mas como um processo de
seleção de benefícios crescentes para a nação no quadro da cooperação externa, bilateral
ou multilateral. A cooperação internacional, em ambos os sentidos, corresponde ao
interesse nacional, tanto mais quanto ela se desdobrar em projetos de maior intensidade,
que a transcendam, rumo a processos de associação política ou de integração
econômica. Assim, é do interesse do Brasil o desenvolvimento harmônico do maior
número possível de estados-nações, muito embora não esteja ao alcance dos
representantes brasileiros, em foros internacionais ou em países estrangeiros, a
realização de mudanças estruturais ou o atingimento de transformações econômicas e
políticas internas nessas nações, ainda que para fins de desenvolvimento. Em todo caso,
o interesse nacional confunde-se, em grande medida, com o interesse da comunidade
internacional.
A cooperação externa, tanto a recebida quanto aquela generosamente prestada aos
países de menor desenvolvimento relativo, é, contudo, acessória ao projeto nacional de
desenvolvimento econômico e social, que passa pela auto-capacitação tecnológica e a
formação interna de capital humano. Em qualquer hipótese, quanto mais ajuda o Brasil
prestar a países de menor desenvolvimento relativo, maiores condições ele terá de lograr
avanços para si mesmo nos campos tecnológico, financeiro e comercial.
4. A “graduação” e o status de país em desenvolvimento
O sistema de comércio internacional do pós-Segunda Guerra foi construído com
base em regras de reciprocidade, ou seja, no pressuposto de um tratamento igualitário
para todos os países, ricos ou pobres, agrários ou industrializados, avançados ou
atrasados. Uma das lutas mais consistentes empreendidas pela diplomacia econômica
38
brasileira nos anos 50 e 60 foi levada justamente no sentido de buscar um tratamento
diferencial, ou seja, preferencial e mais favorável, para os países em desenvolvimento, o
que foi obtido a partir das reformas do sistema multilateral a partir de 1964, com as
reformas do GATT e a atuação inovadora da Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento, a UNCTAD. Desde então a não-reciprocidade assegura
um certo acesso de produtos desses países aos mercados desenvolvidos – embora
segundo uma relação unilateral, condicionada e assistencialista – bem como a
derrogação ou redução de certas obrigações normativas. O sistema vem sendo
preservado tal qual, praticamente desde essa época, com algumas modificações menores
introduzidas no curso de rodadas de negociações comerciais, geralmente no sentido de
ser efetuada a graduação dos mais industrializados, como o Brasil, mantendo
preferências para os de menor desenvolvimento relativo.
O tratamento preferencial pode trazer algumas vantagens setoriais, mas não
constitui, por si só, elemento impulsor do desenvolvimento econômico. Nessas
condições, a afirmação, sempre reiterada pela diplomacia brasileira, de nosso status de
“país em desenvolvimento” e a consequente busca, ou preservação, das vantagens
inerentes a tal condição constituem, paradoxalmente, os meios mais seguros de
perpetuar o Brasil nesse estado desconfortável – e, em grande medida, falso – de “país
em desenvolvimento”. Em determinadas conjunturas históricas, como a que atravessou
o Brasil na passagem para o século XXI, de transformação estrutural ou de transição
para uma nova etapa de desenvolvimento econômico, uma mudança auto-assumida de
paradigma oferece uma chance única para uma melhor inserção internacional.
A liberalização comercial unilateral dos anos 90, por exemplo – como aliás, na
mesma linha, a assunção irrestrita do princípio do free trade na Inglaterra vitoriana de
um século e meio atrás –, fez mais para aumentar a competitividade externa do Brasil
no mercados internacionais do que o suposto tratamento favorável concedido a um certo
número de produtos manufaturados por parte de alguns países desenvolvidos. Da
mesma forma, o ajuste fiscal e as reformas econômicas internas fazem parte da nova
inserção internacional do Brasil. A melhor forma de graduação é aquela auto-assumida,
não a imposta pelos parceiros mais desenvolvidos.
5. A integração regional e o ingresso em foros restritos
A economia mundial do final do século XX e início do XXI tem sido caracterizada
pelos processos de globalização e de regionalização, que não são contraditórios entre si
39
ou apresentando-se como alternativas excludentes. De fato, o que caracteriza a
economia mundial da atualidade é o extraordinário aumento da interdependência entre
os países, sejam eles membros ou não de algum bloco de comércio ou sistema de
aliança política. O Brasil participa de ambos os processos, tendo logrado superar
pruridos nacionalistas para engajar-se resolutamente na globalização e dirigido, de
forma relativamente exitosa em seus primeiros dez anos, a consolidação do Mercosul
em direção de uma união aduaneira.
Os processos de integração regional, possuidores de uma racionalidade econômica
stricto sensu, devem ser perseguidos como objetivos funcionais ou correlativos ao
processo de desenvolvimento nacional, mas não necessariamente como um fim em si,
na medida em que sua vertente política e institucional deve ser confrontada aos custos
sociais (inclusive financeiros e diplomáticos) de sua realização efetiva. Da mesma
forma, a busca seletiva de adesão a (ou de aceitação em) determinados clubes seletos –
como podem ser o MTCR, o CSNU, a OCDE – devem ser vistos antes como o
resultado do que como a causa de determinados processos estruturalmente vinculados
aos objetivos nacionais permanentes.
A busca do prestígio pelo prestígio introduz custos adicionais ao esforço interno de
ajuste, custos que devem ser confrontados aos benefícios esperados ou à capacidade do
país em produzir excedentes líquidos para sua projeção internacional. Em princípio, é o
desenvolvimento interno, econômico e social, da nação que trará o reconhecimento
externo, e com ele determinados convites à assunção de responsabilidades maiores na
comunidade internacional, e não o contrário. O discurso democrático e universalista da
diplomacia brasileira, basicamente orientado para a ação multilateral, deve guardar
coerência com sua forma de atuação nos mais diferentes foros abertos à nossa presença.
O objetivo último de uma política externa “globalizada” e “integracionista” é o aumento
do bem-estar da população brasileira, não o internacionalismo abstrato, a integração
pela integração ou a incorporação em foros restritos apenas pelo prestígio aparente que
isso comporta.
6. A imagem internacional do Brasil
Ela é certamente falha, injusta, incorreta, por vezes difamatória: o Brasil geralmente
aparece na imprensa internacional mais pelo lado de suas mazelas sociais e ambientais
do que pelos aspectos exitosos de seu desenvolvimento ou pelas realizações materiais e
artísticas de seu povo. Muitas vezes isso se dá por perversidades próprias à nossa
40
estrutura econômica e social, outras vezes por incompetência dos agentes públicos
brasileiros na apresentação de nossas realidades. O aperfeiçoamento dessa imagem não
deveria contudo ser buscado pelo mero investimento nos meios, isto é, pela promoção
de um retrato “mais fiel” do Brasil, mas por uma ativa política corretiva nas fontes do
problema. Do incômodo de conviver com certas realidades, possivelmente vexatórias do
ponto de vista internacional, nascem determinadas posições de princípio que apenas
eludem alguns problemas cruciais de ordem política ou social; nessa ordem de idéias
pode ser colocada a visão jurídica que ainda anima nossa política de direitos humanos.
Um certo investimento em “imagem” vem sendo feito junto a interlocutores
externos, sem que se possa medir muito bem o retorno efetivo dos recursos engajados
nessas formas sutis de propaganda. Alguma satisfação, pelo menos no plano individual,
pode resultar dessas ações, mas tais recursos estariam certamente melhor empregados se
fossem canalizados para as tarefas de educação e de promoção da cidadania ou da
preservação ambiental no próprio Brasil, em lugar de serem direcionados para o
exterior.
7. Avaliação do instrumento diplomático brasileiro
Depois do “mito do Barão”, a afirmação da “excelência do Itamaraty” é certamente
uma das crenças mais arraigadas em nosso estamento profissional, tendo obtido um grau
razoável de aceitação pública, interna e externamente. A auto-complacência com nossas
supostas boas qualidades pessoais, ótima formação acadêmica e alto desempenho
profissional parece constituir uma espécie de “pecado original virtuoso”, tendo sido
constantemente estimulada por uma dessas frases grandiloquentes cuja origem é
creditada ao imediato entorno regional: “El Itamaraty no improvisa” (talvez devesse
fazê-lo em determinadas ocasiões, para não dar a errônea impressão de lentidão ou
passividade).
De fato, a preservação das linhas básicas da política externa brasileira ao longo das
décadas deve-se a seu caráter intelectualmente reflexivo, politicamente cauteloso,
operacionalmente coordenado e essencialmente discreto em termos de mídia. Sem
querer desmerecer a qualidade e a dedicação da burocracia diplomática, sobretudo em
confronto com outras categorias profissionais servindo o Estado, caberia no entanto
introduzir uma nota de caução e de advertência, no sentido de que a autossatisfação e a
glorificação generosa dos atributos de qualquer tipo de casta social são, de um ponto de
vista puramente antropológico, os caminhos mais seguros para uma crescente
41
endogamia, a degenerescência precoce e a esclerose. Os processos de osmose, em
contrapartida, costumam ser regeneradores e vivificadores para todas as células do
organismo, da mesma forma como a mistura racial e a abertura à alteridade reforçam a
capacidade de resposta e de adaptação de todo e qualquer corpo social.
Todos sabemos, por exemplo, que grande parte do nosso tempo é mais dedicado à
busca de meios para (tentar) trabalhar – como suporte logístico, pessoal, material,
comunicações, enfim, recursos e insumos de diversas categorias – do que propriamente
voltado para os fins precípuos para os quais somos pagos pela comunidade: pensar e
praticar a política externa brasileira. Caberia indagar, assim, se alguns procedimentos de
trabalho conseguiriam passar num controle de qualidade um pouco mais severo de um
auditor externo especializado em organização e métodos. Ou, então, se a continuidade
da suposta excelência dos quadros do Itamaraty está vinculada à estabilidade estatutária
da classe diplomática, aparentemente considerada (por “direito divino”?) um dos corpos
permanentes e inamovíveis do Estado.
Eventuais respostas alternativas às perguntas acima, talvez politicamente incorretas,
poderiam introduzir um pouco mais de modéstia em nossa auto-avaliação e promover
uma busca constante de aperfeiçoamento no modo como funciona esta instituição
repleta de jovens idealistas. Como “ideólogos” da diplomacia, nos cabe uma certa dose
de responsabilidade na permanente remise en cause da velha ordem em que somos
chamados a atuar.
Paulo Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com)
é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e autor de
Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo: Senac, 2001)
As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu autor e não
correspondem a posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do
Governo brasileiro.
813. “Ideologia da política externa: sete teses idealistas”, Washington, 2 de
outubro de 2001, 10 p. Ensaio reelaborado a partir de trabalho n. 508, de 1996,
publicado em versão original no livro Relações internacionais e política externa do
Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: UFRGS, 1998). Publicado na
revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, a. I, n. 5, outubro de 2001;
http://www.espacoacademico.com.br/05almeida.htm). Publicado em Relnet: site
brasileiro de referência em relações internacionais (Brasília: a partir de 12.10.2001),
divido em 4 Partes: Primeira: 1. “Os objetivos nacionais permanentes”; Segunda: 2. “A
42
independência nacional”; 3. “O interesse nacional e a cooperação internacional”;
Terceira: 4. “A “graduação” e o status de país em desenvolvimento”; 5. “A integração
regional e o ingresso em foros restritos”; Quarta: 6. “A imagem internacional do
Brasil”; 7. “Avaliação do instrumento diplomático brasileiro”. Publicado igualmente no
Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações internacionais (Brasília:
ISSN: 1518-1219; n. 17, novembro de 2001, p. 1-8; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_17.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).Relação de Publicados
n. 286, 287 e 291.
43
3. Relações Brasil-Estados Unidos em perspectiva histórica
1. Do Império à Era Vargas
As relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos no século XX passaram
por diferentes situações, da aproximação à indiferença, da desconfiança à aliança
militar, da cooperação à competição, nas diversas fases de desenvolvimento de um
relacionamento que remonta ao período anterior à independência do Brasil. Os Estados
Unidos — como primeira potência hemisférica em todo o período, e principal potência
planetária desde o final da Segunda Guerra Mundial — estiveram presentes em todos os
lances importantes da diplomacia brasileira no século XX, assim como ocuparam
grande parte da interface externa do Brasil no campo econômico, científico, cultural e
tecnológico no último meio século. As relações foram (ainda são) marcadas por uma
evidente assimetria nos planos econômico, tecnológico e militar, ainda que o Brasil
tenha buscado introduzir, no plano diplomático, maior equilíbrio político, com base na
reciprocidade e na igualdade de tratamento.
A República brasileira introduziu princípios alternativos de política externa,
como o pan-americanismo, área na qual o Império tinha mantido relativo isolamento das
repúblicas do hemisfério. Nos episódios iniciais de afirmação da República, o
relacionamento começa sob bons auspícios: por ocasião das intervenções estrangeiras
durante a revolta da Armada, os EUA vêm em auxílio do novo regime, contra as
inclinações monarquistas de algumas potências europeias. Os desníveis de
desenvolvimento entre os dois países já eram evidentes entre o final do século XIX —
quando se assistiu a uma primeira tentativa de integração comercial hemisférica
patrocinada pelos EUA — e o início do século XX. A partir de 1902, o barão do Rio
Branco, armado de uma concepção diplomática baseada no equilíbrio de poderes
(competição com a Argentina pela hegemonia regional), opera uma política de
aproximação com os EUA. O Presidente Theodore Roosevelt proclama, logo em
seguida, o seu corolário à doutrina Monroe, com o objetivo de justificar o papel de
polícia que os EUA pretendiam impor, mediante intervenções armadas, a seu entorno
geográfico imediato (Caribe e América Central).
Nos próximos anos e décadas, o Brasil e a Argentina passam a competir entre si
para estabelecer com os EUA uma “relação especial” que sempre se revelou ilusória,
esperando igualmente corresponder, na América do Sul, a um “padrão de civilização”
44
que os EUA e as potências europeias pretendiam ostentar com exclusividade. Pelo resto
da República velha, as relações bilaterais serão distantes, operando-se, contudo, a
gradual substituição de hegemonias na esfera financeira e dos investimentos, a partir do
momento em os EUA se convertem em exportadores de capitais, inclusive para o Brasil,
que passa do domínio da libra ao do dólar.
A República dos “bacharéis” busca inserir o Brasil no “concerto das nações”,
mediante o envolvimento na Guerra e na ulterior experiência da Liga das Nações,
motivo de uma das grandes frustrações na história da diplomacia brasileira. Os EUA,
que tinham patrocinado o surgimento da Liga, mantêm-se fora dela, tendo o Brasil
abandonado o órgão em 1926. Tanto por parte das grandes potências europeias, como
no caso dos EUA, o Brasil se vê confrontado a posturas externas que vão do desprezo e
da soberbia ao que mais tarde se chamaria de benign neglect. O período de Roosevelt —
que coincide com a era Vargas — modificará a postura isolacionista de seus
predecessores, buscando uma nova relação com os vizinhos da América Latina, mas ele
também coincide com a crise econômica, o fechamento dos mercados e a ruptura dos
equilíbrios internacionais. Os EUA emergem como a potência militar incontrastável do
pós-Segunda Guerra e o Brasil fará as apostas corretas ao se aliar aos esforços de guerra
e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início da Guerra Fria.
O Brasil participa, desde a conferência de Bretton Woods (1944), da construção
da nova ordem econômica mundial dominada pelos princípios do liberalismo de tipo
americano. A opção americana da era da bipolaridade não impede a emergência de uma
diplomacia do desenvolvimento no Brasil. Não obstante a doutrina da segurança
nacional, o pan-americanismo justifica os esforços da diplomacia para a exploração da
carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É nesse quadro de
barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o Brasil empreenderá
sua primeira iniciativa multilateral regional, a Operação Pan-Americana, proposta pelo
Governo Kubitschek em 1958 e da qual resultará o Banco Interamericano de
Desenvolvimento e, mais adiante, a Aliança para o Progresso.
A prática da política externa independente, nos conturbados anos Jânio Quadros-
João Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum
diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o
processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao
primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição cada vez mais acirrada
entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política
45
junto às jovens nações independentes. Não surpreende, assim, que a diplomacia
brasileira comece a repensar seus fundamentos e a revisar suas linhas de atuação, em
especial no que se refere ao tradicional apoio emprestado ao colonialismo português na
África e a recusa do relacionamento econômico-comercial com os países socialistas. A
aliança preferencial com os Estados Unidos é pensada mais em termos de vantagens
econômicas a serem negociadas do que em função do xadrez geopolítico da Guerra Fria.
2. Do regime militar à redemocratização
A situação de relativa ambiguidade nas relações diplomáticas entre o Brasil e os
Estados Unidos muda em 1964, quando se opera uma volta ao alinhamento político.
Entretanto, o reenquadramento do Brasil no “conflito ideológico global” representa
mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado pelos Estados Unidos no
momento do golpe militar contra o regime populista do que propriamente uma operação
de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em todo caso, observa-se um curto
período de alinhamento diplomático, durante o qual o Brasil adere estritamente aos
cânones oficiais do pan-americanismo, tal como definidos em Washington. Ocorre,
numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e com a
maior parte dos países socialistas, assim como a participação na força de intervenção
por ocasião da crise da República Dominicana. A política multilateral, de modo geral,
passa por uma “reversão de expectativas”, para frustração da nova geração de
diplomatas que tinha sido educada nos anos da política externa independente.
No plano econômico, a volta à ortodoxia na gestão da política econômica
permite um tratamento mais benigno da questão da dívida externa, seja no plano
bilateral, seja nos foros multilaterais do Clube de Paris ou nas instituições financeiras
internacionais, como o FMI. É sintomático que a única assembleia conjunta das
organizações de Bretton Woods a realizar-se no Brasil, tenha tido por cenário o Rio de
Janeiro da primeira era militar, em 1967, quando se negocia a instituição de uma nova
liquidez para o sistema financeiro internacional, o Direito Especial de Saque do FMI.
Tem início, a partir de 1967, uma fase de “revisão ideológica” e de busca de
autonomia tecnológica. A atitude “contemplativa” em relação aos EUA cede lugar a
uma diplomacia profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de
ação a um mundo em mutação, e instrumentalizada para o atingimento dos objetivos
nacionais de crescimento econômico. Praticou-se uma “diplomacia do
desenvolvimento”, consubstanciada na busca da autonomia tecnológica, inclusive
46
nuclear, com a afirmação marcada da ação do Estado no plano interno e externo, mesmo
à custa de conflitos com os EUA (denúncia, em 1977, do acordo militar de 1952, por
motivo de interferência nos “assuntos internos” do País, de fato na questão dos direitos
humanos).
Observa-se no período a confirmação da fragilidade econômica do País, ao não
terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos que marcaram
historicamente o processo de desenvolvimento brasileiro. No seguimento das crises do
petróleo, em 1973 e 1979, e da dívida externa, em 1982, o Brasil e os EUA aprofundam
seus desacordos políticos, tendo em vista a postura da diplomacia brasileira percebida
como excessivamente “terceiro-mundista” pelos EUA (intensificação das relações
comerciais com países árabes considerados radicais como Líbia e Iraque, voto
“antissionista” na ONU, coordenação com outros devedores para um tratamento político
da questão da dívida etc.), ademais da busca continuada de autonomia tecnológica,
sobretudo na área nuclear e de mísseis.
Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil na fase da
redemocratização são caracterizados pelos processos de autonomia internacional e
afirmação da vocação regional, com o início da integração sub-regional no Mercosul e
de construção de um espaço econômico na América do Sul. Faz-se também, nos anos
1990, a opção por uma maior inserção internacional e a aceitação consciente da
interdependência — em contraste com a experiência anterior de busca da autonomia
nacional —, com a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no
quadro de processos de reconversão produtiva e de adaptação aos desafios da
globalização. A “carta americana” ainda é importante, mas já não é essencial nesse
período e a diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a
de tipo bilateral tradicional: são elas a regional, a multilateral (principalmente no âmbito
da OMC) e a presidencial.
3. Problemas das relações bilaterais na fase contemporânea
A manutenção de boas relações do Brasil com os EUA não impede a existência
de conflitos tópicos entre os dois países, geralmente a respeito de questões comerciais
(protecionismo no acesso de determinados produtos brasileiros ao mercado americano,
como aço ou suco de laranja, diferenças de opinião no que se refere a patentes
industriais, acusações de pirataria ou de reservas de mercado, como no caso da
informática) ou então em função de problemas mais gerais da agenda multilateral
47
(desarmamento, não proliferação, reforma de instituições do sistema da ONU,
negociações comerciais multilaterais ou regionais etc.). Depois de recusar-se, durante
quase trinta anos, a aderir ao tratado de não-proliferação nuclear (TNP, de 1968), por
ele considerado como discriminatório e desequilibrado, o Brasil realiza, em 1996, essa
mudança paradigmática em sua política externa e nuclear, o que elimina determinadas
preocupações dos EUA em relação ao regime de controle de tecnologia de mísseis (foro
informal ao qual o Brasil é aceito como membro logo depois).
No final da década de 1990, em grande medida graças ao exercício da
diplomacia presidencial, o relacionamento com os EUA se torna mais maduro e isento
de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação especial”.
Mencione-se, por exemplo, a questão nem sempre bem colocada da “opção” entre uma
“política externa tradicional” — por definição “alinhada” — e uma “política externa
independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento bipolar no cenário
geopolítico global. Superado, contudo, o invólucro “ideológico” da postura externa do
País nesse período, e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar
a diplomacia da era “militar”, assume importância primordial, atualmente, a questão do
desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira
contemporânea. O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na
América do Sul são vistos, na agenda diplomática do início do século XXI, como
alavancas do processo de desenvolvimento brasileiro, que poderia vir a ser perturbado
pelo projeto de uma área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos
Estados Unidos em moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência
americana de 1889-90.
Em 2001, no imediato seguimento dos atentados terroristas contra os Estados
Unidos, quando não se tinha ainda concebido uma estratégia integrada de resposta a
esses bárbaros ataques, o governo brasileiro tomou a iniciativa de coordenar um
movimento de solidariedade continental para com os Estados Unidos, chegando
inclusive a mobilizar o que muitos consideraram um “vetusto” instrumento da Guerra
Fria, o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 1947), como forma
de demonstrar o compromisso comum dos países americanos com o repúdio aos atos
terroristas e em favor da adoção de medidas conjuntas para prevenir e evitar esse tipo de
ação inaceitável no contexto do mundo civilizado.
Não obstante essa demonstração de solidariedade, o Brasil também considerou
que a eliminação efetiva das ameaças terroristas no mundo moderno passa por um
48
comprometimento sério com os possíveis focos de instabilidade política e econômica
em diversos cantos do planeta, sobretudo aqueles que se manifestam a partir de sérios
desequilíbrios sociais ou regionais, de situações de grave privação dos mais elementares
direitos humanos e de condições mínimas de existência digna, em oposição a uma
abordagem puramente militar das questões de segurança e estabilidade.
1460. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica”,
Brasília, 18 de agosto de 2005, 6 p. Reelaboração do trabalho n. 868, para fins de
publicação no jornal Extra, da comunidade brasileira da costa leste (New Jersey).
Reestruturado em duas partes. Publicado no Colunas de Relnet (n. 12, jul./dez. 2005),
Parte 1. “da República Velha à redemocratização”; Parte 2. “problemas das relações
bilaterais na fase contemporânea”; e no Meridiano 47 (Brasília: IBRI, ISSN: 1518-
1219; Parte 1. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica:
da República Velha à redemocratização”, n. 60, jul. 2005, p. 6-8; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_60.pdf), Parte 2. “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos
em perspectiva histórica: problemas das relações bilaterais na fase contemporânea” (n.
61, ago. 2005, p. 6-7; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-
_1-100_files/Meridiano_61.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de
Publicados n: 578, 584 e 610.
49
4. Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em
perspectiva
Mais de um ano depois da inauguração do governo do presidente Luis Inácio
Lula da Silva, em de janeiro de 2003, parece possível traçar algumas linhas de sua
política externa numa perspectiva comparada com aquela implementada pelo anterior
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Pretendo fazê-lo de modo muito breve, apenas alinhando, numa tabela simétrica,
posições de política externa e práticas diplomáticas respectivas dos dois presidentes,
sem maiores elaborações conceituais ou digressões analíticas, pelo momento. Este
exercício comparativo apresenta, deliberadamente, algumas caracterizações
estereotipadas, o que pode ser considerado como instrumental para melhor enfatizar as
diferenças entre as duas administrações. Existem, no entanto, provas documentais ou
suportes declaratórios para cada uma das caracterizações oferecidas, que representam o
resultado de um seguimento relativamente detalhado da política externa e das relações
internacionais do Brasil desde muitos anos, tanto em função de um envolvimento direto
com a área, em decorrência de minha condição de diplomata profissional, como devido
às atividades acadêmicas por mim desenvolvidas desde sempre.
Um dos exemplos preliminares desse tipo de exercício foi conduzido no ensaio
“A relação do Brasil com os EUA: de FHC-Clinton a Lula-Bush”, preparado para o
livro Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, organizado por André Urani, Fabio
Giambiagi e José Guilherme Reis (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004). A origem
mais imediata da tabela comparativa foi, entretanto, um convite da Florida International
University para participar, em 4 de março de 2004, do seminário “Brazil: Between
Regionalism and Globalism: Old Ambitions, New Results?”, organizado pelo Summit
of the Americas Center, daquela universidade, e pelo Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais, do qual fui diretor executivo no período 1996-1999. Uma parte de minha
participação nesse seminário encontra-se disponível, em inglês, no seguinte link de meu
site pessoal: http://www.pralmeida.org/docs/1213bTwoForeignPol.htm.
O presente exercício comparativo também seqüência a esforços similares ou
preliminares de reconstrução histórica, baseados num seguimento tanto quanto possível
próximo das posições e declarações do Partido dos Trabalhadores em matéria de
política internacional e de relações exteriores do Brasil, seja em seus documentos
fundacionais, seja por ocasião de campanhas presidenciais, que costumam revelar de
50
modo mais claro o pensamento dos dirigentes em questões internacionais. Um primeiro
levantamento desse tipo foi feito no artigo “A política internacional do Partido dos
Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, publicado na
revista Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; ISSN: 0104-4478; nº. 20, junho de 2003,
p. 87-102; ver em: http://www.scielo.br/rsocp ou
www.pralmeida.org/docs/1009PolExtPT.pdf). Uma versão atualizada e ampliada foi
oferecida no ensaio “La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la
fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, in Denis Rolland (org.), Le
Brésil de Lula, un an après (Paris: L’Harmattan, 2004; disponível em francês em meu
site: www.pralmeida.org/docs/1193PRADiplomatiePT.pdf).
A tabela comparativa que se apresenta a seguir, sem maiores pretensões quanto a
seu rigor analítico ou caráter exaustivo, foi construída em torno de algumas grandes
áreas de interesse para a diplomacia brasileira. Estas áreas são as seguintes:
multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas; OMC, negociações
comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul; terrorismo; globalização e capitais
voláteis; FMI e política de condicionalidades; Brasil como líder; América do Sul;
Mercosul; Argentina; Europa; relação com os Estados Unidos; ALCA, ademais de dois
últimos tópicos funcionais sobre os instrumentos diplomáticos e as características gerais
das duas políticas externas.
Poderei, eventualmente, ampliar e tornar mais rigoroso, tanto
metodologicamente quanto substantivamente, o presente exercício, que procurou evitar,
tanto quanto possível, julgamentos de valor ou apreciações qualitativas sobre os
impactos internos e externos das duas diplomacias, aqui sumariamente caracterizadas.
Uma análise desse tipo exigiria, porém, um certo recuo histórico e uma investigação
mais acurada sobre o significado e as conseqüências de determinadas iniciativas de
política externa tomadas por cada um dos presidentes, em suas administrações
respectivas. Pelo menos no que se refere ao governo Lula, parece ser ainda muito cedo
para oferecer uma avaliação desse tipo.
51
Comparando duas diplomacias: FHC e Lula em perspectiva
Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002)
Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2004)
Multilateralismo e Conselho de Segurança das Nações Unidas
Multilateralismo moderado;
ênfase no direito internacional mas
aceitação tácita dos “mais iguais”;
relações com outras potências médias;
candidato não-insistente a uma cadeira
permanente no CSNU;
Forte multilateralismo;
soberania e igualdade de todos os países;
alianças com outras potências médias e
economias emergentes;
grande prioridade na conquista de uma
cadeira permanente no CSNU;
OMC, negociações comerciais multilaterais e cooperação Sul-Sul
Participação plena, ativismo moderado;
interdependência econômica e abertura ao
investimento direto estrangeiro;
diálogo mas sem real coordenação com os
países do Sul;
Participação plena, forte ativismo;
soberania econômica nacional e políticas
setoriais de desenvolvimento;
alianças estratégicas (G-20; G3, com
África do Sul e Índia);
Terrorismo
“É preciso reagir com determinação ao
terrorismo, mas ao mesmo tempo
enfrentar, com igual vigor, as causas
profundas e imediatas de conflito, de
instabilidade, de desigualdade. (…) A
barbárie não é somente a covardia do
terrorismo, mas também a intolerância ou
a imposição de políticas unilaterais em
escala planetária.” (30/10/2001)
“A Carta das Nações Unidas reconhece
aos Estados membros o direito de agir em
autodefesa. Isto não está em discussão.
Mas é importante termos consciência de
que o êxito na luta contra o terrorismo não
pode depender apenas da eficácia das
ações de autodefesa ou do uso da força
militar de cada país. (…) Mas o terrorismo
não pode silenciar a agenda da cooperação
e das outras questões de interesse global.”
(9/11/2001)
“Não será militarmente que vamos acabar
com o terrorismo, nem tampouco com o
narcotráfico. Vamos enfrentar isso com
muito mais densidade na hora em que a
gente atacar o problema crucial que é a
pobreza no mundo.” (10/7/2003)
“Existe, hoje, louvável disposição de
adotar formas mais efetivas de combate ao
terrorismo, às armas de destruição em
massa, ao crime organizado. (…) Não
podemos confiar mais na ação militar do
que nas instituições que criamos com a
visão da História e a luz da Razão. (…) O
verdadeiro caminho da paz é o combate
sem tréguas à fome e à miséria, numa
formidável campanha de solidariedade
capaz de unir o planeta ao invés de
aprofundar as divisões e o ódio que
conflagram os povos e semeiam o terror.”
(23/09/2003)
Globalização e capitais voláteis
No começo, um novo “Renascimento”;
sim a Davos, relações cordiais; sequer
cogitado para ir a Porto Alegre;
depois, limitações, devido às assimetrias e
a volatilidade dos capitais;
aceitação implícita do Consenso de
Washington e suas premissas;
No começo, “um novo mundo é possível”;
sim enfático a Porto Alegre, um sonoro
NÃO a Davos;
depois, buscando um diálogo realista com
os dois mundos;
recusa explícita do Consenso de
Washington (consenso de Buenos Aires);
52
sustentabilidade econômica;
preferência pela sustentabilidade social;
FMI e condicionalidades
Abordagem não-ideológica;
relações cooperativas durante as
turbulências financeiras (três pacotes de
apoio preventivo: 1998, 2001 e 2002);
aceitação, enquanto for necessário;
PT opôs-se a qualquer acordo, no começo;
depois, aceitação relutante e desconfiança
silenciosa (novo acordo em 2003);
tolerar, apenas e tão somente enquanto for
absolutamente indispensável;
Brasil como líder
Visto como resultado da preeminência
econômica e limitado à região;
modulação em função das percepções dos
parceiros regionais (Argentina);
consciência dos limites estratégicos e das
capacidades econômicas do Brasil;
cooperação com a África;
Um dos grandes objetivos políticos, não
limitado apenas à região;
pode ser conquistado com o ativismo
diplomático e as alianças estratégicas;
não existem limitações aparentes em
função de fatores “reais”;
solidariedade com a África;
América do Sul
Relações estratégicas, ênfase retórica, mas
poucas iniciativas reais durante o primeiro
mandato (1995-1998);
acordo comercial Mercosul-CAN
bloqueado; conceito de Alcsa esquecido;
Encontro de Brasília dos chefes de Estado
no segundo mandato (setembro 2000);
integração física (IIRSA-BID);
Relações estratégicas, iniciativas políticas
para traduzir a retórica em realidade;
Viagens a, e visitas bilaterais de todos os
países da região (menos Uruguai);
retomada das negociações regionais de
comércio: acordo CAN-Mercosul, mas
dificuldades para a área de livre comércio;
integração física (bilateral, BNDES);
Mercosul
Uma das mais importantes prioridades da
diplomacia brasileira;
base possível para a integração econômica
com o mundo e para o fortalecimento das
relações econômicas na região;
temas econômicos e comerciais têm
prioridade sobre os demais;
A prioridade mais importante da
diplomacia brasileira;
importância estratégica e uma base para a
união política da América do Sul, livre de
influências externas e de limitações
hegemônicas (fortaleza);
o social e o político têm a precedência;
Argentina
Um parceiro estratégico;
coordenação política e econômica dentro
de certos limites;
pressupostos e posições cautelosas sobre a
moeda única do Mercosul;
Mercosul intergovernamental;
O parceiro estratégico;
consultas frequentes sobre os mais
diversos assuntos, buscando posições
comuns (na ALCA, por exemplo);
meta reafirmada da moeda comum e de
uma união política no Mercosul;
Europa
Laços históricos, o mais importante
parceiro, mas postura realista sobre a
abertura comercial;
não considerada como alavanca estratégica
nas relações com os EUA;
Parceiro importante e papel compensatório
nas alianças estratégicas contra o
unilateralismo (EUA);
acordo comercial Mercosul-UE visto
como mais benéfico do que a ALCA;
53
Relação com os Estados Unidos
Definida como essencial, cooperativa;
desacordos setoriais, a maior parte
limitada a questões de comércio;
ênfase política na cooperação bilateral;
reciprocidade moderada;
Importante, mas não considerada
essencial;
várias áreas de desacordos, tanto políticos
quanto econômicos;
ênfase política na multipolaridade;
reciprocidade estrita;
ALCA
Sem muito entusiasmo a respeito, mas sem
oposição real ao projeto;
ALCA poderia ser uma oportunidade
concreta para a modernização da
economia;
barganha realista sobre os protecionismos
setoriais dos EUA (subsídios agrícolas) e
aceitação limitada dos novos temas (regras
e acesso);
PT se opunha, no começo;
Lula candidato falou de “anexação”;
aceitação relutante, uma vez no poder, e
dura barganha na mesa de negociação;
pedidos de compensações para corrigir
assimetrias estruturais;
acordo limitado nas regras, na ausência de
um real acesso a mercados (setor
agrícola);
Instrumentos diplomáticos
Itamaraty como foco principal;
diplomacia presidencial explícita;
prioridades econômicas antes de tudo;
aceitar o mundo como ele é;
talvez uma Tobin tax para diminuir a
volatilidade e promover a cooperação;
diálogo com o G-7 e uma abordagem da
agenda internacional do tipo da OCDE;
Itamaraty e assessores presidenciais;
diplomacia presidencial implícita;
prioridades políticas em primeiro lugar;
mudar o mundo (Fome Zero Mundial);
sim à Tobin tax e outros instrumentos
distributivos para lutar contra as injustiças;
diálogo com o G-8, coordenação com o
G-15 e promoção de alianças estratégicas;
Características gerais
Integração ao mundo globalizado; desejo
de uma “globalização com face humana”;
abordagem tradicional da diplomacia;
diplomacia tem um papel acessório no
desenvolvimento;
diálogo com outros líderes mundiais,
buscando um melhor ambiente
cooperativo para o desenvolvimento.
Participação num mundo globalizado com
preservação da soberania nacional;
política externa criativa (“ativa e altiva”);
diplomacia tem um papel substantivo na
conformação do “projeto nacional”;
liderança regional e internacional para
mudar substantivamente e trazer justiça ao
mundo (“nova geografia comercial”).
Concepção e seleção de temas: Paulo Roberto de Almeida (21.02. e 13.03.2004)
1227. “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”,
Brasília 14 de março de 2004, 5 p. Reestruturação e ampliação do trabalho n. 1213,
fazendo uma comparação preliminar das diplomacias respectivas dos dois presidentes
em várias temas multilaterais e regionais. Publicado no Meridiano 47 (n. 42-43, jan/fev.
2004, p. 11-14; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_42_43.pdf); na Revista Achegas (Rio de Janeiro: n. 17, 12 mai.
2004; ISSN 1677-8855; http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm).
54
Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 442 e n. 470.
55
5. Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica
Numa apresentação feita na quarta conferência de instituições para o estudo
científico das relações internacionais, realizada em Copenhagen, em junho de 1931, o já
renomado historiador britânico Arnold Toynbee relacionava o que lhe pareciam ser
sucessos e fracassos da diplomacia multilateral e das relações mantidas no plano
internacional pelas grandes potências, desde que a paz tinha sido restabelecida, doze
anos antes, na sequência da mais devastadora das guerras que a humanidade tinha
conhecido até então. Entre os primeiros ele relacionava a própria criação da Liga das
Nações, o tratado de Paris de renúncia da guerra como instrumento de política nacional
(também conhecido como pacto Briand-Kellog), a Corte Internacional de Justiça e a
Conferência Mundial do Desarmamento, que deveria começar o seu trabalho alguns
meses mais à frente. Dentre os fracassos, ele relacionava: a recusa do Senado americano
de ratificar o ato de criação da Liga, a rejeição desta última pelo governo soviético, as
dificuldades para a plena incorporação da Alemanha ao cenário estratégico do pós-
guerra e o duplo insucesso do Protocolo de Genebra para a solução pacífica das
controvérsias internacionais e da conferência tripartite (EUA-Reino Unido-Japão) para a
redução dos armamentos navais (Arnold J. Toynbee, “World Sovereignty and World
Culture: the trend of international affairs since the War”, Pacif Affairs, vol. IV, n. 9,
setembro 1931, p. 753-778).
Toynbee registrava os grandes progressos feitos no plano econômico, mas
lamentava os atrasos no âmbito da política, cuja característica mais importante era para
ele o ‘estado de anarquia’, não muito diferente da situação em que se encontrava o
Ocidente, no final da Idade Média. Um julgamento contemporâneo talvez não chegasse
a conclusões muito distintas das de Toynbee, quase oitenta anos depois daquele seu
diagnóstico otimista quanto à globalização – que ele chamava de “unificação econômica
do mundo” – e das perspectivas relativamente pessimistas que ele denotava no plano da
política internacional. Pode-se, em todo caso, retomar sua metodologia para analisar os
sucessos e os fracassos da diplomacia brasileira nos planos regional, hemisférico e
multilateral, com base numa visão de longo prazo.
Quais seriam, numa visão sintética, os grandes sucessos e os possíveis fracassos
da diplomacia brasileira ao longo de seus quase dois séculos de existência continuada?
Pode-se dizer, inclusive, que ela tem início, no plano exclusivamente locacional, em
56
1808, pois que seus primeiros passos serão dados no bojo da secular diplomacia
lusitana, que então passa a formular sua agenda e a defender os interesses da Coroa
portuguesa a partir do território brasileiro. A primeira diplomacia brasileira herda várias
boas qualidades da diplomacia portuguesa, a começar pela memória de seus excelentes
arquivos, a habilidade em defender os interesses nacionais num quadro internacional
dominado por grandes potências e o cuidado em selecionar as melhores capacidades
para a representar no exterior.
Justamente, no momento da consolidação da independência, pode-se dizer que a
diplomacia brasileira alcança seus primeiros sucessos ao obter o reconhecimento de
várias nações importantes à época, a começar pelos Estados Unidos, ainda que parte do
resultado tenha sido devido a compromissos e assunção de obrigações (pagamento a D.
João VI, incorporação do empréstimo português feito pela Grã-Bretanha e a herança dos
tratados desiguais concluídos entre esta e Portugal, que amarraram o Brasil até 1844,
pelo menos). Mais para o final do século 19 e o início do seguinte, o Barão do Rio
Branco concluiria o trabalho de consolidação do território brasileiro, iniciado ainda na
era colonial, com a participação de brilhantes diplomatas brasileiros como Alexandre de
Gusmão, ao negociar diretamente ou ao conduzir a defesa dos interesses nacionais em
processos de arbitragem, os limites fronteiriços ainda pendentes com os vizinhos
imediatos. Precavido, ele chegou inclusive a traçar os princípios pelos quais se
estabeleceriam as fronteiras com o Equador, se este país não tivesse tido suas pretensões
amazônicas diminuídas pela Colômbia e pelo Peru.
Ainda no século 19, um dos nossos maiores contenciosos diplomáticos foi a
questão do tráfico escravo, a partir das pressões inglesas para o seu término e a recusa
obstinada dos escravistas brasileiros em atender essas demandas (já garantidas num
acordo bilateral de Portugal com a Grã-Bretanha, no quadro do Congresso de Viena, e
novamente aceitas pelo Brasil no momento da independência, prometido o seu final
para 1831, ‘para inglês ver’). José Bonifácio tinha sido derrotado em suas propostas
constituintes (1823) para substituir o tráfico pela imigração de agricultores europeus,
num prelúdio para a abolição da escravidão; mas desde o início dos anos 1840 a
diplomacia brasileira teve de enfrentar, sem sucesso, a arrogância inglesa, que
desrespeitava nossa soberania sobre o mar territorial e impunha humilhações ao Brasil
que os ingleses não tinham coragem de repetir nas relações com os Estados Unidos.
Pode-se registrar que nossa imagem de ‘país escravocrata’, constatada in loco por
Darwin, alimenta desde um século e meio os boletins da mais antiga ONG do mundo, a
57
Anti-Slavery Society, com quem interagiu Joaquim Nabuco, outro derrotado na mesma
questão, posto que pretendia não a simples abolição, mas também a reforma agrária e a
educação dos negros libertos. Nossa diplomacia conheceu momentos não exatamente
gloriosos, ao ter de defender, durante anos a fio, o tráfico e a escravidão nos foros
internacionais.
As relações regionais passaram por momentos difíceis, desde o início do século
19 e no decorrer de todo o século 20: pode-se dizer que nossa diplomacia foi bem
sucedida ao evitar o isolamento de uma monarquia de estilo e raízes europeias num
continente republicano e quase todo hispânico. Mas em algumas ocasiões – lutas contra
os caudilhos Rosas, da Argentina, e Solano Lopez, do Paraguai – a diplomacia bastante
competente do Império precisou recorrer à força militar para apoiar as teses brasileiras
sobre o equilíbrio de poderes nos dois lados do Prata. Na Amazônia, a situação era
inversa, posto que o rio corria dentro do território nacional. Ainda assim, foi possível
desarmar pretensões estrangeiras quanto à internacionalização de sua navegabilidade,
tese que a diplomacia defendia no Prata. De modo geral, a diplomacia foi bem sucedida
no relacionamento com os vizinhos e no trato bilateral com o gigante hemisférico. Mas
o desejo sempre implícito de uma ‘relação especial’ com o império do Norte, com vistas
a reproduzir no continente meridional a sua preeminência setentrional – aliás, em todo o
Caribe e até o Panamá – nunca foi aceita em tese e sequer implementada na prática.
Essa sensação de copo meio cheio ou meio vazio continua a prevalecer em
relação aos projetos de integração regional: as concepções mais flexíveis da diplomacia
brasileira enfrentam resistências de alguns vizinhos – que temem o poderio da indústria
brasileira – ou então são confrontadas a propostas utópicas de outros líderes, de cunho
essencialmente político, cujo único resultado é a substituição do pragmatismo
comercialista do Brasil por modelos irrealizáveis no plano da prática. No eixo vertical, a
relutância em aceitar um acordo de comércio de âmbito hemisférico, supostamente
porque as empresas do império seriam mais competitivas, ou porque este não retrocede
substancialmente em seu protecionismo e subvencionismo agrícolas, termina por impor
um fracasso diplomático, seja porque os demais vizinhos aceitam acordos de livre
comércio com o mesmo império, seja porque a manutenção do status quo nem contribui
para ganhos de competitividade das empresas brasileiras, nem salvaguarda os interesses
destas últimas nos mercados dos vizinhos sul-americanos.
Por fim, o velho sonho das elites brasileiras – especialmente diplomáticas e
militares – de ver o Brasil aceder ao ‘círculo íntimo’ do poder mundial, seja pela
58
incorporação negociada ao clube dos ‘mais iguais’, seja pela detenção do poder nuclear,
nunca pode ser concretizada, por razões basicamente internas, não por deficiências de
ordem propriamente diplomática. A postura do Brasil sempre foi cooperativa, seja ao
honrar seus compromissos financeiros internacionais, seja ao favorecer soluções
negociadas para os conflitos entre Estados. Mas esse reconhecimento nunca bastou para
converter o Brasil num sócio confiável aos olhos das grandes potências da Liga das
Nações e, atualmente, do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ou seja, não basta
a promoção do multilateralismo, o respeito ao direito internacional, o pacifismo inerente
à nossa diplomacia para elevar o status do Brasil no plano mundial, e isso não tem a ver
apenas com nossa postura ambígua no que concerne o protocolo adicional ao Tratado de
Não-Proliferação Nuclear: o que as grandes potências realmente exibem, afinal de
contas, é a disposição de coadjuvar sua ação diplomática com a capacidade efetiva de
projetar poder real. Para isso são requeridos outros atributos, mas sua aquisição não se
dá exclusivamente pela via diplomática.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais e autor do
livro O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (Brasília: LGE, 2006).
2005. “Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica”, Brasília, 17
maio 2009, 4 p. Digressões históricas sobre conquistas e frustrações da diplomacia
brasileira ao longo de dois séculos. Publicado na Meridiano 47, Boletim de Análise
de Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n.
113, Dezembro/2009, p. 3-5; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Ensaio incorporado
ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla
Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 944.
59
Segunda Parte
Economia internacional, globalização
61
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo
prazo
A economia mundial, tal como a conhecemos atualmente, é um “arquipélago”
em construção desde o século 16, pelo menos e, ainda hoje, ela não constitui um sistema
perfeitamente unificado, sequer homogêneo, a despeito de toda a retórica em torno da
globalização. Talvez, um dia, ela venha a ser unificada num mesmo universo de redes
comerciais, financeiras e de recursos humanos circulando sem restrições sobre
fronteiras e controles alfandegários. Por enquanto, contudo, trata-se de uma colcha de
retalhos, reunindo pedaços hoje essencialmente capitalistas, é verdade, mas ainda
dotados de características nacionais distintas em seu colorido diversificado. Ela poderá
caminhar progressivamente para um conjunto mais homogêneo de sistemas econômicos
nacionais, mas isso depende dos progressos da liberalização comercial, financeira e
“humana”, o que ainda está longe de ser garantido.
Vejamos esse processo com lentes de longo alcance, começando na era dos
descobrimentos. Mesmo a partir da unificação geográfica conduzida por Colombo
(1492), Vasco da Gama (1498) e Fernão de Magalhães (1521), a economia mundial do
início da era moderna não era, em absoluto, universal. Nessa primeira onda de
globalização, de caráter mercantil, tratava-se, mais exatamente, de um arquipélago de
economias centrais, predominantemente de origem europeia, vinculadas a suas
respectivas periferias nas novas terras descobertas, mediante um sistema usualmente
conhecido como ‘exclusivo colonial’. Os demais centros regionais – o ‘Império do
Meio’ (China), o império Mogul, na Índia, o mundo muçulmano (que começava a ser
unificado sob o jugo otomano) e outros ‘blocos’ sub-regionais, na Eurásia ou nas
Américas – não tinham realmente condições de disputar qualquer hegemonia econômica
mundial, como diriam os marxistas.
Até o final do século 18, China e Índia constituíam duas grandes economias,
produzindo bens valorizados nos mercados ocidentais, mas dotadas de instituições
pouco adaptadas aos desafios da nova economia industrial, caracterizada pelo que se
poderia chamar, ainda no jargão marxista, de um ‘modo inventivo de produção’. Foi
precisamente a partir da revolução industrial na Inglaterra, nessa mesma época, que tem
início a diferenciação dos centros econômicos mundiais, processo que os historiadores
econômicos chamam de ‘grande divergência’, ou seja, a aceleração da transformação
62
tecnológica no Ocidente, seguida da dominação absoluta das potências europeias sobre
o resto do mundo (destinada a durar cinco séculos, talvez até hoje).
Essa segunda grande onda da globalização, de natureza industrial, conforma o
que se poderia chamar, pela primeira vez, de economia mundial, uma rede integrada de
centros produtores de matérias primas, de um lado, servidas pelos centros financeiros
europeus – com a libra inglesa e os bancos britânicos em seu núcleo – e as oficinas
manufatureiras, de outro, dotadas das novas tecnologias industriais de produção em
massa. As economias nacionais, até então pouco diferenciadas entre si – pois que
uniformemente e predominantemente de base agrícola ou mercantil – começam a exibir
diferenças estruturais, a partir de níveis de produtividade bem mais elevados nos
sistemas industriais. A defasagem de renda começa sua escalada para índices sempre
crescentes, entre o centro e a periferia, num processo que se desenvolveria durante
praticamente dois séculos, com um recrudescimento ainda maior durante a maior parte
do século 20, para diminuir apenas a partir da terceira onda de globalização, a partir do
último quinto desse século.
No intervalo, a economia mundial capitalista seria desafiada por duas ameaças
muito diferentes, entre si, mas concordantes em sua ação desagregadora de um sistema
verdadeiramente unificado de relações mercantis e financeiras. A partir da primeira
guerra mundial, as crises recorrentes dos centros capitalistas desenvolvidos no entre
guerras (em especial a de 1929 e a depressão que se seguiu) e a implantação de sistemas
coletivistas (de natureza soviética, desde 1917, e os fascismos, pouco depois), com suas
experiências estatizantes e antiliberais, representaram uma ‘breve’ interrupção de
setenta anos no processo de globalização. No imediato pós-segunda guerra mundial, as
muitas experiências de nacionalizações e de estatizações no Ocidente capitalista, com
seu cortejo de práticas intrusivas, dirigistas e planos de ‘desenvolvimento’ (com muito
planejamento estatal centralizado, mesmo no capitalismo) representaram, igualmente,
um retrocesso na reunificação de um sistema de mercado verdadeiramente mundial,
desde então colocado sob a égide dos dois irmãos de Bretton Woods (o FMI e o Banco
Mundial) e do GATT (OMC, em 1995).
Foi somente a partir das reformas econômicas ‘neoliberais’ iniciadas na China a
partir dos anos 1980 e da implosão e quase completo desaparecimento dos regimes
socialistas, entre 1989 e 1991, que o processo de reunificação da economia mundial é
retomado, no bojo da terceira onda de globalização capitalista, desta vez dominada pela
sua vertente financeira (mas que inclui também os investimentos diretos). O fim do
63
socialismo representou pouco em termos de concorrência manufatureira – já que o
socialismo era um medíocre produtos de bens industrializados – e menos ainda em
termos de fluxos financeiros e tecnológicos – onde os países socialistas eram ainda mais
marginais, senão irrelevantes – mas significou um impacto decisivo em termos de
mercados e, sobretudo, de mão-de-obra (com um destaque absoluto para a China).
A fase atual, se ainda não pode ser identificada com um novo processo de
‘convergência’ da economia mundial, caracteriza-se, pelo menos, pela diminuição da
divergência entre as regiões – com notáveis exceções, como nos casos da África, do
Oriente Médio e em grande medida da América Latina – e pelo rápido catch-up
experimentado por alguns emergentes dinâmicos. No curso dos últimos vinte anos de
globalização, a China e a Índia retiraram centenas de milhões de pessoas de uma miséria
abjeta, colocando-as numa situação de pobreza moderada, justamente em função das
reformas econômicas empreendidas e de sua inserção na globalização. Esse processo
deve continuar, pelo menos naqueles países que decidiram substituir antigas políticas
protecionistas e estatizantes por uma abertura ao comércio internacional e aos
investimentos estrangeiros diretos.
O lado financeiro permanece ainda a dimensão problemática da globalização,
não porque a liberdade de circulação de capitais seria, em si, desestabilizadora das
economias nacionais, mas porque os governos ainda insistem em praticar políticas
monetárias e cambiais inconsistentes com os novos dados da economia mundial. O
monopólio dos bancos centrais na emissão de moedas-papel, na fixação das taxas de
juros (sem correspondência efetiva com o equilíbrio real dos mercados de capitais) e seu
papel na manutenção de regimes cambiais irrealistas e desajustados explica muito das
crises financeiras ocorridas na segunda metade dos anos 1990 e em 2007-2009. As
bolhas que se formam não são o resultado de ‘forças cegas do mercado’ – como
políticos inescrupulosos e economistas pretensamente keynesianos proclamam – mas
sim a conseqüência das manipulações dos governos em setores sensíveis da economia
real. A possibilidade de maiores progressos em direção à convergência econômica
mundial depende, assim, tanto da continuidade da abertura dos países ao processo de
globalização quanto da habilidade dos governos em manterem soberania monetária e
cambial no novo contexto criado pela unificação paulatina dos mercados de capitais.
Não é provável que essa convergência se dê rapidamente, tendo em vista a
resistência de muitos governos à abertura comercial e financeira e sua tendência a
continuar manipulando taxas de juros e regimes cambiais, mas é previsível que a
64
globalização continue avançando naqueles países e regiões propensos a aceitarem as
novas regras de mercado. Independentemente do que digam aqueles que condenam as
novas políticas ‘neoliberais’, é um fato que os países que mais progressos fizeram no
plano do crescimento econômico e da prosperidade de seus povos são aqueles que mais
rapidamente souberam integrar-se comercialmente na economia mundial, e dela
puderam aproveitar os efeitos benéficos dos investimentos diretos, que trazem capitais,
know-how e tecnologia. A lição parece ter sido aprendida, mas nem todos souberam
dela retirar os ensinamentos adequados. Esse tempo chegará, um dia...
2124. “Transformações da economia mundial: visão histórica de longo prazo”, Rio de
Janeiro 17 de março de 2010, 4 p. Revisão ampliada do segundo ensaio da série
preparada para o Ordem Livre (trabalho: 2072; publicados: 951), tratando da
evolução da economia mundial e de suas características mais marcantes. Publicado,
sob o título “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, na seção de
Economia do Portal IG (23/03/2010). Republicado sob o título de “Mudanças na
economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo” em Mundorama
(04.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economia-
mundial-perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/),
reproduzido em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-
1219; links: http://meridiano47.info/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundial-
perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/ e
https://docs.google.com/viewer?url=http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/0
7/v11n118.pdf&pli=1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de
Publicados n. 956.
65
7. O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca
inspiração
É realmente curioso o estatuto argumentativo e o arcabouço conceitual do debate
de idéias em torno da globalização no Brasil (se é que existe algum): ao que percebo
pela imprensa, mas também em algumas revistas especializadas, poucos “intelectuais” –
reluto em utilizar esta noção, preferindo-lhe talvez o epíteto mais comum de acadêmicos
– se dispõem a sustentar suas afirmações mediante provas empíricas, dados estatísticos
ou por meio de correlações causais apoiadas em fatos, números ou, simplesmente,
através de uma demonstração ainda que superficial de que os seus dizeres traduzem algo
mais consistente do que palavras vazias, afirmações ocas ou frases simplesmente
carentes de fundamentação histórica. Proponho-me, neste ensaio e nos seguintes,
examinar a situação desse bizarro debate sem contendores bem delimitados e oferecer,
sem pretensões a um esgotamento do problema, algumas linhas explicativas para o que
eu chamei de excesso de transpiração e alguma carência de inspiração (ou, se
quisermos, excesso de teorização de baixa qualidade, acoplado a sérias e imensas
lacunas do mais elementar empirismo).
Tomemos, por exemplo, esta afirmação, retirada de um documento apoiado por
um imenso congraçamento de ativistas antiglobalização, a maior parte dos quais simples
militantes dotados de instrumental metodológico limitado para analisar a globalização,
mas animados por algumas figuras de proa que costumam ser chamadas, obviamente
pela imprensa, de “intelectuais”: segundo um dos documentos de base desse
movimento, por demais conhecido para requerer propaganda gratuita, “os povos do
Terceiro Mundo, assim como os setores pobres e excluídos dos países industrializados,
sofrem os efeitos devastadores da globalização econômica e da ditadura de instituições
internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os governos que servem aos
seus interesses”, isto é, os da “globalização devastadora”.
Compreende-se a violência verbal e o caráter peremptório da argumentação,
ainda que ambos carentes de um real embasamento em dados de fato comprobatórios
dos pretensos “efeitos devastadores” da globalização (sempre apodada de “capitalista”):
afinal de contas, os promotores desse tipo de “documento” ou de movimento “social” –
mais bem retórico, ouso dizer – parecem ser, em sua maior parte, aqueles mesmos
órfãos (ou viúvas) do socialismo ancienne manière, que tiveram de reciclar-se
66
rapidamente ao se verem desprovidos de espaços de manobra condizentes com suas
antigas pretensões à universalidade concreta e uma alegada adequação à “necessidade
histórica”.
De mais difícil compreensão resulta ser o teor de um pronunciamento formal de
uma autoridade sobre a mesma questão, preparado por um serviço que se acreditava
bem treinado para manejar não apenas a língua pátria, mas também os raciocínios
lógicos e, a mais forte razão, a consistência histórica. Senão vejamos: “Se a
globalização é inevitável, isso não significa que devemos nos reconciliar de forma
fatalista a seus efeitos perversos. Não precisamos aceitar que o preço da modernização,
do ganho em competitividade e eficiência, é a marginalização, o empobrecimento e a
desesperança daqueles que ficaram para trás. Tornar a globalização mais inclusiva e
equitativa é um desafio que deve unir a todos nós.” Antes de examinarmos, contudo,
estas três curiosas frases, cheias de subentendidos e de significados ambíguos, voltemos
à afirmação mais definitiva daquele movimento social que encarna, como nenhum
outro, o desejo de ver substituída a globalização capitalista por um outro mundo (e uma
outra América, um outro Brasil, um outro Piauí etc., .etc., etc.) pretensamente possíveis
(mas aparentemente inalcançáveis).
O que dizem eles, exatamente?: que os “povos do Terceiro Mundo” (um imenso
grupo de alguns bilhões de habitantes), “assim como os setores pobres e excluídos dos
países industrializados” (uma categoria mais tangível, formada por apenas alguns
milhões de pessoas), “sofrem os efeitos devastadores da globalização econômica e da
ditadura de instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os
governos que servem aos seus interesses”. Seria isto verdade? Se o for, seria esta triste
experiência compartilhada por todos eles, conjuntamente, e ocorreu ela durante todo o
tempo em que vem se desenvolvendo a atual onda de globalização capitalista (grosso
modo, as duas últimas décadas de “neoliberalismo”, como eles mesmos gostam de
caracterizar)?
Para ajudar-nos a dar uma resposta tentativa a essa dúvida cruel sobre a maléfica
globalização capitalista dispomos do recente estudo sobre esse fenômeno “devastador”,
ainda que realizado por esse órgão “ditatorial” que é o Banco Mundial: o relatório
World Development Indicators (WDI) 2004, disponível no link:
http://www.worldbank.org/data/wdi2004/. Pode-se, obviamente, como talvez façam os
promotores do “outro mundo”, duvidar da fiabilidade estatística de um conjunto de 800
indicadores econômicos e sociais, organizados em 87 tabelas, divididas em seis seções
67
(visão global, população, meio ambiente, economia, Estados e mercados e vínculos
globais), que cobrem 152 economias e 14 grupos de países, e de um conjunto adicional
de indicadores básicos para outras 55 economias. Se aceitarmos, contudo, como fazem
muitos economistas e estudiosos dos problemas do desenvolvimento e a quase
totalidade dos governos dos países membros, que tais números apresentam
confiabilidade razoável, somos obrigados, pelo menos, a considerar os argumentos
desse relatório, que vêm apoiados nesses números, dados, estatísticas e indicadores
diversos. E o que dizem os números do Banco Mundial sobre os efeitos “devastadores”
da globalização?
Que esse processo perversamente capitalista retirou, nos vinte anos que vão de
1981 a 2001, mais de 400 milhões de pessoas da miséria absoluta. Com efeito, os dados
revelam uma queda no número absoluto de pessoas que vivem com menos de um dólar
por dia nos países em desenvolvimento, de 1,5 bilhão em 1981 para 1,1 bilhão em 2001.
A cifra de um dólar por dia denota o limite da pobreza absoluta. Obviamente, hão de
retorquir os antiglobalizadores, essa situação aparentemente positiva esconde imensas
desigualdades entre os países. Na América Latina, por exemplo, como revela de fato o
relatório, a pobreza só diminuiu marginalmente devido ao baixo crescimento das
economias na década de 1990 e a maior parte daqueles 400 milhões de antigos
miseráveis e novos pobres encontra-se quase que exclusivamente na China e na Índia.
Quanto ao caráter “ditatorial” dos órgãos vilipendiados pelos antiglobalizadores,
soa pelo menos estranho que países tão ciosos de sua soberania como a China e a Índia
estejam entre seus membros mais ativos, o primeiro, aliás, depois de muito pouco tempo
(grosso modo, os últimos vinte anos de globalização capitalista para as instituições de
Bretton Woods e menos de cinco anos para a OMC). Quais foram os devastadores
efeitos causados nesses dois países, ou no próprio Brasil, para ficarmos com um país
mais perto de nós, pela presença nas, e por meio de operações com essas entidades
“ditatoriais”? Para o Brasil, sabemos, por exemplo, que o FMI realizou três operações
de apoio financeiro preventivo entre 1998 e 2003, pelos valores respectivos de 41,5
bilhões (com a participação de vinte outros países membros), de 30 bilhões (inédito na
história do FMI) e de 15 bilhões de dólares, este último renovado pelo atual governo
adepto da soberania econômica das nações em desenvolvimento. Quanto ao Banco
Mundial e ao BID, eles mantêm uma das maiores carteiras de negócios de todo o mundo
em projetos existentes no Brasil (nos três níveis da federação), sendo os montantes
apenas inferiores àqueles que o BNDES empresta anualmente aos próprios agentes
68
econômicos nacionais. Que ditadura mais benévola, devem dizer prefeitos,
governadores e ministros.
Reduzida assim à total inconsistência intrínseca e extrínseca a primeira frase
pinçada no anedotário do “altermundialismo” tupiniquim, vejamos agora a segunda
frase selecionada para ilustrar o nosso debate unilateral sobre a antiglobalização. O que
poderia querer dizer “inevitabilidade” da globalização, ou ainda se “reconciliar de
forma fatalista” com “seus efeitos perversos”? Que a globalização não apresenta nada
de inevitável está mais do que provado pela sua triste história no decorrer do século XX,
quando ela se viu interrompida por aproximadamente setenta anos no país mais vasto do
mundo e por mais meio século em uma ampla gama de outros países, cujo soma, dizia-
se com um certo sorriso nos lábios, equivalia a mais de dois terços das terras emersas –
mas havia também socialismo nos mares – e um volume equivalente de população.
Pouco importa que a soma global dos produtos brutos desses países “socialistas” fosse
ridiculamente pequena quando comparada à produção total dos países capitalistas –
menores em território e inferiores em população –, e ainda absolutamente marginal no
computo global dos intercâmbios globais (isto é, fluxos de comércio, da capitais, de
tecnologia). O fato é que o glorioso socialismo havia interrompido a marcha triunfal e
inevitável da globalização capitalista, como ingenuamente acreditavam Marx e Engels
desde 1848. Que ela ainda seja evitável, isto está mais do que provado pelos exemplos
exuberantes de Cuba e da Coréia do Norte, ainda hoje infensos aos cantos e ao charme
pouco discreto das sereias do capital.
Quanto aos seus pretensos “efeitos perversos”, eles são mais proclamados do
que verdadeiramente provados, limitando-se, provavelmente, ao aprofundamento e
extensão das desigualdades de renda (dentro e entre os países), ao recrudescimento do
desemprego tecnológico e à preeminência nefasta da “financeirização” dos circuitos
produtivos. Ou então, como revelado ainda no discurso por nós selecionado, pela
contrapartida dos ganhos em “competitividade e eficiência”, que seria representada pela
“marginalização”, pelo “empobrecimento” e pela “desesperança daqueles que ficaram
para trás”.
Antes de debater se existem provas materiais, empiricamente verificáveis, para
tais efeitos nefastos, certamente lamentáveis a qualquer título, temos de registrar a
inconsistência lógica revelada pela expressão “daqueles que ficaram para trás”. Ora, se
eles ficaram para trás, não se pode atribuir à globalização efeitos que decorrer de sua
ausência, pois que, como constatado pelo Banco Mundial, a inserção na globalização,
69
foi capaz de retirar da “marginalização”, do “empobrecimento” e da “desesperança”
centenas de milhões de chineses e de indianos, que nela encontraram efeitos menos
perversos do que aqueles proclamados pelos antiglobalizadores.
Que a globalização precisa ser mais inclusiva e equitativa, disto não deve restar
dúvidas ao mais cético dos economistas, mas para que ela exerça qualquer efeito nesse
sentido seria preciso, antes de mais nada, que ela pudesse encobrir, englobar (com
perdão pela tautologia) e engolir (menos polido, certamente) um número bem maior de
países do que ela conseguiu até hoje, em especial na América Latina e em quase toda a
África e Oriente Médio. Como dito ainda naquele discurso, trata-se de um “desafio que
deve unir a todos nós.” Só ficarão de fora desse movimento universalista, os irredutíveis
antiglobalizadores de sempre, como bons reacionários que são. Mas, estes não têm nada
mais a perder senão a inocência infantil dos mitos que eles continuam a cultivar, contra
todas as evidências materiais que o mundo coloca diante dos seus olhos. Como
entretanto sabem todos aqueles que conhecem um mínimo de psicologia de gabinete, os
grilhões mentais são ainda mais difíceis de se desfazerem do que velhas paranoias
pacientemente construídas ao longo de anos ou décadas de automistificação e
autoengano.
1252. “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”,
Brasília, 27 de abril de 2004, 5 p. Publicado no Meridiano 47 (Brasília: ISSSN 1518-
1219, n. 44-45, março/abril 2004, p. 13-16; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_44-
45.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 451.
70
8. Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?
A proposta de introdução de uma taxa específica sobre os movimentos
internacionais de capital de curto prazo (também comumente chamada de Tobin Tax)
vem sendo debatida com alguma intensidade (e pouca clareza) no período recente, desta
vez a propósito da possível constituição de um fundo mundial para combater a fome a
pobreza. O assunto não é novo e o presidente Fernando Henrique Cardoso – a meu ver
equivocadamente – tinha se referido favoravelmente à sua introdução em diversos
momentos das turbulências financeiras do final dos anos 90 e do início da presente
década.
Naquela ocasião, os propósitos presumidos dessa nova taxa – intensamente
promovida como solução mágica aos problemas da globalização financeira pelos
chamados altermundialistas da ATTAC francesa, cuja sigla bizarra significa
“Associação pela Tobin Tax e em Apoio aos Cidadãos” – eram os de diminuir a
instabilidade dos mercados financeiros e amealhar recursos adicionais para fins de
desenvolvimento dos países mais pobres. Desse ponto de vista, ela aparecia como
inatacável, já que poucos ousariam contestar tão nobres ideais.
Os economistas mais sensatos, a começar pelo próprio James Tobin (quando
ainda era vivo), emitiam sinceras dúvidas sobre sua praticabilidade, nas condições
concretas da globalização financeira. O prêmio Nobel de economia acusava diretamente
os promotores da ATTAC de terem deliberadamente deformado o sentido de sua
proposta original, que visava tão somente combater aplicações cambiais especulativas
no imediato seguimento do fim do regime de taxas fixas de Bretton Woods, entre 1971
e 1973. Muitos outros economistas questionavam, e continuam a questionar, a
operacionalização de uma taxa desse tipo, com base em argumentos de ordem prática: a
intensidade, a diversidade e o ritmo veloz dos muitos fluxos de capitais que vão de um
lado a outro do planeta, para fins tão diferentes como aplicações em bolsa,
investimentos diretos, pagamento de fatores e transferências unilaterais (como podem
ser os dons e as remessas de imigrantes).
Representantes da ATTAC chegam a reconhecer essa dificuldade, mas ainda
argumentam quanto ao caráter útil de uma taxação desse tipo, que poderia
complementar os fluxos de ajuda ao desenvolvimento para países mais pobres.
71
Independentemente, porém, de seus objetivos meritórios e sem procurar, agora, resolver
definitivamente o problema de sua operacionalização, uma outra questão mais
importante se coloca do ponto de vista do Brasil: o interesse do próprio Brasil em ver
introduzida uma taxa desse tipo, tendo em vista seu perfil de “dependente financeiro”,
suas necessidades de financiamento externo e a administração ulterior dos recursos
amealhados com tal contribuição.
Com efeito, antes de procurar saber se a Tobin Tax pode ser colocada em prática
e se os objetivos esperados pelos promotores dessa idéia serão ou não atingidos pela
metodologia proposta, seria preciso determinar, a partir de uma visão nacional – que me
cabe, antes de mais nada, como cidadão brasileiro –, se a medida invocada atende ou
não aos interesses do Brasil. Meu argumento é pela negativa, mas vamos examinar os
vários aspectos do problema para tentar chegar a algumas conclusões.
O primeiro problema é o da instabilidade dos mercados financeiros, algo que
parece assustar os países que eventualmente necessitem de fluxos contínuos de capitais
“voláteis”. Os mercados, por definição, sempre são instáveis, e os capitais puramente
financeiros sempre são voláteis, ainda que, obviamente, flutuações e movimentos
erráticos ocorrem com maior intensidade nos momentos de crise. As crises são,
entretanto, inerentes aos mercados livres, e apenas uma boa gestão dos chamados
“fundamentais” pode neutralizar ou diminuir os efeitos mais nefastos para as economias
neles integradas.
O que representa a introdução de uma taxa sobre determinados movimentos de
capital? A diminuição da turbulência – que me parece “estrutural” – ou tão
simplesmente a imposição de custo adicional sobre esses fluxos? Esta segunda hipótese
é a mais provável e o mercado continuará tão turbulento quanto antes, apenas que
funcionado, com essa taxa, em um patamar ligeiramente superior de “custos de
transação”.
A Tobin Tax não pode obviamente resolver esse problema estrutural, ainda que
se argumente que ela apenas visa colocar “areia na engrenagem” da especulação
cambial (seu objetivo original quando James Tobin a sugeriu, no momento da derrocada
do sistema de Bretton Woods, de extrema volatilidade das taxas cambiais). A
dificuldade óbvia é a de distinguir as transações puramente “especulativas” das
transferências legítimas para pagamentos de fatores ou para compra de ativos de
maturação mais longa. Na impossibilidade de fazê-lo (uma vez que a integração
financeira internacional significa a simplificação dos procedimentos aplicados aos
72
fluxos transfronteiriços), a solução prática é a taxação de todas as transações, na
suposição de que os capitais movimentados toda a semana terão um retorno
sensivelmente menor do que as aplicações de maior prazo e os investimentos diretos.
Ou seja, essa CPMF universal acaba tendo de ser aplicada a todos os fluxos para
tentar diminuir a volatilidade inerente a apenas uma parte deles. Para o Brasil, portanto,
enquanto receptor líquido de capitais de todos os tipos, as perspectivas são a de ter de
pagar um pouco mais pela importação do mesmo volume de capital. Não me parece
muito brilhante como solução a um problema que me parece basicamente de ordem
interna: com efeito, a volatilidade é de origem propriamente interna, e não externa,
sendo muito mais devida ao caráter errático das políticas econômicas nacionais, do que
ao ânimo volátil do capital financeiro.
A praticabilidade e eficiência da CPMF brasileira é, como sabemos, total: ela é
inescapável, insonegável, fácil e rápida. Dispondo do controle legal sobre o sistema
bancário, o Estado brasileiro vai buscá-la diretamente no bolso do cidadão, quando este
faz uma simples transação bancária. Ora, no sistema semianárquico de soberanias
estatais que caracteriza o mundo, o controle territorial absoluto se afigura impossível,
daí porque os economistas apontem a impraticabilidade da Tobin Tax. O dinheiro, aliás,
nem precisa sair fisicamente da praça financeira que lhe dá origem para dirigir-se a
outra. Basta que a transação seja registrada e operada a partir de um centro off-shore, e
que os dois agentes nele tenham conta, para que o “longo braço” dessa CPMF universal
se revele simplesmente inoperante e ineficaz. Como não existe uma entidade bancária
internacional “de última instância”, é de se supor que o problema da jurisdição
apresente um obstáculo praticamente incontornável a uma Tobin Tax eficiente e
operante. Pretender taxar apenas as dez principais praças financeiras internacionais,
como alguns sugeriram, é não apenas inócuo como inaceitável do ponto de vista dos
dirigentes desses países.
Vejamos, porém, seu outro objetivo presumido, do qual ela retira sua
legitimidade: levar o dinheiro dos mais ricos (supostos “especuladores”) em benefício
dos mais pobres (que podem ser também as vítimas dos “capitais voláteis”). Supondo-se
que ela seja implementada, como canalizar essa nova cornucópia financeira para os
efetivamente necessitados?
Na ausência de um “taxador de última instância”, a Tobin Tax teria de depender
da ação das autoridades nacionais para o seu recolhimento e redistribuição. Um nova
burocracia mundial eficiente e justa teria de ser estruturada para recolher as
73
“contribuições nacionais” da Tobin Tax e repassá-las a projetos de desenvolvimento nos
países mais pobres. Considerando-se que o Brasil é um país de renda média, e portanto
não beneficiário da Tobin Tax por definição, o cenário previsível é o a criação eventual
de uma “CPMF externa” inteiramente voltada para a remessa de capital para a nova
burocracia internacional. Belo gesto de solidariedade tipo exportação: ele não cria
novos recursos, apenas redistribui os fluxos correntes com alguma perda pelo caminho,
em detrimento daqueles que podem legitimamente necessitar de aportes de capitais.
Pergunta-se agora: o que a “nova” Tobin Tax faria que os capitais de
empréstimos e as dotações concessionais existentes já não estão fazendo? Com efeito,
os mecanismos que existem e operam, seja no plano bilateral tradicional (ajuda oficial
ao desenvolvimento) e no quadro multilateral (BIRD, BID etc.) por acaso já não
estariam servindo para a alocação de recursos concessionais? Todos os programas,
fundos, dotações e mecanismos existentes atualmente no âmbito da ONU e de suas
agências especializadas, bem como as remessas voluntárias operadas por ONGs
generosas dos países avançados – entre as quais se destaca a OXFAM – por acaso já
não fazem algo similar, tirando dos “ricos” para dar aos “pobres”? As respostas às
perguntas acima me parecem óbvias, o que mais uma vez me leva a concluir pela
solução de menor custo e de maior eficiência relativa: como essas entidades
continuariam operando das mesmas formas e com os mesmos objetivos que sempre
tiveram, concluo que seria infinitamente mais fácil, prático e eficiente atuar no aumento
das “economias de escala” dos sistemas e mecanismos existentes de financiamento ao
desenvolvimento.
Pode-se, obviamente, atuar para reforçar ainda mais o papel das ONGs
humanitárias, que justamente buscam eliminar a burocracia, as comissões e a eventual
corrupção dos empréstimos e concessões efetuados por meio das entidades financeiras
internacionais e dos correspondentes órgãos nacionais nos países mais pobres. Mas,
sinceramente, não vejo nenhum sentido prático em pretender criar uma nova burocracia
para simplesmente fazer “more of the same”: recolher dinheiro de um lado, para aplicá-
lo depois em projetos de infraestrutura, em investimentos em saúde, educação,
saneamento etc. Por isso, me parece algo inócuo deixar de lado o BIRD, o BID – que
ambos mantêm fundos concessionais – e as entidades públicas e privadas devotadas aos
países mais pobres – como a AID, o Programa Mundial de Alimentos e tantos outros
fundos já existentes –, para criar mecanismos para socorrer os mais desvalidos.
74
Talvez pouca gente saiba, mas o Brasil já vem colaborando com esse esforço de
“promoção social” dos países mais pobres, tanto diretamente – mediante seu papel de
contribuinte líquido para a Associação Internacional de Desenvolvimento, do BIRD –
como indiretamente, ao abater amortizações de devedores mais pobres em foros como o
Clube de Paris. Os custos são “socializados” internamente, via orçamento geral ou via
Tesouro. O Brasil pode e deve fazer mais nessa vertente, sobretudo se aspira alcançar
uma posição de relevo no sistema da política mundial, mas sempre haverá algum
deputado de uma região desfavorecida no próprio Brasil que questionará a racionalidade
de se ajudar países pobres quanto o país já ostenta várias “Áfricas” e alguns “Haitis”
internamente a suas próprias fronteiras. Caso se decida por uma Tobin Tax, qual seria,
ademais, a vantagem de se criar mais uma fonte de aprovisionamento externo em capital
brasileiro (sim, porque o capital internacional repassará o custo da nova taxação ao
tomador, que somos nós), que não repercutirá minimamente para o Brasil, uma vez que
o esforço não refletirá diretamente nos mecanismos nacionais de política financeira
externa? Não poderíamos sequer contabilizar essa nova “ajuda” em nossos programas
de ajuda externa. Sinceramente, não vejo nenhuma vantagem em uma taxa “universal”
desse tipo.
Resumindo, portanto: primo, a Tobin Tax não diminui a volatilidade dos
capitais: apenas agrega um custo extra a uma transação necessária, especialmente, para
o Brasil. Secundo, ela nunca conseguiria dispor de uma base universal de aplicação e
teria de depender de autoridades nacionais para sua (in)eficiência relativa. Tertio, ela
não acrescentaria nada de mais, em termos de recursos e esquemas redistributivos, do
que já pode ser feito através dos mecanismos e instituições multilaterais existentes, que
poderiam ser induzidas a captar (ou disporem de) mais recursos financeiros dos
doadores tradicionais.
Admito, no entanto, que ela presumivelmente conseguiria aumentar a
arrecadação sobre determinados fluxos de capitais para fins de redistribuição
burocrática, o que é próprio de toda punção fiscal adicional. Ainda assim, pode-se
“especular” – o verbo se justifica inteiramente – com o provável desvio de transações
financeiras para os paraísos fiscais. A menos que se elimine o sacrossanto princípio
westfaliano da soberania absoluta dos Estados independentes, não seria possível mandar
uma tropa de fuzileiros navais para eliminar, do dia para a noite, esse tipo de
comportamento oportunista de algumas ilhas que vivem de vender facilidades contábeis
para os conhecidos sonegadores de receitas.
75
Mas, mesmo que uma Tobin Tax fosse possível e de fato introduzida nas
relações financeiras internacionais: pergunto em que isto mudaria dramaticamente o
panorama do desenvolvimento mundial? Os países mais pobres deixariam por milagre
de ser mais pobres, apenas porque passariam a receber um volume adicional de
recursos, com todos os efeitos já conhecidos de meio século de remessas caritativas?
Pergunto, ademais: já se assistiu, historicamente, a um legítimo processo de
desenvolvimento socioeconômico com base unicamente em recursos externos de tipo
concessional?
Do ponto de vista do Brasil, nada se resolve com a eventual introdução de uma
Tobin Tax: os capitais ficariam mais caros, não deixariam por isso de ser voláteis (essa
característica é determinada internamente, não externamente) e os benefícios seriam
todos carreados para fora do país. Para o interesse nacional, o retorno político de uma
Tobin Tax não é sequer marginal, ele é próximo de zero.
1274. “Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Brasília, 1 jun.
2004, 5 p. Reformulação do trabalho n. 816, em vista do debate em torno de uma taxa
sobre transações financeiras para a constituição de um fundo mundial contra a fome e a
pobreza. Publicado no Meridiano 47 (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 47, jun.
2004, p. 12-15; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_47.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados
n. 465.
76
9. A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?
1. De volta ao problema (aliás equivocado) do crescimento da pobreza mundial
Uma das mais propagadas alegações dos chamados “altermundialistas” –
designação totalmente imerecida, uma vez que eles não ainda não revelaram a receita
desse “outro mundo possível” – contra a globalização é a de que esse processo
aprofunda a miséria e a desigualdade distributiva do mundo capitalista, contribuindo
para o aumento da concentração de riqueza nas mãos de uns poucos privilegiados e
reservando apenas pobreza e desemprego para a maior parte das pessoas, seja nos países
pobres, seja ainda para os pobres dos países ricos. Em poucas palavras: a pobreza
mundial teria aumentado de maneira constante e acelerada com o processo de
globalização. Seria isto verdade?
Nada mais distante da realidade. Como tem demonstrado – com base em dados
estatísticos verificáveis e oficiais, como podem ser os da ONU, do Banco Mundial ou
de entidades congêneres –, o economista catalão, da Columbia University, Xavier Sala-
i-Martin, os dados da distribuição mundial da renda e sua evolução ao longo dos últimos
trinta anos contradizem totalmente os argumentos desprovidos de fundamentos
empíricos dos antiglobalizadores. Essas três décadas correspondem ao deslanchar da
globalização, isto é, a fase final do socialismo (anos 1970-80) e o desaparecimento das
últimas “terras incógnitas” para o capitalismo, com a incorporação da China e ex-
satélites soviéticos à divisão mundial do trabalho (anos 1990 e início do novo milênio).
Em seu trabalho “The World Distribution of Income: Falling Poverty and...
Convergence, Period” (in The Quarterly Journal of Economics, vol. 121, nº 2, may
2006; p. 351-398; ISSN: 0033-5533; link:
www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/qjec.2006.121.2.351), Sala-i-Martin
demonstra que não apenas que a pobreza tem diminuído, mas que a distribuição
mundial de riqueza também tem melhorado.
Na verdade, eu também tinha partido da idéia de que a globalização aumentava a
riqueza, de modo global – ao alocar investimentos em regiões antes não integradas à
economia mundial –, mas aprofundava as desigualdades distributivas, dentro dos países
e entre eles, sobretudo entre ricos e pobres. No ensaio “A globalização e as
desigualdades: quais as evidências?”, (in A Grande Mudança: conseqüências
econômicas da transição política no Brasil. São Paulo: Códex, 2003; cap. 8: p. 117-
77
122; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf),
argumentando com base em estudos do PNUD – que depois se revelaram errôneos –,
também declarei adesão à tese da “divergência” e da “concentração de renda”, isto é, o
distanciamento cada vez maior entre os países e a concentração de renda dentro dos
países, nos estratos mais ricos da população. Tentei, no entanto, separar os fatores
causais propriamente domésticos – isto é, derivados de políticas econômicas nacionais –
daqueles que poderiam ser eventualmente atribuídos à globalização.
Revisei logo depois essa linha analítica ao tomar conhecimento de um dos
trabalhos de Xavier Sala-i-Martin, “The Disturbing ‘Rise’ of Global Income Inequality”
(NBER Working Paper 8904, April 2002; link: http://www.nber.org/papers/w8904), que
resumi e discuti em meu trabalho “Três vivas ao processo de globalização: crescimento,
pobreza e desigualdade em escala mundial” (Espaço Acadêmico, ano 3; 1ª parte: nº 29,
outubro de 2003; link www.espacoacademico.com.br/029/29pra.htm; 2ª parte: nº 30,
novembro de 2003; link: http://www.espacoacademico.com.br/030/30pra.htm; 3ª parte:
nº 31, dezembro de 2003; link: http://www.espacoacademico.com.br/031/31pra.htm;
arquivo único: link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1011VivaGlobaliza.pdf).
Não vou retomar todos os pontos enfocados em meus dois ensaios citados, nem
expor novamente o artigo de Sala-i-Martin, mas desejo, aqui, apresentar resumidamente
os argumentos do economista catalão no seu novo ensaio, “A distribuição mundial de
renda: pobreza declinante e... convergência, ponto”. Procurarei não entrar em detalhes
técnicos (ou seja, econométricos), mas apresentarei sua metodologia e discutirei suas
principais conclusões, que podem ser conferidas no original acima indicado.
Esclareço, desde logo, que Sala-i-Martin em nenhum momento trata de políticas
econômicas e que do seu texto sequer consta a palavra globalization. Na verdade, ele
não está preocupado em provar nenhuma tese pré-concebida, a favor ou contra quem
quer que seja, de qualquer tendência ideológica, política ou econômica. Ele
simplesmente se ocupa de expor dados e deduções a partir dos números pesquisados e
processados, como bom number-cruncher que é. Ele estima a distribuição da renda em
bases individuais, calcula os indicadores de concentração de renda com base em
diferentes metodologias e conclui, concretamente, que a pobreza tem diminuído de
modo verificável no planeta, embora não em todos os lugares e não com a mesma
constância ou rapidez.
2. A diminuição da pobreza mundial: velhas e novas evidências
78
No trabalho precedente aqui referido, “The Disturbing ‘Rise’ of Global Income
Inequality”, Sala-i-Martin tinha utilizado dados agregados dos PIBs dos países e dados
relativos aos estratos de renda dentro dos países, provando, em seguida, que essa
suposta ascensão das desigualdades globais não tinha, de fato, ocorrido. À diferença de
muitos outros estudos nessa área, ele trabalhou com o conceito de renda individual e
não com a renda média nacional, que tende a distorcer os fluxos. Essa metodologia faz
sentido, uma vez que o objetivo é medir efetivamente a pobreza, e não a renda per
capita, tal como ela aparece nos indicadores nacionais. Ele computou as linhas de
pobreza e descobriu que a taxa de pobreza situada no limite estimado de US$ 1/dia tinha
declinado de 20% para 5% da população mundial nos 25 anos anteriores a 1998. Na
linha de US$ 2/dia, o declínio foi de 44% para 18%. Em termos de volume, isso
significa que houve uma diminuição de 300 a 500 milhões de pobres entre os anos que
vão de 1970 a 1998.
Ele calculou indicadores de concentração de renda com sete métodos diferentes
– coeficiente de Gini, a variância log-renda, dois índices de Atkinson, o desvio
logarítmico mediano, o índice de Theil e o coeficiente de variação –, todos eles
demonstrando redução na desigualdade global da renda entre 1980 e 1998. Ele também
descobriu que a maior parte das disparidades distributivas se davam entre os países, não
sendo resultante do crescimento das desigualdades dentro dos países. Dentro dos países
as disparidades cresceram ligeiramente no período, mas não o suficiente para eliminar o
fator de redução das disparidades entre os países. Este último fenômeno se deveu
principalmente, mas não inteiramente, ao rápido crescimento da renda de 1,2 bilhão de
chineses.
Em outros termos, ocorreu convergência e não divergência entre os países, como
muitos argumentavam, inclusive os economistas do Banco Mundial (e eu com eles, uma
vez que considerei que seus estudos eram fiáveis). Mas, alertava Sala-i-Martin, a menos
que a África comece a crescer no futuro próximo, podemos esperar um novo
crescimento das desigualdades mundiais. Se a África não retomar o processo de
crescimento, então a China, a Índia, os países da OCDE e o resto dos países de renda
média e alta vão “divergir” do continente africano e a desigualdade global voltará a
crescer. Ele terminava recomendando que o crescimento agregado do PIB dos países
africanos deveria constituir a prioridade de todos aqueles preocupados com o
crescimento das desigualdades de renda no mundo.
79
O que nos traz agora este segundo ensaio de Sala-i-Martin sobre a diminuição da
pobreza em nível mundial, desta vez utilizando dados até o início de 2000? Ele estimou
a distribuição de renda mundial (WDI, na sigla em inglês) mediante a integração da
distribuição das rendas individuais – sempre é bom frisar este ponto – para 138 países
entre 1970 e 2000. A distribuição nacional (por países) foi construída mediante a
combinação dos PIBs nacionais per capita para “ancorar” a mediana, utilizando dados
de pesquisa por amostragem para identificar a dispersão distributiva. As taxas de
pobreza e as contagens individuais foram registradas segundo quatro diferentes linhas
de pobreza: US$ 1; 1,5; 2 e 3. Ele descobriu que as taxas de pobreza no ano 2000 eram
entre um terço e uma metade menores do que tinham sido em 1970, para as quatro
linhas: ou seja, havia entre 250 e 500 milhões de pobres a menos em 2000 do que em
1970 (e isso, caberia registrar, a despeito do crescimento da população mundial, bem
maior, presumivelmente, nos países pobres do que nos ricos). Desta vez, ele estimou
oito índices de desigualdade de renda para a distribuição mundial de riqueza, e todas
elas mostraram redução na desigualdade global nos anos 1980 e 1990.
Este é o “resumo da ópera”, mas caberia, talvez, refazer o caminho percorrido
por Sala-i-Martin para ver como ele chegou a essas conclusões, o que implica um pouco
de metodologia e de transcrição de números, para o que peço a indulgência dos leitores.
No final, pretendo discutir como se desenvolveu esse “fenômeno” – na verdade, um
processo muito “natural”, a despeito da descrença dos antiglobalizadores nas virtudes
“normais” da economia de mercado para gerar e distribuir riquezas – e como esse
processo global está moldando o mundo contemporâneo. Essa parte não tem muito a ver
com a metodologia de Sala-i-Martin, mas respeita o espírito e o sentido de suas
conclusões.
3. Os dados do problema: questões metodológicas e descobertas empíricas
A distribuição da renda entre os países e dentro dos países tem sido um
problema recorrente dos economistas desde longo tempo, em todo o mundo. A
divergência entre os países pode ser medida em duas dimensões: as taxas de
crescimento econômico em países pobres têm sido menores do que as dos países ricos e
a dispersão de rendas entre os países tem aumentado ao longo do tempo. O problema é
que a maior parte da literatura nesse campo utilizou-se de dados nacionais: isso pode até
ser válido para testar teorias do crescimento econômico, uma vez que essas teorias
tendem a “explicar” o crescimento em função de “fatores nacionais”, como políticas,
80
instituições e outros elementos que são determinantes em nível agregado. Na medida em
que essas variáveis são independentes entre as nações, cada país pode ser tratado
corretamente como um “número” independente num estudo econômico.
O mesmo não se aplica, porém, quando se trata de medir o bem-estar das
pessoas, uma vez que diferentes países têm diferentes “volumes” de população. Como
diz Sala-i-Martin, “não há razão para desvalorizar o bem-estar de um camponês chinês
em relação a um agricultor senegalês apenas porque a população da China é maior do
que a do Senegal” (p. 352). Ou seja, a análise agregada em nível nacional não ajuda a
responder questões como estas: quantas pessoas no mundo vivem na pobreza?; como
mudaram as taxas de pobreza nas últimas décadas; ou então, as desigualdades
distributivas entre os cidadãos estão crescendo ao longo do tempo?
Este problema pode ser parcialmente resolvido recorrendo a uma ponderação da
distribuição de renda em função do tamanho da população. Com base nesse tipo de
abordagem, o economista T. Paul Schultz, (“Inequality and the Distribution of Personal
Income in the World: How it is Changing and Why”, Journal of Population Economics,
11(3) (1998), 307-344), descobriu que não era verdade que a distribuição de renda
tendia a divergir e que, ao contrário, a renda dos cidadãos mais pobres tinha crescido
mais rapidamente (ou seja, a desigualdade distributiva tinha declinado). Mas, o
problema é que nem todos os cidadãos de um mesmo país participam da mesma forma
na distribuição nacional de riqueza, ou seja, a pobreza geral da população pode estar
sendo reduzida, mas a desigualdade na distribuição efetiva de renda pode estar
aumentando.
Sala-i-Martin tentou superar esse problema estimando a distribuição da renda
mundial (WDI) para cada um dos anos entre 1970 e 2000 e integrando as distribuições
de renda para 138 países. As medianas das distribuições nacionais de renda para cada
país são os níveis de PIB per capita ponderados pela população de cada um deles, dados
então combinados com pesquisas por amostragem (micro-surveys) para cada um deles,
quando disponíveis (ou aproximados aos de regiões próximas). Ele então usa a WDI
para estimar as taxas de pobreza individuais para o mundo assim como para as várias
regiões do planeta, registrando a partir daí as medidas de desigualdade derivadas da
WDI, segundo oito indicadores selecionados. “Todas as medidas apontam na mesma
direção: não apenas a desigualdade mundial de renda não cresceu tão dramaticamente
como muitos temiam, mas, ao contrário, ela caiu desde os altos níveis do final dos anos
1970” (p. 356).
81
Para a estimativa da renda individual, Sala-i-Martin utiliza o PIB per capita
segundo o critério conhecido como PPP (paridade de poder de compra), ponderado pelo
tamanho da população. Uma vez obtida a mediana, os dados são complementados com
informação sobre a distribuição interna de renda (por estratos), a partir de pesquisas
detalhadas (microeconomic income surveys), segundo quatro grupos de países: A=
países para os quais o PIB per capita e pesquisas de renda estão disponíveis para vários
anos (grupo no qual o Brasil se insere e que perfaz 5 bilhões de pessoas, ou 84% da
população mundial); B= países para os quais o PIB per capita está disponível e apenas
uma pesquisa foi registrada para todo o período entre 1970 e 2000 (29 países, com um
total de 329 milhões de pessoas em 2000, ou 5% da população total); C= países para os
quais o PIB per capita é disponível, mas para os quais não existem pesquisas
microeconômicas (28 países, com população de 242 milhões, ou 4% do total); D=
países sem informação de PIB per capita (excluídos do tratamento estatístico e
econométrico).
No total, os 138 países compreendidos no estudo perfazem 93% da população
mundial em 2000. Estimativas específicas foram conduzidas para os 15 países
resultando da fragmentação da União Soviética, bem como para o Congo-Zaire, para o
qual dados tiveram de ser estimados em vista da importância desse país na África (50
milhões de pessoas) e da amplitude da queda estimada da renda (de US$ 1.000 em 1970
para cerca de $230 em 2000). Os exercícios econométricos conduzidos por Sala-i-
Martin foram intensos e complexos, mas indicaremos apenas alguns resultados.
Assim, por exemplo, a evolução da distribuição de renda na China, a partir da
definição oficial de pobreza do Banco Mundial (US$ 1/dia a preços de 1985): a “moda”
da distribuição de renda em 1970 era de US$ 750 ao ano. Um terço da população da
China, aproximadamente, naquele ano se situava abaixo da linha da pobreza, volume
que vai se deslocando com o correr dos anos, ao mesmo tempo em que a desigualdade
aumenta. Em 2000, a moda já se situava em US$ 2.400 e a fração da população abaixo
da linha da pobreza de US$ 1/dia era significativamente menor. As estimativas feitas
para o segundo país mais populoso do planeta, a Índia, indicam um deslocamento
similar de pessoas para cima da linha de pobreza, de forma dramática, tendo em vista o
crescimento da população total.
Para os Estados Unidos, o terceiro país mais populoso (depois do implosão da
União Soviética), as estimativas de distribuição são feitas para os estratos mais altos
(entre US$ 1.000 e 100.000, em lugar de US$ 100 a 10.000, como para os demais
82
países), mas não existem pessoas abaixo da linha de pobreza. A Indonésia foi
igualmente um país que conheceu uma enorme redução da pobreza: um terço da
população se situava abaixo da linha em 1970 e, mesmo com a crise financeira em 1997
e a queda na renda, os dados são eloqüentes, ao contar aquele país com apenas 0,1% de
pobres em 2000.
Os dados para o Brasil constam de um gráfico (II.E) e demonstram que a renda
dos estratos mais elevados se movimenta para cima muito mais rapidamente do que a
dos estratos inferiores. Para Sala-i-Martin isso “reflete um nível crescente de
desigualdade. Este é um fenômeno que tendemos a observar em toda a América Latina.
A redução da pobreza no Brasil parece ter sido muito pequena, tendo ocorrido
principalmente nos anos 1970. Na verdade, os estratos mais baixos da distribuição
parecem se deslocar para a esquerda entre 1980 e 1990, o que indica um crescimento da
pobreza durante a ‘década perdida’ dos anos 1980. Pouco progresso foi feito no
decorrer dos anos 1990” (p. 364).
O caso da Nigéria é, segundo Sala-i-Martin, um dos mais “interessantes”, ou
talvez dramático, no sentido próprio da palavra: o PIB per capita não cresceu ou teve
crescimento negativo nesse período e tanto a pobreza quanto a desigualdade
aumentaram. “As implicações dramáticas desses dois fenômenos são que, enquanto a
fração da população vivendo com menos de US$ 1/dia aumentou de 1970 a 2000, o
estrato superior da distribuição moveu-se na verdade para a direita. Em outras palavras,
apesar de que o cidadão médio ficou pior em 2000 do que estava em 1970, os nigerianos
mais ricos estavam bem melhor. Este fator tem implicações políticas importantes
porque esses ricos nigerianos formam a elite econômica e política que tem de tomar
decisões sobre as reformas possíveis. Infelizmente, a despeito de que esse fenômeno é
único entre os maiores países estudados, ele não é incomum na África” (p. 366).
Para a antiga União Soviética (Rússia em 2000) e suas repúblicas constitutivas,
os resultados são os esperados: um aparente deslocamento para a direita até 1990, com
base nos dados de “crescimento” soviético, seguido de uma dramático deslocamento
para a esquerda a partir dos anos 1990: em 2000, a distribuição se move para a
esquerda, refletindo uma nítida queda na renda e registra um aumento na dispersão, o
que significa obviamente o crescimento na desigualdade. Há uma aumento na proporção
da população abaixo da linha da pobreza, mas como esta se situa bem acima de US$
1/dia, o aumento geral na pobreza é pequeno.
83
Dados agregados ao nível mundial, calculados por Sala-i-Martin, revelam uma
moda mundial de US$ 850 em 1970, com um pico de US$ 9.600, o que reflete os altos
níveis de renda dos EUA e da Europa. Parte substancial das diferenças distributivas da
renda mundial em 1970 derivava das diferenças de renda per capita entre os países, mais
do que dentro dos países. “Em outras palavras, a distância entre as distribuições
nacionais de renda (ou seja, a diferença entre a mediana dos EUA e da China) parece ser
muito maior do que as diferenças entre ricos e pobres americanos ou do que entre ricos
e pobres chineses” (p. 368).
4. A pobreza no mundo: diminuindo, a despeito de tudo
Como estimativas globais, Sala-i-Martin calcula, em primeiro lugar, que a WDI
moveu-se para a direita nesse período de 30 anos, ou seja, que a pobreza diminuiu, o
que está obviamente refletido no fato de que a renda per capita é muito maior em 2000
do que em 1970. Não é imediatamente visível, em segundo lugar, que a dispersão é
maior agora do que trinta anos atrás, ou seja, de que a desigualdade distributiva
aumentou. Em terceiro lugar, uma mudança maior ocorreu na China, cuja distribuição
de renda moveu-se dramaticamente para a direita – os chineses se tornando ricos – mas
com uma dispersão maior – ou seja, uma distribuição da renda mais desigual. O estrato
mais alto da população chinesa em 2000 situava-se em torno de US$ 10.000 ao ano, o
que significa a renda média de países como México, Polônia ou Rússia e um pouco
abaixo da Grécia. Em quarto lugar, a Nigéria – e outros países africanos – parece estar
preenchendo o vácuo deixado pela China, Índia e Indonésia: enquanto as três nações
asiáticas cresceram – e suas distribuições de movimentaram para a direita –, o maior
país africano tornou-se mais pobre e mais desigual ao longo do tempo. Assim, em 2000,
ele permanece como o único grande país com uma parte substancial de sua população
abaixo da linha da pobreza.
Sala-i-Martin resume suas evidências para todo o período. “Agora se tornou
claro que a distribuição se move para a direita, refletindo o fato de que as rendas da
maioria dos cidadãos do globo cresceram ao longo do tempo. Também é claro que a
fração da população que ficou à esquerda da linha de pobreza declinou (o que indica
uma redução nas taxas de pobreza) e que a área absoluta que ficou para trás da linha da
pobreza também diminuiu (o que indica uma redução geral do número de pessoas
pobres no mundo). Os dados não mostram claramente se a desigualdade na renda
mundial cresceu ou diminuiu, o que demonstra a necessidade de números mais exatos
84
de desigualdade distributiva no mundo se quisermos discutir a evolução da desigualdade
nas últimas três décadas” (p. 368-369).
Utilizando diferentes definições e estimativas para as linhas de pobreza – entre
US$ 1,5 e 3/dia –, Sala-i-Martin calcula as diferentes funções distributivas cumulativas
para a evolução da diminuição da pobreza no mundo entre 1970 e 2000. Escolhendo a
linha inferior, uma renda equivalente a $570 ao ano (ou US$ 1,5/dia), tem-se que as
taxas de pobreza diminuem de 20% da população mundial para 16% em 1980, 10% em
1990 e 7% em 2000. Se escolhermos a renda de $2.000 ao ano, a taxa de pobreza cai de
62% da população mundial em 1970 para 41% em 2000. Para uma renda de $5.000 ao
ano, a taxa declina de 78% para 67%.
“Usando os dados originais do Banco Mundial (definição de uma renda anual de
$495), a linha de pobreza declinou de 15,4% da população mundial em 1970 para 5,7%
em 2000, um declínio de quase três vezes! Isto é especialmente impressionante levando
em consideração que, no mesmo período, a população mundial cresceu quase 50% (de
3,5 para 5,5 bilhões de pessoas). A conseqüência é que o número total de pessoas
pobres passou de 534 para 322 milhões, uma queda de 50%” (p. 373 e 375). Estimativas
comparáveis quanto ao número de pessoas pobres em 2000 situavam-no ao redor de 1,2
bilhão de pessoas.
O papel da China na redução da pobreza mundial foi e é, sem dúvida alguma,
importante. Estimativas do Banco Mundial baseadas em pesquisa local indicam que a
pobreza, definida como a linha de consumo de US$ 1/dia, foi reduzida de 53% da
população em 1980 para apenas 8% em 2000. As estimativas do próprio Sala-i-Martin
dão cifras menores, de 48% em 1980 para 11% em 2000, o que representa, de toda
forma, cifras impressionantes para um espaço de vinte anos.
Em termos globais, a região da Ásia Pacífico, sendo a mais populosa, foi a que
mais reduziu o número de pobres no planeta: de uma proporção de 30% em 1970, a taxa
de pobreza tinha caído para menos do 2,4% em 2000, para um total de 1,7 bilhão de
pessoas (ou seja, um corte por um fator de 10). Em números absolutos, os pobres caíram
de 350 milhões em 1970 para 41 milhões em 2000, sendo que 114 milhões de pessoas
foram alçadas da linha da pobreza nos anos 1990. Essa realização impressionante
significou que enquanto 54% dos pobres do mundo viviam na Ásia oriental em 1970,
em 2000 a região passou a abrigar apenas 9,4% do total. Evolução similar foi conhecida
na Ásia do Sul, região com 1,3 bilhão de pessoas em 2000: a pobreza caiu de 30% da
população para 2,5% em 2000, sendo que a maior parte do sucesso pode ser atribuída à
85
reformas econômicas na Índia pós-1980 (já que na década anterior os pobres indianos
tinham aumentado em 15 milhões).
A descrição oferecida por Sala-i-Martin do caso africano é patética. “O grande
sucesso asiático contrasta dramaticamente com a tragédia africana. Com uma população
total apenas superior a 608 milhões de pessoas, a África subsaárica é a terceira região
mais habitada no nosso conjunto de dados. (…) A maior parte (dos 41 países) teve um
desempenho tão catastrófico que a pobreza aumentou em todo o continente. De maneira
geral, a pobreza em 1970 era similar à da Ásia: 35%. Em 2000, as taxas de pobreza na
África alcançaram 50% enquanto as da Ásia declinavam para menos de 3%. (…) O
número total de pobres subiu de 93 milhões em 1970 para mais de 300 milhões em
2000. (…) Este desempenho decepcionante, ao lado do grande sucesso das duas outras
regiões pobres do mundo (Ásia oriental e meridional), significa que a maioria dos
pobres do mundo vive agora na África. De fato, a África contava com apenas 14,5% dos
pobres do mundo em 1970. Hoje, a despeito do fato de que a África totaliza apenas 10%
da população mundial, ela é responsável por 67,8% dos pobres do mundo. A pobreza,
que antes era essencialmente um fenômeno asiático, tornou-se essencialmente um
fenômeno africano” (pp. 377 e 380).
O caso da América Latina é de meios tons, ao longo das três décadas cobertas
pelo estudo. Com cerca de 500 milhões de habitantes – 9% da população mundial –, as
taxas de pobreza foram cortadas pela metade em três décadas: de 10,3% em 1970 para
4,2% em 2000. “Isto poderia parecer um quadro otimista, se não fosse pelo fato de que
todos os ganhos ocorreram durante a primeira década. Pouco progresso foi obtido
depois disso. De fato, a taxa de pobreza na América Latina cresceu de 3% em 1980 para
4,1% em 1990 e para 4,2% em 2000. O volume de pobres caiu em cerca de 17 milhões
de pessoas durante os anos 1970, mas cresceu em 10 milhões nos vinte anos seguintes.
Esse desempenho misto significou que, apesar de que a América Latina começou numa
posição relativamente superior à da Ásia oriental e meridional (onde as taxas de pobreza
eram superiores a 30% em 1970), vemos que as taxas de pobreza são superiores às das
duas regiões em 2000. A parte dos pobres do mundo que vive na América Latina caiu
de 4,0% do total em 1970 para 1,5% em 1980. Ela então cresceu para 3,5% em 1990 e
para 5,3% em 2000” (p. 380-381).
Os cenários para o Oriente Médio e para os ex-países socialistas não é dos mais
otimistas, mas prefiro remeter à leitura do original de Sala-i-Martin do que resumir, uma
vez mais, dados que soam um pouco repetitivos em relação aos da América Latina.
86
Talvez seja melhor adentrar no debate relativo à natureza das desigualdades e o
problema da comparação entre países e situações diferentes.
5. O mundo é menos desigual: como isso ocorre, e por quais razões?
Os pesquisadores sempre se preocuparam com as desigualdades distributivas no
plano mundial, pois aí se situa o coração do debate sobre a divergência ou convergência
da economia mundial. Trata-se de uma questão complexa, tanto no plano metodológico
quanto empírico, que pode induzir a interpretações errôneas da realidade, como eu
mesmo experimentei em meu citado capítulo do livro A Grande Mudança. O Relatório
do Desenvolvimento Humano de 2001, do PNUD, por exemplo, argumenta, segundo o
texto de Sala-i-Martin, que a desigualdade na distribuição mundial da renda aumentou
com base na seguinte lógica:
Suposição 1: “As desigualdades distributivas dentro dos países aumentaram.”
Suposição 2: “As desigualdades distributivas entre os países aumentaram.”
Conclusão: “A desigualdade distributiva mundial também aumentou.” (p. 382)
Para sustentar a primeira suposição, os analistas coletam os coeficientes de Gini
de certo número de países, constatando então que esse coeficiente aumentou em 45
países e declinou em 16. Para apoiar a segunda suposição, os analistas recorrem à
literatura sobre convergência e divergência e demonstram que o coeficiente de Gini do
PIB per capita entre os países cresceu de forma demonstrável nos últimos 30 anos. Essa
diferença crescente das rendas per capita entre os países é um fenômeno bem conhecido
chamado de “divergência absoluta” pelos economistas do crescimento.
Mas, como indica Sala-i-Martin, “a despeito de ser verdade que as desigualdades
dentro dos países estão crescendo, na média, e que é também correto que as rendas per
capita entre os países vêm divergindo, a conclusão de que a desigualdade distributiva
mundial aumentou não deriva logicamente das premissas estabelecidas. A razão está em
que a primeira suposição se refere à renda de ‘indivíduos’ e a segunda suposição se
refere à renda per capita de países. Ao adicionar dois conceitos diferentes de
desigualdade para analisar a evolução da desigualdade de renda mundial, o PNUD cai
na falácia de comparar maçãs com laranjas. O argumento estaria correto se o conceito
de desigualdade implícito na segunda suposição não fosse o ‘nível de desigualdade de
renda entre os países’, mas, ao contrário, a ‘desigualdade entre os indivíduos que
existiria no mundo se todos os cidadãos em cada país tivesse o mesmo nível de renda,
mas países diferentes tivessem diferentes níveis de renda per capita” (p. 382-383).
87
A base do argumento é que se deve reconhecer que existem 4 cidadãos chineses
para cada americano, assim que a renda per capita da China tem de ser ponderada e
receber o peso correspondente (4 vezes). “Em outras palavras, em lugar de usar uma
medida de desigualdade na qual a renda per capita de cada país constitui um valor, a
medida correta deve ponderar o tamanho do país. O problema, para o PNUD é que
medidas da desigualdade de renda ponderadas pela população demonstram uma
tendência declinante nos últimos 30 anos. A questão, então, é saber se o declínio na
desigualdade individual entre os países (ponderada pela população) mais do que
compensa o crescimento médio da desigualdade individual dentro dos países, ponderada
pela população” (p. 383).
Sala-i-Martin expõe, então, as diferentes medidas de desigualdade distributiva –
num total de oito metodologias – e passa a expor sua constatação de que a desigualdade
global de renda diminuiu entre 1970 e 2000. Depois de ter permanecido mais ou menos
estável no decorrer dos anos 1970, atingindo um máximo de desigualdade em 1979 (um
índice de 0,662, segundo o coeficiente de Gini), ela conheceu uma tendência declinante
nas duas décadas seguintes, com um coeficiente de Gini, em 2000, de 0,637. No total, o
índice de Gini caiu 4% desde 1979.
As tendências não foram obviamente uniformes. Ocorreu, por exemplo, uma
queda brusca em 1975, no seguimento do primeiro choque do petróleo, quando os ricos
sofreram e a China e a Índia cresceram, respectivamente, em 3,6% e mais de 7%. Em
1988, outro exemplo, a tendência para a melhoria do coeficiente reduziu-se
ligeiramente, em função de uma recessão na China. Ou seja, os ciclos de negócios nos
grandes países ou em grupos de países estão associados a mudanças de curto prazo nas
tendências mundiais de desigualdade, o que recomendaria desconfiar de estudos de
curto prazo.
O fato é que todos os demais indicadores são concordantes em apontar um lento
declínio nas duas últimas décadas, depois da relativa estagnação dos anos 1970. A
dimensão do declínio depende da medida exata: a maior queda observada ocorreu na
relação entre o estrato de renda de 20% superior e o estrato de 20% inferior, uma queda
de quase 30% ente 1979 e 2000. “A despeito de pequenas diferenças entre as medidas, a
desigualdade diminuiu nos últimos vinte anos” (p. 386).
Parafraseando um autor precedente – Lant Pritchett, “Divergence, Big Time”,
Journal of Economics Perspectives, 11(3), Summer (1997), 3-17 –, que tinha
proclamado a abertura de um grande período de “divergência” no mundo, Sala-i-Martin
88
considera que, com base em sua análise baseada não no PIB per capita, mas nas rendas
individuais das pessoas, as duas últimas décadas testemunharam um inegável processo
de “convergência, ponto!” (p. 386). A tendência é de certa forma surpreendente na
medida em que a desigualdade na distribuição da renda mundial tem aumentado
continuamente no século e meio que se passou. O que teria causado essa inversão de
tendência? “A resposta é a taxa de crescimento de alguns, até agora, grandes países
pobres do planeta: China, Índia e o resto da Ásia” (idem).
De forma geral, no início da revolução industrial, o mundo todo era pobre, igual
e pobre. Lentamente, a renda de um bilhão de pessoas – em proporção atual – dos países
que pertencem à OCDE cresceu e divergiu da renda dos demais cinco bilhões de
pessoas que fazem parte do mundo em desenvolvimento. As taxas de crescimento
dramáticas da China, da Índia e do resto da Ásia a partir dos anos 1970 determinaram
que a renda de 3 a 4 bilhões de pessoas começou a convergir em direção à renda dos
cidadãos dos países da OCDE. Essa redução na desigualdade mundial de renda pela
primeira vez em séculos se dá a despeito da renda divergente dos 608 milhões de
africanos. “O problema, agora, é que se a renda dos cidadãos africanos não começa a
crescer rapidamente, a desigualdade de renda mundial vai começar novamente a
aumentar” (p. 386-387).
As tendências recentes se mantêm mesmo excluindo-se dos cálculos a China, de
um lado, e os Estados Unidos e a África, de outros, que constituem, respectivamente, os
grandes “convergentes” e “divergentes” nas estimativas, o que demonstra o peso de
todos os demais participantes do jogo global. Esses três grandes atores perfazem 2,1
bilhões de pessoas – 38% do total – mas o coeficiente de Gini continuaria ainda assim a
demonstrar uma queda, de 0,599 em 1970 para 0,591 em 2000.
Finalmente, Sala-i-Martin decompõe os dados em função das diferenças entre os
países e dentro dos países, obtendo uma evidência interessante. A variável “dentro dos
países” representa o grau de desigualdade que existiria no mundo se todos os países
tivessem a mesma renda per capita (ou seja, a mesma distribuição mediana) mas as
diferenças correntes existentes dentro dos países entre os indivíduos. Esta medida é uma
média ponderada pela população das desigualdades dentro de um país. Já a variável
“entre os países” representa o grau de desigualdade que existiria no mundo se todos os
cidadãos em cada país tivessem o mesmo nível de renda, mas persistindo as diferenças
de renda per capita entre os países. Esta medida corresponderia à desigualdade
89
ponderada pela população (ou a medida agregada de desigualdade ponderada pela
renda).
A conclusão a que ele chega, utilizando a metodologia do “desvio logarítmico
mediano, é que mais de 71% da desigualdade de renda entre os cidadãos do mundo se
deve a diferenças entre os países e que apenas 29% deriva de diferenças de renda
internas aos países. Empregando outras metodologias, as conclusões são similares: a
maior parte das diferenças se dá entre os países, não dentro dos países. Mas, a segunda
conclusão interessante do seu estudo é a de que as diferenças dentro dos países estão
aumentando com o decorrer do tempo, ao passo que as diferenças entre os países
declinam. O efeito combinado dessas duas tendências resulta em que a fração da
desigualdade global que pode ser explicado pelas diferenças entre os países está
declinando.
Uma outra conclusão geral de Sala-i-Martin é a de que o declínio na
desigualdade entre os países tem sido maior do que o crescimento da desigualdade
dentro dos países, com o que o resultado final é positivo. “Em outras palavras, a
despeito do fato de que a desigualdade dentro da China, dentro da Rússia, dentro dos
EUA, e dentro de vários outros países tem aumentado, o crescimento de alguns dos
maiores e mais pobres países do mundo (mais notavelmente a China, a Índia e o resto da
Ásia) tende a reduzir a desigualdade geral de renda entre os cidadãos do mundo” (p.
389).
Sala-i-Martin conclui o ensaio com uma reflexão sobre os objetivos do milênio
da ONU, à luz dos números que ele revelou em seu estudo bem documentado. O
primeiro objetivo, estabelecido em 2000, era o de reduzir à metade, em 2015, a pobreza
existente em 1990. Nesse ano, as pessoas vivendo com menos de um dólar por dia
representavam 10% da população mundial. O objetivo será atingido, portanto, se a taxa
de pobreza for de 5% em 2015. Mas, de acordo com seus dados, essa taxa já era de 7%
em 2000, ou seja, o mundo já tinha alcançado 60% da meta (o que, obviamente, nada
diz da condição dos países africanos, tomados individualmente). Em outros termos, o
mundo pode estar em melhor condição do que se acredita.
6. Uma palavra final: os antiglobalizadores precisam mudar o discurso...
As evidências trazidas por Sala-i-Martin, que tinham sido expostas em seu
ensaio anterior e discutidas em meus próprios artigos, já citados, traduzem uma
realidade que poderia ser diferente: sim, o mundo poderia estar se tornando mais
90
desigual e mais “divergente”, com o crescimento das desigualdades distributivas dentro
e entre os países. A bem da verdade, ele demonstra que as desigualdades internas têm
crescido nas últimas décadas, mas que isso não foi suficiente para eliminar os maiores
fatores de convergência entre os países. Essa convergência vem sendo assegurada, na
prática, por alguns grandes países pobres que experimentam, desde os anos 1970, um
extraordinário processo de crescimento econômico e de aumento da renda disponível
em todos os estratos da população (ainda que com um relativo aumento das
desigualdades distributivas entre os estratos da população).
Estes são dados de “conjuntura”, mas que também traduzem uma lenta evolução
“estrutural” que se pensa poder consolidar nos próximos anos: o mundo conheceu, por
certo, uma longa divergência a partir da primeira revolução industrial, e vem agora
passando por uma lenta convergência, à medida que caminhamos para a quarta
revolução industrial (a da nano e da biotecnologia). Nada disso é inevitável ou
apresenta caráter fatal: como sempre ocorre na história humana, decisões erradas
adotadas por homens que estão em posição de decidir – as chamadas elites – podem, e
em vários casos efetivamente o fizeram, colocar tudo a perder, escolhendo caminhos
errados no processo de desenvolvimento. Assim ocorreu com a China, em algum
momento entre os séculos XVI e XVIII: ela decidiu isolar-se do mundo, concluindo –
naquele momento com certa razão – que ela não tinha nada a aprender com os
“bárbaros” do exterior, uma vez que estava à frente deles em muitas coisas. Decisão
fatal, pois ela foi invadida, esquartejada, espoliada e humilhada, graças à superior
tecnologia guerreira das potências ocidentais, aliás obtida em grande medida a partir da
própria China, nos séculos anteriores.
Em nenhum momento, Sala-i-Martin recorre ao conceito de globalização em seu
estudo, nem apresenta as taxas de crescimento desiguais entre os países, que “explicam”
a convergência de alguns e a divergência de outros, mas é isso, obviamente, que está em
causa no trabalho que acabamos de resumir. Ainda que um processo consistente de
crescimento da renda disponível possa se dar, hipoteticamente, unicamente em um
plano nacional, isto é, tendo como base o crescimento da produtividade total de fatores
em bases inteiramente nacionais, ou seja, self-contained e autárquicas, não é crível,
ainda que seja teoricamente possível, que China, Índia e tantos países asiáticos tivessem
logrado o desempenho extraordinário que conseguiram nas últimas duas décadas em
uma situação de “descolamento” da economia mundial. Isso não é verossímil e não seria
91
possível, não, em todo caso, com as altas taxas de crescimento econômico sustentadas
pela China nas últimas duas décadas. O que isto tem a nos ensinar?
Em primeiro lugar, que o crescimento econômico, quaisquer que sejam as
políticas econômicas empregadas para torná-lo consistente e sustentável, é uma
condição sine qua não se podem alcançar os demais objetivos das políticas
macroeconômicas e setoriais, em especial as de cunho social ou tecnológico. Em outros
termos, não adianta pensar em distribuir, mesmo de forma modesta, se não há
crescimento da produtividade e se a economia não alcança patamares mais elevados de
valor agregado.
Em segundo lugar, que esse crescimento precisa alcançar os vários setores da
economia e ser sustentado ao longo do tempo, de preferência a taxas bem superiores ao
crescimento populacional, para que a distribuição seja mais ou menos bem repartida
entre a população. Esse processo precisa se dar no bojo de transformações estruturais
que atingem os diferentes setores, subsetores e ramos da economia, de maneira a
transformar o crescimento econômico em vetor do desenvolvimento social.
Estas são lições “teóricas” que podem ser extraídas a partir dos dados
disponíveis. As lições “práticas” são as de que esse crescimento pode ser facilitado por
um ambiente internacional favorável à expansão das exportações, que está
inquestionavelmente na base do crescimento observado nas duas últimas décadas nas
economias dinâmicas da Ásia. Parafraseando uma conhecida frase sobre a “mudança na
geografia comercial do mundo”, pode-se dizer que essa mudança já ocorreu e ela
mobiliza, essencialmente, os centros produtores da Ásia oriental e meridional e os
centros consumidores da Europa e da América do Norte, como de resto um pouco todo
o mundo. Nem a América Latina ou o Oriente Médio, nem a fortiori a África têm
sabido aproveitar essas novas oportunidades criadas com essa “nova geografia
comercial”.
Outra lição de natureza prática seria a de que as políticas econômicas nacionais
não precisam se conformar a um padrão único, alegadamente mainstream ou ortodoxo,
de comportamento econômico, que seria aquele supostamente ditado pelas regras do
chamado “consenso de Washington”. Ou seja, as políticas econômicas não precisam ser
liberais ou, em sentido contrário, “dirigistas”, mas elas têm de se conformar ao padrão
de abertura aos mercados e aos investimentos e de inserção na chamada economia
global. A China e a Índia seguem padrões bastante diferentes de reforma econômica e
de inserção econômica internacional, mas, em ambos os casos, as conexões efetuadas
92
pelos sistemas produtivos locais com os mercados externos e a abertura de cada um
desses países aos investimentos diretos estrangeiros são patentes e determinantes no
sucesso obtido. Na ausência desses traços definidores dos modelos “nacionais” de
crescimento econômico e de inserção na economia internacional, nem a China nem a
Índia teriam, possivelmente, logrado as altas taxas de crescimento conhecidas nas
últimas duas décadas.
Voltando à acusação dos antiglobalizadores contra o duplo processo de inserção
das economias nacionais ao sistema econômico mundial e de sua integração aos
mercados capitalistas, como sendo, supostamente, causadores de miséria, de pobreza e
de desigualdades crescentes, creio que não caberia mais insistir na desqualificação desse
tipo de alegação, sem qualquer fundamento empírico, teórico ou histórico. Desse ponto
de vista, os antiglobalizadores vão precisar refinar o discurso ou encontrar outros
demônios para combater. Resta, como afirmado, a questão do tipo ou da qualidade das
políticas econômicas colocadas em prática, terreno no qual os mesmos personagens
bizarros insistem em condenar as chamadas regras do “consenso de Washington”, sem
provavelmente ter a menor idéia do que estão falando. Trata-se de uma questão mais
complexa, que poderá ser abordada em outro contexto. No momento, creio que os dados
estão bem apresentados quanto à convergência econômica de todas as economias que
logram manter um processo de crescimento econômico sustentado, no contexto da
economia global.
1574. “Sorry, antiglobalizadores: a pobreza mundial tem declinado, ponto!”, Brasília, 9
abril 2006, 18 p. Texto apresentando, resumindo e discutindo o estudo de Xavier
Sala-i-Martin, “The World Distribution of Income: Falling Poverty and...
Convergence, Period” (in The Quarterly Journal of Economics, vol. 121, nº 2, may
2006; p. 351-398; ISSN: 0033-5533; link:
www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/qjec.2006.121.2.351), com
comentários adicionais sobre o processo de globalização. Revisão geral em 6 de
janeiro de 2007, sob o título de “A distribuição mundial de renda: caminhando
para a convergência?”; publicado em Meridiano 47 (Brasília, nº 74, setembro
2006, p. 20-29; ISSN: 1518-1219; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_74.pdf e
http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 637 e 707.
93
10. Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses
do movimento antiglobalizador
1. Uma longa (mas necessária) introdução metodológica e de princípios
Se posicionar contra ou a favor de coisas em geral, sejam elas idéias, processos,
movimentos, pessoas ou princípios, dá um pouco mais de trabalho do que simplesmente
ser acomodado, passivo ou mesmo indiferente. Decidindo ser contra ou a favor de algo,
o dono da posição tem, em geral, de se justificar perante outros, explicar os motivos de
sua postura, defendê-la de ataques ou contestações que possa julgar equivocados, enfim,
fazer qualquer coisa que torne suas idéias não apenas “melhores” do que outras, que são
concorrentes ou alternativas, mas também compatíveis com os princípios pelos quais ele
afirma pautar sua vida, sob risco, em não o fazendo, de ser acusado de inconsequente
ou, simplesmente, de contraditório.
Ser contra ou a favor de um conjunto de idéias dá, portanto, um certo trabalho,
pois que em geral se é obrigado a deixar a acomodação monótona dos slogans rápidos
ou o simplismo redutor das idées reçuesisto é, as velhas crenças, sem fundamentação
empírica ou validade prática – para pesquisar sobre os fundamentos das posições que se
está defendendo, investigar suas causas e consequências, examinar a validade dos
argumentos em favor de posições opostas – do contrário como seria possível recusá-las,
tão simplesmente? –, bem como destrinchar as “fortalezas” de suas próprias posições e
tornar evidentes as “fragilidades” das idéias alternativas.
Isso parece complicado e trabalhoso demais? Seria preferível, talvez, a placidez
de algum consenso geral? Isso não existe: concordância de opiniões não é uma realidade
muito presente nas sociedades democráticas, sobretudo em relação a fenômenos ou
processos que são inerentes à própria dinâmica social na qual se vive, como é o caso da
globalização. É assim inevitável que sobre ela persistam tantos debates e tanta
polêmica.
Não tenho, portanto, a mínima intenção de interromper esse fluxo enriquecedor,
preferindo, ao contrário, alimentar o debate com meus próprios argumentos, que como
indica o título deste ensaio, tende a colocar-me em oposição aos partidários da
antiglobalização, cobrando-lhes consistência na idéias e racionalidade de propósitos.
Sinto muito por trazer algumas angústias aos que têm suas causas a defender no partido
da anti, mas este é o preço da coerência que deve existir entre as idéias gerais e as ações
94
na vida prática: é preciso ter um mínimo de racionalidade e de consistência intrínseca,
se se pretende fazer com que as idéias próprias, ou as do movimento a que se pertence,
tenham aceitação geral, sejam triunfantes na vida social e sejam, não apenas adotadas
pelos que nos governam, como implementadas na prática. Não é isso afinal o que
pretendem todos os que têm idéias a defender?: que elas sejam disseminadas, o mais
amplamente possível, e convertidas em realidade?
Creio que sim, e é isso também que me anima a escrever, em primeiro lugar para
mim mesmo – afinal, trata-se de excelente método para afinar as próprias idéias –, em
segundo lugar para alunos, leitores ocasionais ou os simples curiosos que frequentam
eventualmente as páginas de meu site, ou que podem ler o que escrevo em boletins
eletrônicos. Como sabem alguns desses leitores, não sou de fazer concessões políticas,
não costumo ceder a argumentos ilógicos, nem sou levado por modismos ideológicos.
Apenas cultivo a modesta racionalidade dos argumentos que fazem sentido, que não
ofendem os dados da realidade e que se conformam a testes de validação empírica. Meu
único partido é a falta de partido, justamente.
Com o perdão dos leitores por esta longa digressão introdutória, eu escrevi tudo
isto como forma de abrir um debate – que, sei, não terá seguimento – sobre um dos mais
curiosos e surpreendentes fenômenos destes tempos de globalização e que conforma, ao
mesmo tempo, um paradoxo: o fato de pessoas medianamente inteligentes – posto que,
todas, da classe média para cima –, ou mesmo de indivíduos tidos como de inteligência
superior – já que ostentando títulos universitários, livros publicados, espaços na
imprensa, homenagens recebidas, enfim, credenciais reconhecidas pela mídia – se
posicionarem de forma veementemente contrária ao processo de globalização (refiro-
me, obviamente a “esta” globalização, que eles costumam chamar de “capitalista”). A
curiosidade está em que, contra tantos argumentos contrários às suas posições, eles
façam sucesso, e o paradoxo (ou a ironia) é que esse sucesso se deve inteiramente ao
processo de globalização, que eles condenam com tanta veemência.
Com efeito, não há fenômeno mais disseminado, mediatizado e de maior sucesso
público nos últimos anos do que o chamado altermundialismo, também chamado de
antiglobalização, termo que prefiro e já explico por quê. O altermundialismo, como ele
mesmo se proclama, é um movimento que defende que um outro mundo é possível, ou
seja, um mundo diferente do atual, talvez oposto, ou em todo caso melhor do que o que
agora temos: injusto, desigual, contraditório, cheio de misérias e tragédias, feito de
exploração do homem pelo homem, de dominação política, de guerras imperialistas,
95
mas também de guerras civis, guerras tribais, limpezas étnicas, degradação da natureza,
esgotamento de recursos, bref, um mundo horrível, capitalista e desigual, que caberia
eliminar, ou pelo menos substituir por outro melhor. Mas é um fato, também, que o
mundo está sempre mudando: já não temos tantas guerras como antigamente, menos
pessoas morrem de fome ou doenças, hoje temos penicilina, saneamento básico, um
pouco mais de direito e, certamente, mais justiça e democracia também. Enfim, o
mundo mudou, embora talvez não no ritmo e na extensão que seriam desejáveis, mas
ele mudou, e para melhor, nos últimos dois ou três séculos de revolução industrial e de
globalização capitalista (usemos este adjetivo que incomoda muita gente, mas que
expressa a realidade que os altermundialistas querem recusar).
Se o mundo mudou, e continua mudando a cada dia, a caracterização usada
pelos altermundialistas é, no mínimo, tautológica, ou redundante, motivo pelo qual
devemos recusar esse conceito. Mas, há um motivo a mais pelo qual esse conceito é
inoperante, pouco prático e no mínimo carente de significado. É porque ele promete
coisas que é incapaz de entregar, ou seja, a própria definição prometida em sua
caracterização enquanto grupo. Se esse movimento é a favor de um outro mundo, que já
indica ser possível sem qualquer tipo de demonstração positiva, ele deveria dizer, de
imediato, qual é, como se organiza, quais são os fundamentos materiais, espirituais,
arquitetônicos e conceituais desse outro mundo que seus proponentes proclamam de
modo contínuo na internet e nos encontros ruidosos nos quais eles martelam um pouco
mais a ideia, sem desenvolvê-la de fato. Portanto, o conceito não nos serve, até que ele
venha recheado de algo mais e, por isso, estou jogando-o na lata de lixo da história.
Fiquemos, portanto, na antiglobalização, que ela, sim, é um movimento de
sucesso, aliás, muito mais ruidoso e organizado do que o dos altermundialistas (que são
apenas um pequeno bando de irredutíveis gauleses), posto que constituído, o movimento
antiglobalizador, para se opor a algo de concreto, a globalização que “está aí, aos nossos
olhos”, e contra a qual se mobilizam todos aqueles que têm algumas idéias na cabeça
(partimos da presunção de que todas são consistentes até prova em contrário). Também
partimos do pressuposto de que os antiglobalizadores têm algumas soluções alternativas
que eles gostariam de propor aos demais, esperando, em algum momento, que elas
sejam aceitas pelos que decidem e que possam, assim, converter-se algum dia em
realidade. Como se pode ver, parto do pressuposto de que os antiglobalizadores têm
algo a dizer, que esse algo faz sentido, que seus argumentos merecem ser considerados
e que vale a pena, a despeito do seu caráter heteróclito, debater com esse movimento
96
ruidoso, ainda que ela me pareça marcado por uma certa cacofonia conceitual.
Confesso, também, que tenho tido uma certa dificuldade em identificar precisamente as
“idéias” dos anti, na medida em que eles parecem mais propensos a fazer manifestações
do que em colocar no papel, de forma ordenada, seus argumentos anti, ou mesmo a
favor de alguma coisa, qualquer coisa que permita substituir “esta” globalização por
outra.
Rendendo modesta homenagem à minha tribo de origem, os sociólogos,
considero, de minha parte, que o movimento antiglobalizador é uma ideologia, e que,
como todas as ideologias, parte de uma certa concepção do mundo e da realidade,
concepção que recusa o mundo como ele é e que pretende mudar-lhe os fundamentos ou
o seu modo de funcionamento, de modo a torná-lo mais conforme aos princípios e
idéias defendidos por esse movimento. Chamemos a esse movimento “ideologia da
antiglobalização”, se me permitem o empréstimo de sabor levemente marxista. Não há
nenhum preconceito nesta caracterização, pois eu aceito que chamem à minha própria
concepção do mundo “ideologia da globalização”, com todas as consequências que isto
implica, isto é, o desejo de fazer com o que o mundo também se conforme àquilo que eu
julgo ser bom e desejável para seus habitantes, isto é, um pouco mais, ou bem mais, na
verdade doses maciças de globalização, com todos os seus efeitos “devastadores” (no
bom e no mau sentido).
Admitamos, portanto, que somos ambos “ideólogos”, eu e os adeptos da
antiglobalização, e nisto não vai nenhum julgamento preliminar negativo; trata-se
apenas de uma constatação. Há uma diferença, porém, entre eu e os antiglobalizadores:
eu não pertenço a nenhum movimento, grupo, partido, seita, igreja, confraria, clã ou
tribo; não costumo frequentar fóruns pró- ou antiglobalização e não admito nenhum
argumento de autoridade que se interponha entre a informação que busco e recebo – de
todas as fontes possíveis – e minhas próprias reflexões independentes. Sou um ser livre,
tanto quanto me permite a minha condição de assalariado do Estado e atividades
acadêmicas à margem da jornada na burocracia pública. Sou eu e meu computador,
apenas, no qual escrevo e no qual recolho as informações que me chegam de todas as
partes sobre a globalização e o seu contrário, isto é, o quixotesco movimento
antiglobalizador.
Faço aqui um último parágrafo introdutório para me desculpar pelo adjetivo
usado acima, isto é, “quixotesco”, em relação aos adeptos da anti, mas é que considero,
de verdade, esse movimento como sendo quixotesco, isto é, uma figura (neste caso
97
coletiva) levantada de lança em riste contra alguns moinhos de vento que só existem na
cabeça dos que esgrimem argumentos antiglobalização, como agora passo a discutir.
2. Contradições da antiglobalização: carência de fatos, de método, de análises
Não é fácil, como disse acima, debater com o pessoal da anti, a começar pelo
fato de que não se consegue saber direito o que pensam sobre os temas da globalização
e o quê, exatamente, pretendem colocar no “lugar” desse processo. Por mais que eu
tenha me esforçado na busca, navegando de site em site, de documento em documento,
encontrei poucas propostas concretas desse movimento, alguma sistematização que
contivesse as principais idéias, se alguma, sobre a “globalização realmente existente” e
esse “outro mundo possível”. Slogans à parte, a consistência analítica desses “escritos”
é deficiente, para dizer o mínimo, e sua adequação aos dados da realidade é inexistente.
Para dizer a verdade, existem inúmeros documentos, geralmente de caráter
retórico, conclamando a manifestações antes e durante as datas e locais dos encontros
oficiais da assim chamada globalização capitalista: o Fórum Econômico Mundial de
Davos, em primeiro lugar, obviamente, considerado a bête noire do processo (mas agora
que eles têm o seu próprio foro, Davos foi relegado a uma posição secundária), mas
também as reuniões do FMI e do Banco Mundial, da OMC, da Alca, e até da UE e da
UNCTAD. O tom geral é de indignação, de revolta, mas um exame ponderado dos
fatos, que é o mínimo que se requer de qualquer trabalho universitário digno de nota (no
sentido de pontuação, mesmo), é algo raro, senão inexistente nos textos da anti. Como,
nessas circunstâncias, debater com o movimento?: seria preciso antes dispor da matéria-
prima essencial a qualquer debate: idéias sistematizadas, claramente expostas, método.
Não só não é fácil, como na verdade não é permitido debater com esse pessoal,
na medida em que, pelas próprias regras estatutárias dos anti, só participam dos
encontros do Fórum Social Mundial – o arauto le plus en vue da antiglobalização (junto
com a ATTAC e outros foros menores) – aqueles movimentos e entidades da sociedade
civil que se declaram de acordo com sua Carta de Princípios. Ou seja, não é permitido
ser a favor da globalização, ainda que eles o sejam, na prática, ao usarem e abusarem de
todas as facilidades permitidas pela globalização para se informar, se reunir e debater.
Qualquer outra pessoa física ou movimento, todavia, só pode participar se declarar-se a
favor de um documento extremamente vago em seu conteúdo e definições.
Alguém que seja um anti da anti, como eu mesmo, não apenas está
sumariamente excluído, ab initio, como jamais será cogitado para comparecer em algum
98
foro. Registro aqui, ipsis litteris, o que figura nos procedimentos do FSM: “Poderão ser
convidados a participar, em caráter pessoal, governantes e parlamentares que assumam
os compromissos da Carta de Princípios.” Para participar, portanto, é preciso primeiro
comprometer-se com posições dos próprios organizadores, o que não apenas configura
um reducionismo absurdo, um verdadeiro cerceamento à liberdade de expressão, como
também uma manifestação brutal de “pensamento único”, que eles dizem condenar.
Essa cláusula de participação restrita contradiz, portanto, o primeiro princípio do
FSM, que afirma ser ele “um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da
reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de
experiências…”, já que só se pode participar sendo a favor das idéias do movimento. E
quais são essas idéias? Na verdade, muito poucas, e que já vem consignadas no
seguimento desse primeiro princípio acima transcrito: o FSM visa “…a articulação para
ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao
neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de
imperialismo…”; isto pelo lado negativo. Pelo lado positivo, continua o texto: as
entidades participantes “estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária
orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra”.
Se eu fosse impaciente, eu diria: so what?, só isso? De fato é muito pouco para
definir um vasto movimento que mobiliza centenas de milhares de pessoas, talvez
milhões, em todo o planeta, e que se propõe a grandiosa tarefa de mudar esse mesmo
planeta (não esqueçamos a “sociedade planetária”). Mas o 4º princípio – numa carta que
alterna, de forma algo anárquica, procedimentos, regras e definições – vai um pouco
mais adiante: “As alternativas propostas no Fórum Social Mundial contrapõem-se a um
processo de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos
governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade
de governos nacionais. Elas visam fazer prevalecer, como uma nova etapa da história do
mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem
como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente,
apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça
social, da igualdade e da soberania dos povos.”
Aqui chegamos um pouco mais perto do que seriam as propostas propositivas –
com perdão pela redundância – do movimento. Para minha frustração, no entanto, não
encontrei alternativas dignas desse nome, ou pelo menos não de forma sistemática e
organizada, de maneira a permitir um diálogo racional com essas “alternativas”.
99
Existem dezenas, provavelmente centenas, de documentos, na “Biblioteca das
Alternativas”, mas, à diferença das bibliotecas normais, a dos anti não está classificada,
não possui seções, nem “fichas catalográficas” que nos habilitem conhecer as idéias, as
propostas e as alternativas apresentadas pelo movimento. Figuram nela tão somente os
títulos e a indicação da língua em que se encontram os documentos: percorri vários,
muitos deles e, com pesar, recolhi apenas uma sensação de déjà vu again.
De 2001 até os dias que correm, esses documentos são monotonamente
repetitivos: eles condenam sempre, em termos ásperos, a globalização capitalista,
conclamam à mobilização ativa contra as reuniões das organizações internacionais que
supostamente pretendem facilitá-la – aquelas mesmas já mencionadas – e terminam
pelas promessas de sempre: os antiglobalizadores, por ocasião dos seus próprios
encontros, “não vêm manifestar, nem protestar, mas sugerir correções e propor soluções
para que, finalmente, de fato, um outro mundo seja possível” (“Antiglobalização”,
Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, da ATTAC francesa e um dos “papas”
do movimento, em texto de 4.09.2002). Busquei, em vários outros documentos, essas
soluções, essas “correções” prometidas, mas confesso minha frustração: não encontrei
nada digno desse nome.
Não que não existam propostas ou “idéias” a respeito da globalização, ou sobre
como ela poderia ser mais humana, solidária, economicamente equitativa, socialmente
justa e ecologicamente responsável. Mas é que, em minha análise, as propostas ou
alternativas à globalização apresentadas pelos anti me parecem desumanas, muito pouco
solidárias, economicamente desastrosas, socialmente catastróficas e ecologicamente
poéticas, mas insustentáveis no plano prático. Talvez eu esteja sendo apressado demais,
ao condenar as alternativas antiglobalizadoras, mas esta é a sensação que me deixou a
leitura de praticamente todos os documentos do site www.forumsocialmundial.org.br.
Para ser honesto, comigo mesmo e com os representantes da anti, existe sim uma
condição geral para que essa globalização deixe de ser tudo aquilo que ela aparenta ser,
aos olhos dos anti: que ela deixe de ser capitalista. Isto, pelo menos, é o que eu deduzo
do 11º princípio da Carta de Princípios, que define o fórum como sendo “um
movimento de idéias que estimula a reflexão, e a disseminação transparente dos
resultados dessa reflexão, sobre os mecanismos e instrumentos da dominação do capital,
sobre os meios e ações de resistência e superação dessa dominação, sobre as alternativas
propostas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo
de globalização capitalista, com suas dimensões racistas, sexistas e destruidoras do meio
100
ambiente está criando, internacionalmente e no interior dos países”. Em outros termos,
se a dominação do capital fosse eliminada, metade (ou pelo menos grande parte) dos
problemas da humanidade estaria resolvida.
Ou muito me engano, ou a reflexão não vem sendo muito estimulada nesses
encontros, já que não consigo atinar como se pretende eliminar um dos mais poderosos
fatores de produção criados com o processo civilizatório, desde a revolução agrícola: o
capital (ou talvez mesmo desde o paleolítico inferior, uma vez que armas de pedra ou de
madeira são uma forma de “capital”). Seriam os antiglobalizadores astronautas? São
eles de outro planeta, ainda não tocado pelo modo de produção capitalista? Acredito que
não, o que nos deixaria uma única conclusão: eles são simplesmente anticapitalistas, o
que tampouco é consenso entre eles. Com efeito, muitos proclamam não ser contra o
modo de produção capitalista, apenas pretendendo melhorar o seu funcionamento.
De fato, ao ler os documentos da “Biblioteca das Alternativas”, constatei que
alguns ostentam um anti-capitalismo visceral, ao passo que outros são apenas levemente
anticapitalistas. Seriam os antiglobalizadores marxistas, socialistas ou de alguma forma
pessoas de esquerda? Dificilmente, pois nada existe de mais antimarxista e de
antissocialista do que o pensamento nacionalista, chauvinista ou contrário ao saudável
internacionalismo proclamado pelo autor do Manifesto Comunista e d’O Capital. Marx
proclamava, antes de mais nada, as virtudes do capital enquanto redutor das diferenças
entre sociedades, em suas diversas etapas de desenvolvimento: ele pretendia que o
capital unificasse rapidamente as forças produtivas e as relações de produção nos cantos
mais recuados do planeta para que o exército dos proletários pudesse, finalmente, não
recusar o capitalismo, mas sim superá-lo a partir de seu acabamento enquanto modo de
produção, cedendo lugar a uma etapa superior de organização social da produção. Mas
isto eu não preciso relembrar, pois que constitui o “beabá” de qualquer marxista digno
desse nome.
O que me surpreende, apenas e tão somente, é que, ao constatar a presença de
vários “marmanjos” marxistas no movimento – com isso eu quero me referir aos mais
velhos, que ainda leram Marx, já que os mais novos parecem simplesmente ignorar as
obras do velho barbudo –, eles não tenham atinado para a existência dessa “contradição
insuperável” em seu seio: um marxista consequente deveria estar lutando em favor de
mais, não de menos, globalização, pois apenas ela é capaz de trazer para mais perto de
nós o dia da derrocada final do capitalismo e sua superação pelo socialismo.
101
A posição da antiglobalização não é, portanto, marxista ou sequer socialista. O
que de fato transparece nos muitos documentos compilados, como indicado no já citado
4º princípio, é um posicionamento dos anti contra o “processo de globalização
comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos governos e instituições
internacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos nacionais”.
Ou seja, o mal absoluto são as grandes empresas multinacionais, e quem não se
posicionar contra elas fica proibido, portanto, de frequentar os encontros do movimento.
No longo prazo, esse posicionamento pode representar uma contradição nos
termos, na medida em que o movimento antiglobalizador já se transformou, de fato, em
uma grande corporação multinacional, com representação em quase todos os países e
com várias “instituições internacionais a serviço de seus interesses”. Assim, se ele, por
acaso, numa hipótese não de todo irrealizável, conquistar governos – como parece que
já conseguiu convencer alguns e dispõe de muitos aliados em outros, inclusive perto de
nós –, ele se tornará uma força irresistível, capaz de mudar de verdade a face do planeta.
Apenas não sei se para melhor, como uma análise de algumas de suas propostas
alternativas pode demonstrar.
3. Pensando o impensado: existem idéias concretas sobre temas concretos?
Para facilitar o debate e a confrontação de idéias, entre as minhas próprias e as
que parecem defender os anti, resolvi organizar o restante deste texto em torno de
algumas questões práticas que costumam concentrar o interesse do movimento. Escrevi
“parecem” pois que o movimento não ostenta idéias oficiais, o que é compreensível,
pois que não pretende ser ou parecer “autoritário”, e não consolidou suas propostas em
um conjunto de alternativas que mereçam ter esse nome. O fato é que eles não
apresentam os meios e modos pelos quais suas “idéias” poderiam ser testadas na prática,
ou pelo menos ser objeto de simulações econométricas ou de elegantes equações de
equilíbrio ao estilo de Keynes (um profeta frequentemente invocado nesses meios).
Como os anti não apresentam esse corpus conceitual, fica muito difícil, o que já
é pouco compreensível, considerá-los pelo que eles pretendem ser, um movimento, e
não apenas um ajuntamento heteróclito de individualidades, ostentando um conjunto
heterogêneo de idéias dispersas. Apresento minhas desculpas antecipadas aos autores de
trabalhos dotados de idéias sensatas, mas a reunião de todos esses textos num mesmo
barril de baixa coerência intrínseca dá uma horrível impressão de sopa de letras.
102
Arriscando-me, portanto, a ser injusto com os detentores de idéias menos
estapafúrdias (mas, humildemente, eu os convido a me contradizer), aqui estão algumas
“idéias” defendidas pelos antiglobalizadores e meus próprios comentários a respeito.
1) Protecionismo agrícola e vantagens comparativas dos mais pobres
Vários documentos dos anti insistem numa pouco definida segurança alimentar:
segundo esses textos, se deve dar prioridade à alimentação do povo a partir da própria
região ou país, e não às exportações ou importações. Para eles, a segurança alimentar e
a sustentabilidade rural só podem existir quando um país é capaz de satisfazer uma parte
significativa de suas próprias necessidades alimentares. Esta posição transparece em
vários documentos franceses, por exemplo, e eu mesmo assisti, pessoalmente, ao
representante mais eloquente desse tipo de proposta, Bernard Cassen, da ATTAC,
defender esse absurdo na Câmara dos Deputados, em Brasília, sem que nenhum dos
parlamentares brasileiros presentes ousasse responder a tamanha sandice econômica e a
tão evidente atentado aos interesses exportadores do Brasil.
Parece evidente, aos observadores isentos, que não há qualquer “insegurança
alimentar” no mundo como um todo. Desde os tempos de Malthus, a produção agrícola
cresceu muito mais rápido do que a “produção” de indivíduos, e ainda que possa haver,
ocasionalmente, carências produtivas numa região localizada – geralmente por motivo
de guerra civil ou desastre natural –, elas podem ser rapidamente supridas via comércio
internacional ou assistência alimentar de emergência. A tese da “segurança alimentar” e
a da “multifuncionalidade agrícola” constituem disfarces canhestros do mais egoísta
protecionismo agrícola, que tanto mal faz aos povos mais pobres da Terra. Estes não
podem utilizar-se de suas vantagens comparativas, que estão todas localizadas no setor
primário, para alçar-se da miséria mais vergonhosa, mantida em grande medida graças à
concorrência desleal de um punhado de ricos agricultores subsidiados dos países mais
avançados. De resto, a indústria e ainda mais os serviços são muito mais
“multifuncionais” do que a agricultura, já que estão presentes em todas e cada uma das
nossas atividades diárias, não se podendo argumentar sobre sua localização espacial ou
eventual isolamento do mercado externo, como se faz em relação à agricultura, sem
cometer novos atentados pueris à mais simples racionalidade econômica.
Não tenho nada contra a existência da agricultura familiar, assim como nada
tenho a opor a que os países ricos subsidiem suas populações da forma como desejarem,
mas eles não podem fazê-lo opondo-se ao livre comércio de produtos agrícolas como
103
vem fazendo e sabotando a comercialização externa da produção agrícola dos países
mais pobres por meio de subvenções às suas próprias exportações não competitivas. O
protecionismo hipócrita dos países mais ricos está assim roubando, literalmente, os mais
pobres de oportunidades de desenvolvimento. A hipocrisia nesse terreno é inaceitável e
o movimento antiglobalizador não poderia se fazer cúmplice desse vil atentado aos
direitos humanos de milhões de pobres ao redor do mundo. Espero que pelo menos os
antiglobalizadores brasileiros saibam desvencilhar-se dessa armadilha que os torna
coniventes com um dos piores atentados aos direitos econômicos dos mais pobres.
2) Dívida externa, movimentos de capitais e globalização financeira
Um traço que unifica as mais diversas correntes do movimento antiglobalizador
é, sem dúvida alguma, sua oposição ao pagamento da dívida externa dos países mais
pobres e, de modo geral, à livre movimentação de capitais financeiros. Outra medida, de
caráter propositivo e não simplesmente negativo como a do cancelamento das dívidas –
traduzidas na prática por “plebiscitos” tão canhestros quanto viciados em sua indução
automática ao não-pagamento, sustentado de forma piegas na “miséria do povo” –, é a
que apresenta uma taxação sobre a movimentação de capitais, dita Tobin Tax, como
sendo o remédio milagre tanto à volatilidade financeira quanto ao problema do não
desenvolvimento dos países mais pobres. Rejeitada pelo próprio economista, James
Tobin, que sugeriu um modesto controle sobre as aplicações cambiais no momento da
derrocada do sistema de Bretton Woods, essa taxa, patrocinada especialmente pela
vertente gaulesa do movimento anti – de onde retira o acrônimo ATTAC –, não apenas
não resolveria o problema da volatilidade e da especulação, como se colocaria
frontalmente contrária aos interesses de países emergentes tomadores de recursos, como
o próprio Brasil. Neste terreno das finanças internacionais, as simplificações dos anti
são tantas e tão risíveis que resulta difícil sequer “dialogar” com representantes desse
movimento, que parecem não ter idéias mínimas sobre como funcionam os mercados
financeiros e que partes de responsabilidade compartilhada devem ser atribuídas em
momentos como os das graves turbulências financeiras dos anos noventa do século XX.
Já escrevi o suficiente sobre as crises financeiras – em especial em meu livro Os
Primeiros Anos do Século XXI, em especial cap. 10, “O Brasil e as crises financeiras
internacionais, 1929-2001” – para voltar agora em detalhe sobre seus determinantes, as
consequências econômicas de curto prazo e as possíveis lições do ponto de vista da
globalização financeira (inclusive quanto aos necessários cuidados que se há de ter em
104
relação a esse aspecto da globalização, necessariamente diferente da liberalização
comercial, que sempre provoca efeitos positivos). Não pretendo, em todo caso, contestar
argumentos infantis e desprovidos de qualquer fundamentação histórica ou factual,
como os alinhados por organizações como o “Jubileu 2000”, que promove uma
sistemática campanha em prol da eliminação da dívida externa dos países mais pobres.
Registro aqui apenas um exemplo desse tipo de argumento:
“Resolver os problemas da dívida externa implica buscar saldar uma dívida
histórica que os países do norte têm com os povos do sul como conseqüência do saque e
da devastação que neles realizaram durante mais de 500 anos”. Como se diz: contra esse
tipo de afirmação não há argumento. Sem dúvida que a dívida externa dos países mais
pobres pode e deve ser diminuída ou mesmo eliminada, em certos casos, mas uma ação
generalizada de cancelamento dessas dívidas faria mais mal do que bem ao conjunto dos
países em desenvolvimento e emergentes, já que os retiraria dos mercados voluntários
de capital por um tempo considerável, acumulando mais prejuízos do que benefícios.
Em relação aos movimentos de capitais puramente especulativos, vilipendiados
tanto pelos antiglobalizadores como por alguns “globalizadores” – como por exemplo o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – pode-se simplesmente relembrar que eles
estão em todas as partes, em especial nos países mais avançados, mas são capazes de
provocar prejuízos apenas naquelas economias que já enfrentam desequilíbrios, nas
quais a volatilidade é um dado intrínseco, não extrínseco, ao sistema. Controles podem
ser utilizados, mas não são certamente a panaceia que alguns apregoam, sobretudo na
forma permanente de restrições às entradas e saídas, de suposta paternidade keynesiana.
Movimentos mais livres de capitais, assim como maior grau de competição no sistema
financeiro contribuem para o bom funcionamento de qualquer sistema econômico, mas
níveis adequados de liquidez podem ser regulados por instrumentos tributários ao
alcance de qualquer país. Apenas a ojeriza atávica em relação aos mercados financeiros
ostentada em certos círculos esquerdistas pode justificar algumas das medidas propostas
pelos grupos antiglobalizadores: elas pertencem mais ao reino da paixão política do que
ao terreno da administração sensata das relações econômicas internacionais.
3) Competição aberta contra mercados regulados e fechados
Outro dos objetos mais frequentes da demonologia dos antiglobalizadores é o
livre-comércio, invariavelmente acusado de provocar perdas para os países mais pobres
e de concentrar ainda mais as riquezas em escala planetária. Nada poderia estar mais
105
distante da verdade. Se existe algum tipo de consenso entre os economistas, há mais de
dois séculos, é justamente o que defende os efeitos benéficos do livre-comércio para
todos os participantes da relação. Os argumentos são tão convincentes a esse respeito
que não caberia insistir na argumentação em favor da liberdade de comércio, e sim
aguardar provas mais evidentes, dos anti, de que ela provoca miséria e desigualdade.
Bastaria considerar os dados mais elementares da história e das estatísticas
atuais confrontando níveis de renda e coeficiente de abertura externa (isto é, a
participação do comércio no produto bruto) para constatar o óbvio: há uma nítida
correlação entre renda per capita e abertura ao comércio. Como ocorre nesses casos,
apenas dirigentes sindicais e agricultores dos países do norte, de um lado, e
“intelectuais” do sul, de outro, atacam o livre-comércio: os primeiros estão, é claro,
interessados nos empregos industriais ou nos mercados agrícolas protegidos em seus
países, ao passo que os segundos defendem teses abstratas, em total contradição com os
interesses de seus próprios trabalhadores.
Os argumentos em favor do livre-comércio são tão poderosos que mesmo o PT,
no Brasil, aderiu à tese, como se deduz desta afirmação, do seu candidato presidencial
em plena campanha de 2002: “Somos a favor do livre-comércio, desde que os países
possam competir em igualdade de condições” (carta-compromisso de 23.07.02), Na
verdade, a frase deveria receber um ponto final na primeira vírgula, já que a
condicionalidade proclamada não tem nenhuma razão de ser: competição em igualdade
de condições nunca existirá. Os países exibem assimetrias naturais ou criadas que se
manifestam de forma recorrente e que sustentam justamente o comércio, sendo ilusório
acreditar que elas serão eliminadas. Aliás, elas não podem ser eliminadas pois que
constituem o que se chama de base estrutural das vantagens comparativas relativas, que
é o fundamento do próprio ato de comerciar. O livre-comércio, de verdade, é sempre
unilateral, nunca condicional e restrito ao princípio de reciprocidade.
4) Instituições de solução de controvérsias em face do arbítrio comercial
Não contentes em despejar sua fúria contra o FMI e o Banco Mundial, acusando-
os de serem sustentáculos do neoliberalismo – quando as instituições de Bretton Woods
são, na verdade, instrumentos que corrigem imperfeições dos mercados –, os
antiglobalizadores ingênuos também pretendem eliminar ou paralisar a OMC, vista
como mais uma defensora das grandes multinacionais e da liberalização selvagem, o
que constitui, obviamente, outra grande bobagem. Longe de fazer pressão em favor de
106
uma completa liberalização comercial – o que, aliás, seria um grande benefício para os
países mais pobres – a organização de Genebra contribui, antes de mais nada, para
administrar de modo relativamente imparcial as formas modernas de mercantilismo, que
os países insistem em promover em lugar de aderir resolutamente aos princípios de
Adam Smith.
Na verdade, se a OMC não existisse, seria preciso inventá-la, na medida em que
ela constitui uma das poucas defesas, por meio do sistema de solução de controvérsias,
de que dispõem os países menos poderosos para lutar contra o arbítrio dos mais fortes.
A oposição consistente dos antiglobalizadores contra as rodadas multilaterais de
negociação comercial da OMC – como de resto contra a Alca e outros processos em
curso de escala mais restrita – afastam as possibilidades de que países mais pobres
possam se integrar mais rapidamente à economia mundial e daí extrair crescimento e
riqueza. Desse ponto de vista, os antiglobalizadores são altamente irresponsáveis.
5) Crescimento e pobreza, ou o que a globalização pode fazer por eles
A acusação, sempre frequente nos manifestos do movimento anti, de que a
globalização reduz o crescimento nos países mais pobres e aprofunda neles a pobreza,
não é apenas risível e desprovida de fundamentação empírica: ela é totalmente ridícula,
em face dos exemplos mais conspícuos em sentido contrário. China e Índia, dois países
pobres e dotados de instituições econômicas socialistas e dirigistas, foram os que mais
cresceram quando, justamente, se inseriram no processo de globalização, explorando
suas vantagens naturais (mão-de-obra barata) ou adquiridas (educação de qualidade, em
certas categorias de trabalhadores, e facilidades logísticas e de comunicações). Nos
dois, milhões de pessoas se alçaram de uma miséria ancestral e puderam desfrutar de
uma primeira sensação de progresso social desde gerações imemoráveis.
Na outra ponta, os dois países mais abertos ao processo de globalização, de fato
os promotores históricos desse processo desde a era da primeira revolução industrial, o
Reino Unido e os Estados Unidos, são também aqueles que apresentaram as maiores
taxas de crescimento de todos os desenvolvidos durante a terceira onda da globalização,
nos anos noventa, ostentando igualmente as menores taxas de desemprego entre os
países da OCDE. Por acaso são também os mais globalizados financeiramente e os que
mantêm o menor número de restrições aos investimentos ou em termos regulatórios.
No que se refere aos investimentos diretos, justamente, observa-se uma virtual
contradição entre, de um lado, a oposição retórica e o soberanismo vazio proclamado
107
pelos anti e, de outro, os ativos esforços de atração de capitais de risco que vêm sendo
feitos pelos países em desenvolvimento, que se mostram indiferentes ao discurso contra
as multinacionais dos primeiros. Pode parecer razoável proclamar-se a intenção de
reservar “espaços nacionais” para políticas de desenvolvimento, mas a menos de se
dispor de políticas setoriais definidas e concretas, o alerta pode parecer inócuo ou
simples manifestação de prevenção contra o investidor estrangeiro, que ele vem em
busca de objetivos muito objetivos: liberdade de ação e o maior lucro possível, nessa
ordem.
6) Concentração da renda e desigualdades
A concentração e a desigualdade na distribuição da renda podem ocorrer mesmo
na ausência do processo de globalização, como prova o Brasil na era do protecionismo
industrial e de fechamento comercial. A globalização, ao contrário, ao provocar uma
maior taxa de crescimento da economia em países menos avançados, tende a favorecer
o crescimento e, portanto, a criação de riquezas. A distribuição da renda adicional assim
criada pode não ser a mais equitativa possível, mas isso depende de um conjunto de
fatores políticos e sociais que ultrapassam a capacidade operacional da globalização.
Esta questão, de toda forma, está ligada ao papel que o Estado desempenha no
sistema econômico. Os antiglobalizadores costumam afirmar que não existe nenhuma
experiência histórica que demonstre que o mercado, por si só, logre alcançar níveis
satisfatórios de repartição de benefícios e muito menos justiça social, o que é no mínimo
uma generalização indevida. Ainda que o Estado tenha sido importante ao administrar
mecanismos tributários, compensatórios e de benefícios indiretos – escolas, hospitais e
saneamento básico, por exemplo – em favor dos mais desfavorecidos, em praticamente
todos os países, as evidências mais eloquentes em termos de crescimento da renda e de
repartição eqüitativa das riquezas geradas no setor privado estão justamente naqueles
países onde os mercados funcionaram de forma mais desimpedida e livre, não nos mais
estatizados ou controlados pelo setor público. Privatizações podem tanto concentrar
como desconcentrar a renda, dependendo da forma como são conduzidas, sem esquecer
que uma das formas mais iníquas de concentração da renda em países pobres é aquela
operada em favor de certas categorias de privilegiados estatais – funcionários da ativa
ou pensionistas – que logram transferir para si uma parte substancial da riqueza social
sob a forma de investimentos em empresas estatais ou pensões abusivas.
108
7) Tecnologia proprietária e dependência tecnológica
Da mesma forma como os capitais financeiros, patentes e direitos proprietários
em geral têm o dom de despertar paixões exacerbadas nas hostes do movimento. Talvez
seja porque aqui estão concentrados alguns dos símbolos considerados nefastos para os
antiglobalizadores: grandes multinacionais lidando com segredos industriais, extração
de lucros abusivos sobre determinadas categorias de produtos, a começar pelo remédios,
enfim, monopólio tecnológico dos ricos e dependência dos mais pobres. As demandas,
em conseqüência, vão da proibição de patentes em certas áreas (ligadas à vida e saúde),
ao licenciamento compulsório de patentes devidamente registradas de remédios de larga
utilização pública, passando pelo controle extensivo do setor pelo Estado.
De fato, o regime de patentes consagra o monopólio do detentor dos direitos
durante um certo tempo, que vem sendo paulatinamente aumentado (atualmente de 20
anos para patentes e bem mais para direitos do autor) e estendido a novas áreas, até aqui
inéditas, do conhecimento e da engenhosidade humanas. Pode-se, efetivamente,
constatar um certo exagero na proteção patentária, atualmente, mas como disse uma vez
Churchill em relação à democracia, trata-se do pior regime, à exceção de todos os
demais. Sem a promessa de ganhos trazidos pelo regime “monopólico” das patentes,
seria difícil assegurar os investimentos necessários à introdução de novos remédios nos
mercados. A existência de um regime abrangente de proteção tornou-se, assim, uma
condição do próprio desenvolvimento tecnológico nessas áreas de ponta, razão pela qual
países dotados de “baixa cultura patentária” têm sido notoriamente deficientes no
registro e na exploração de inovações, a despeito mesmo de seus progressos científicos,
como parece ser o caso do Brasil.
A dependência tecnológica é um fato, mas ela não será sequer arranhada se os
países em desenvolvimento seguirem os conselhos dos antiglobalizadores na condução
de suas políticas tecnológicas e de propriedade intelectual. Ao contrário, é provável que
a dependência se aprofunde caso suas “prescrições” sejam seguidas, uma vez que elas
não correspondem ao itinerário real dos países capitalistas desenvolvidos, e sim são
meras teses agitadas no mundo abstrato em que vivem os antiglobalizadores.
8) Meio ambiente e mercado: um instável equilíbrio
A degradação ambiental e a diminuição da diversidade biológica são fatos que
acompanham a civilização humana desde tempos imemoriais: as sociedades devastaram
a natureza e substituíram-na por paisagens humanas, assim como domesticaram animais
109
e agora tentam interferir no próprio ato de criação de novos seres vivos, desta vez ao
nível molecular, quando já o vinham fazendo há milhares de anos ao nível da seleção
das espécies. Acreditar que tais fenômenos se reduzem a um problema de mercado ou
que está ligado exclusivamente ao modo de produção capitalista é de um reducionismo
atroz e, no entanto, é isso que vêm fazendo os antiglobalizadores ecológicos.
O que eles pedem, em essência, é o afastamento dos critérios de mercado das
questões vinculadas ao meio ambiente – na OMC, por exemplo –, quando os sinais de
mercado são os únicos capazes de, ao precificarem os custos relativos de utilização e de
conservação, estabelecer um justo meio termo, por certo sempre instável, entre a
preservação ambiental e o uso sensato dos recursos naturais. A experiência das últimas
décadas, em especial nos ex-países socialistas, indica que a ausência de sinais de
mercado e a presença avassaladora do Estado na regulação do uso de recursos comuns
pode andar de par com os piores atentados ao meio ambiente de que se tem notícia.
Parece claro que a livre disposição desses recursos também pode conduzir a abusos por
parte das empresas privadas – sempre tentadas a atuarem segundo um comportamento
free-rider –, mas justamente a combinação de mecanismos regulatórios com adequados
estímulos de mercado parece mais condizente com as necessidades sociais do que um
preservacionismo radical que parece impedir, atualmente, os povos dos países mais
pobres de fazerem uso adequado de seus ainda vastos recursos naturais. Como também
indicado pela experiência histórica, as piores degradações ambientais tendem a ocorrer
nas regiões mais pobres dos países em desenvolvimento. Desse ponto de vista, as
posições assumidas pelos antiglobalizadores tendem, na prática, a perpetuar miséria e
degradação ambiental nesses países.
4. Diagnóstico de duas enfermidades precoces: autismo e esquizofrenia
Ao percorrer os inúmeros escritos – caóticos, desiguais, geralmente carentes de
método e ainda menos apoiados em estudos empíricos – dos antiglobalizadores, a
sensação que se retira é a de uma estéril e inócua anarquia mental. Aliás, uma única
conclusão parece possível a partir da leitura (penosa) dos textos dos anti: o que os
anima, na verdade, não é a criação de um “novo mundo”, ou a indicação de alternativas
reais e credíveis aos problemas deste velho mundo em que vivemos, por certo desigual e
iníquo, sob muitos aspectos, mas ainda assim infinitamente melhor do que aquele no
qual viveram nossos avós e bisavós, e assim sucessivamente até tempos recuados, e bem
mais sombrios, da história da humanidade. O que os mobiliza, de fato, são duas tomadas
110
de posição que cabe aqui considerar: um anti-capitalismo visceral e, o que é mais grave,
sua derivação sociológica, um anti-mercadismo filosófico.
Não tenho nenhum tipo de mandato para colocar-me na defesa do capitalismo,
um sistema que me parece dispensar defensores pagos ou voluntários, já que vem, ao
longo dos séculos, resistindo razoavelmente bem aos assaltos continuados de uma horda
de bárbaros anticapitalistas, desde os mercantilistas adeptos das reservas de mercado,
aos monopolistas das companhias reais de comércio, a socialistas utópicos e soi-disant
científicos”, a coletivistas fascistas e planejadores comunistas, a estatistas disfarçados
e outros dispensadores do “bem-estar social”. Pesa em seu favor o fato de não ter sido
inventado por nenhum cérebro genial, à diferença de certas soluções “inovadoras” para
minorar as misérias e sofrimentos humanos, emergindo de forma imperfeita e sempre
incompleta de um processo impessoal, não administrado centralmente, não controlado e
não controlável por nenhuma força social particular, mas resultando da combinação de
milhares de ações e reações ao longo de uma cadeia de interações sociais que deita
raízes em várias correntes constitutivas da civilização ocidental (pois é um fato
histórico, não absoluto ou excludente, que o capitalismo emergiu primeiro nas
formações sociais criadas a partir do substrato civilizatório comum do Ocidente
medieval). Tal como ele existe, o capitalismo é certamente imperfeito e desigual,
concentrador e indiferente às especificidades humanas, mas é também o sistema mais
dinâmico de criação de riqueza e de disseminação de progresso técnico que já existiu na
face da Terra. Não é eterno, certamente, mas vai evoluir gradualmente para formas
diferentes – talvez não “superiores”, num sentido moral – de organização social da
produção, sem que se possa predizer com alguma certeza como e em que condições ele
vai continuar a moldar as sociedades modernas como o fez nos últimos cinco ou oito
séculos.
É a esse sistema de remuneração pelo mérito, de prêmio pela astúcia individual,
de retorno pela dedicação ao trabalho honesto, mas também de acumulação crua (e não
raro violenta) de capitais, de genial inventividade e de brutal concentração de riquezas,
que os antiglobalizadores pretendem substituir por algum sistema de organização social
da produção e de distribuição de renda ainda indefinido, mas idealmente mais justo e
menos desigual, feito de solidariedade e de respeito aos direitos humanos, assim como
ao meio ambiente e à diversidade natural dos povos. Nada mais singelo e mais irrealista,
pois que eles não conseguem sequer entender a lógica de funcionamento do capitalismo,
111
quanto mais fazê-lo ser deslocado por um outro sistema inerentemente mais justo e mais
eficiente (por fiat natural?).
A principal dificuldade para esse tipo de empreendimento benemérito – e aqui
passo à segunda característica dos antiglobalizadores – é que no meio do caminho tinha
um mercado. Ainda que eles não queiram ou não possam admitir tal realidade, o fato é
que o mercado é muito maior do que o capitalismo, pois que perpassa todas as
sociedades, em todas as épocas e lugares. Não há sociedade sem mercados, salvo talvez
em povos muito primitivos, mas estes também conhecem formas de divisão social (e
sexual) do trabalho, que já são, pelo simples fato de existirem, um embrião dos
mercados potenciais. A economia de mercado sobreviverá ao capitalismo, quando este
já não mais fizer parte do estoque de modos de produção á disposição dos “engenheiros
sociais”, pela simples razão que ela funciona como uma espécie de sistema circulatório,
sustentando o conjunto de funções numa sociedade complexa.
Que o mercado seja contraditório, incerto, caótico e inerentemente injusto, como
parecia interpretar um espírito idealista como Marx, não implica em que possamos nos
desvencilhar dele facilmente (ou impunemente). Todas as tentativas realizadas até aqui,
a mais notória durante setenta anos, entre as planícies europeias e as estepes asiáticas,
redundaram em notórios fracassos, quando não em tragédias humanas incomensuráveis.
A recusa filosófica, digamos idealista, do principio do mercado pela maior parte dos
antiglobalizadores, sempre prontos a acusar a “mercantilização da vida” em qualquer
relação envolvendo intercâmbio de renda ou ativos patrimoniais, é algo preocupante e,
eu diria, sintomático de uma doença bem mais grave, que em psiquiatria recebe o nome
de “esquizofrenia”.
A esquizofrenia, segundo os dicionários médicos, é uma psicose caracterizada
pela desagregação da personalidade e por uma perda de contato vital com a realidade.
Antigamente conhecida por “demência precoce”, ela afeta mais particularmente os
adolescentes ou adultos até os 40 anos. Segundo o psiquiatra suíço que a estudou,
Eugen Bleuler (1857-1939), essa doença apresenta-se como uma dissociação mental, ou
“discordância”, acompanhada por uma invasão caótica do imaginário, podendo se
traduzir por distúrbios afetivos, intelectuais e psicomotores, sentimentos contraditórios
em relação ao mesmo objeto (amor e ódio, por exemplo), ou então por incapacidade de
agir, por autismo, delírio e até recusa de falar. O autismo, por sua vez, é uma ruptura
entre a atividade mental e o mundo exterior e uma introversão mais ou menos total no
mundo do imaginário e dos fantasmas (Larousse Médical, 1995).
112
Eu estaria sendo muito cruel e exagerado se acusasse os antiglobalizadores
dessas duas enfermidades: esquizofrenia e autismo? Os sintomas e as reações, em todo
caso, são muito parecidos. Como os esquizofrênicos, eles recusam ver o mundo como
ele é, preferindo descrevê-lo em tintas sombrias e catastróficas, cujos componentes têm
um único problema: o de não corresponderem à realidade dos fatos. Como os autistas,
eles se reúnem entre eles e recusam dialogar com o exterior, ou com quem não aceitar
sua Carta de “Princípios”, tão confusa formalmente quanto desconexa substantivamente.
Acredito, pessoalmente, que – à parte um “núcleo duro” de anticapitalistas
profissionais, isto é, aqueles sobreviventes do grande desastre do movimento comunista
do século XX e que ainda continuam a se perpetuar como uma seita religiosa, através de
velhos ritos litúrgicos que só desaparecerão com o passamento do último representante
da espécie – a maior parte dos integrantes do movimento antiglobalizador é composta
de jovens idealistas que desejam sinceramente a correção da piores desigualdades que
ainda dividem a humanidade em um punhado de países ricos e uma imensa periferia de
pobres e miseráveis. Eles são devotados à causa e acreditam, por indução daqueles
profissionais acima referidos ou por leituras apressadas ou enviesadas, que o velho
capitalismo, o neoliberalismo (que muitos confundem com o chamado “Consenso de
Washington”) e o sistema de mercado são efetivamente responsáveis pelas misérias do
mundo, tal como o vemos de nossas janelas, nas ruas do Terceiro Mundo ou que
aprendemos a conhecer em informações disseminadas pela internet. Esse mundo real é
realmente inaceitável e algo deve ser feito para paliar suas carências mais gritantes e
suas iniquidades mais brutais.
Apenas considero que essas misérias, injustiças e iniquidades não se devem, em
absoluto, à globalização: elas preexistem, inclusive, ao capitalismo e podem talvez
continuar a existir se, por acaso, em uma bela manhã de sol, o mundo decidisse deixar
de ser “capitalista” para ser qualquer outra coisa, proposta ou não pelos
antiglobalizadores. Os anti se enganam singularmente de inimigo, provavelmente por
falta de leituras honestas, de um estudo mais atento da realidade histórica, de um
conhecimento mínimo sobre como funcionam os sistemas econômicos e, também,
porque se deixam levar por um discurso simplista e simplificador, por parte daqueles já
mencionados acima.
Não tenho nenhuma restrição mental em acusar os “defensores do culto”, tanto
porque eu também já fui um deles, embora de uma vertente não religiosa, muito dada a
leituras de todo tipo, onde Marx era combinado a Raymond Aron, Engels a Fernand
113
Braudel e Lênin a Tocqueville. Derivei minha reavaliação dos capitalismos realmente
existentes por meio de um conhecimento não apenas teórico, mas sobretudo prático de
todos os socialismos realmente existentes (e suas pequenas e grandes tragédias sociais).
Aprendi, em especial, a reconsiderar minha análise do sistema de mercado – tal como
absorvida precocemente n’O Capital, de Marx – pelo estudo das tribos mais primitivas
do planeta, numa antropologia comparada das sociedades que em muito contribuiu para
relativizar as críticas mais candentes que os modernos socialistas faziam às iniquidades
percebidas e reais desse sistema na moderna economia capitalista.
Quero crer, com base nesses estudos e na reavaliação pessoal conduzida ao
longo dos anos, que os assim chamados “marxistas” contemporâneos – e que ainda
continuam a perpetuar ritos e instrumentos de um culto tão ultrapassado quanto inócuo,
do ponto de vista da moderna sociedade globalizada – não merecem na verdade esse
epíteto, e sim o de reacionários, pois querem fazer girar para trás a roda da história,
segundo a fórmula consagrada de Marx. Aliás, eu me considero marxista e nem por isso
deixo de ser “globalizador”, como aliás Marx o seria, se por acaso vivesse atualmente.
Por isso acredito, com base em todas as considerações que efetuei neste ensaio, que não
só os marxistas, mas também os socialistas de todas as espécies, os humanistas, os
ecologistas, as pessoas de esquerda e os progressistas em geral deveriam adotar, sincera
e devotamente, uma postura em favor da globalização – atualmente inseparável, mas
não para sempre, do capitalismo –, da qual um balanço honesto saberia nela reconhecer
o único sistema progressista realmente existente. Por progressista eu entendo, está claro,
um sistema capaz de incorporar, progressivamente, contingentes sempre crescentes de
pessoas em patamares mais elevados de produtividade, de renda e de bem estar social,
não um sistema que atenda a todas as necessidades culturais, educacionais ou de justiça
social de todas as sociedades por ele tocadas. Isto a globalização é capaz de fazer, mas
ela não poderá, obviamente, dispensar o igualitarismo social com que sonham alguns de
seus arautos ou de que a acusam vários, ou maior parte, de seus críticos.
Quero crer, também, que a maior parte dos participantes do movimento
antiglobalizador seja composta de indivíduos idealistas, que se esforçam sinceramente
por encontrar respostas aos problemas do mundo atual, por definir, como proclamado
no seu 4º princípio, as chamadas propostas alternativas para uma “nova etapa da história
do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem
como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente,
114
apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça
social, da igualdade e da soberania dos povos.”
Concordo basicamente com esse objetivo geral, idealista, contentando-me
talvez, tão simplesmente, em retirar o adjetivo “solidária” do conceito de globalização,
não por discordar da intenção, mas por considerá-la inócua e absolutamente irrelevante
do ponto de vista do processo histórico. A globalização seguirá sua marcha impessoal,
indiferente às vontades e intenções daqueles que pretenderiam atribuir-lhe qualquer
caracterização particular ou específica.
Atores sociais e líderes políticos intentarão, obviamente, moldar o processo de
globalização, tentando adaptá-lo às suas necessidades nacionais, às suas concepções
filosóficas ou a seus projetos políticos. Todas essas ações poderão, ou não, desviar,
ainda que de forma moderada, o traçado impessoal e aparentemente indomável do
processo de globalização, mas não conseguirão determinar seu curso básico, que é o da
unificação progressiva do planeta numa sociedade singular, não totalmente integrada ou
dotada de padrões uniformes (como pretendem os defensores do nacionalismo cultural),
mas tampouco fechada em arquipélagos nacionais como ocorreu até os nossos dias. As
ameaças de eliminação das diferenças culturais entre os povos, devido à importação de
bens e serviços de “cultura de massas” do atual centro imperial, são carentes de maior
substância efetiva e não deveriam ser consideradas por todos aqueles que trabalham
com a identidade nacional desses povos, como a própria experiência brasileira já o
demonstrou amplamente.
Uma leitura realista das possibilidades e limites da globalização nos permitiria
visualizar, sem paixões ou esperanças irrazoáveis, o potencial de realizações que esse
processo contraditório e indomável contém no sentido de uma transformação positiva, e
progressista, da maior parte das formações sociais integradas, de uma ou outra forma,
ao grande caudal da economia mundial. Sempre haverá aqueles que preferirão combater
moinhos de vento, em lugar de se lançar, modesta e pragmaticamente, nas pequenas e
grandes tarefas vinculadas necessariamente ao processo de globalização: a educação das
massas, a qualificação técnica e profissional dos trabalhadores, a melhoria contínua dos
padrões culturais e científicos da população, de maneira a prepará-la para usufruir
plenamente dos benefícios desse processo irreversível, bem como para fazê-la participar
com seus próprios instrumentos dessa grande dinâmica multiforme.
Os antiglobalizadores da atualidade me parecem ter adotado, por enquanto, a
atitude do avestruz, o que é próprio daqueles que se sentem fragilizados frente a uma
115
realidade que não dominam e que parece dominá-los por sua vez. As manifestações
ruidosas que conduzem nos locais e eventos típicos da atual globalização constituem um
típico combate de retaguarda, e suas teses estão condenadas a se esvair na vacuidade das
idéias mal pensadas, mal conduzidas e mal direcionadas. É de toda forma reconfortante
saber, de acordo com Marx, que a humanidade nunca deixa de oferecer soluções aos
problemas que ela mesma se coloca. Daí a razão de meu otimismo.
1297. “Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do
movimento antiglobalizador”, Brasília, 5 jul. 2004, 23 p. Ensaio, de caráter contestador,
das principais idéias e princípios do movimento antiglobalizador, discutindo seus
fundamentos, demonstrando suas contradições teóricas e insuficiências intrínsecas e
expondo sua falta de racionalidade econômica e a ausência de fundamentação histórica.
Publicado dividido em sete partes no Colunas de Relnet (n. 10, jul./dez. 2004) sob os
títulos respectivos de: 1. Contra a antiglobalização; 2. Contradições, insuficiências e
impasses do movimento antiglobalizador; 3. A antiglobalização tem idéias concretas
sobre temas concretos?; 4. A antiglobalização e o livre-comércio: angústia existencial;
5. Concentração da renda e desigualdades: a antiglobalização tem razão?; 6. No meio do
caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores; e 7. Tática do avestruz: a
antiglobalização à procura do seu mundo. Republicado de forma parcial e sucessiva na
revista eletrônica Meridiano 47: (a) “Contradições, insuficiências e impasses do
movimento antiglobalizador” (n. 49, jul. 2004, p. 9-11; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_49.pdf); (b) “A antiglobalização tem idéias concretas sobre temas
concretos?” (n. 50-51, set/out. 2004, p. 15-17; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_50_51.pdf); (c) “Contra a antiglobalização” (n. 54, jan. 2005, p.
10-12; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_54.pdf); (d) “A antiglobalização e o livre-comércio: angústia
existencial” (n. 55, fev. 2005, p. 6-7; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_55.pdf); (e) “Concentração da renda e desigualdades: a
antiglobalização tem razão?” (n. 56, mar. 2005, p. 9-10; link:
http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano56.pdf); (f) “No meio do
caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores” (n. 57, abr. 2005, p. 8-9;
link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_57.pdf); (g) “Tática do avestruz: a antiglobalização à procura do
seu mundo” (n. 58, mai. 2005, p. 13-15; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_58.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados
n: 487, 495, ??, 506, 518, 535, 541, 544, 550 e 560.
116
11. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador
Tenho mantido, desde alguns anos, um diálogo absolutamente unilateral, isto é,
sem retorno do outro lado, com o movimento antiglobalizador, o que não me impede de
conservar bons amigos nessa caótica corrente, que eu me arriscaria em catalogar, em
seu conjunto, como razoavelmente autista e passavelmente esquizofrênica. Desde já me
desculpo pelas qualificações, que podem parecer desrespeitosas, mas é que não consigo
classificar de outro modo um movimento, certamente não homogêneo, que não ostenta
argumentos a favor de algo definido – contrariando, aliás, seu slogan preferido, segundo
o qual “um outro mundo é possível” –, mas que basicamente se posiciona “contra tudo
isso que está aí”, ou seja, contra a globalização capitalista, contra o neoliberalismo, o
consenso de Washington, sem no entanto se dignar a indicar, concretamente, quais
seriam as vias alternativas. Concedo que o movimento é jovem e ainda não definiu seu
perfil exato – o seu nicho na globalização, como diriam os marquetólogos – mas dentro
em pouco ele estará completando dez aninhos, e conviria colocar as idéias em ordem.
Como eu vejo seus integrantes preparando-se ativamente para o próximo
encontro latino-americano desse movimento, a realizar-se em Caracas no final de
janeiro de 2006, resolvi sair a campo desta vez, colocando alguns elementos de reflexão
que mereceriam algum tipo de discussão nesse evento. Como também sou contra, e
nisso estou de acordo com eles, o chamado “pensamento único”, creio que estou no
direito de cobrar desse movimento algumas precisões sobre pontos fundamentais de seu
“ideário”, se é possível conceituar assim o conjunto bastante confuso de “crenças” e de
afirmações principistas que o movimento parece ostentar.
Uma única exigência poderia ser feita em termos de “bases para o diálogo”: um
mínimo de lógica formal nos argumentos e alguma sustentação na realidade. A
academia, à qual pertence a imensa maioria dos antiglobalizadores, herda supostamente
seus métodos de trabalho da antiga tradição socrática do contraditório e da procura da
verdade, o que pode e deve ser buscado no plano da lógica, mas também, e sobretudo,
segundo o velho legado baconiano da comprovação empírica, da exposição honesta dos
fatos e das conclusões e inferências que podem resultar da busca incessante de
explicações razoáveis para as evidências de que dispomos para tal ou qual problema
concreto da natureza ou da sociedade. É o que tenho procurado honestamente fazer em
117
todos os meus textos sobre a globalização (vários dos quais disponíveis no site
www.pralmeida.org).
É o que me proponho fazer mais adiante, mas quero dar antes ao movimento
antiglobalizador o privilégio de primeiro apresentar suas propostas concretas sobre o
“outro mundo possível” que tanto pregam. Afinal de contas, ninguém reúne tantas
pessoas num único lugar, desta vez aparentemente com a presença de quatro ou cinco
presidentes da região, apenas para ficar repetindo slogans ou pelo simples prazer de se
encontrar. Deve haver matéria mais substantiva a ser discutida, algo concreto, du pain
sur la planche, como diriam os colegas franceses da Attac, o movimento que primeiro
deu início a essa onda antiglobalizadora, em meados dos anos 1990.
A impressão que tenho, entretanto, é que esses irredutíveis gauleses estão
ficando “à court d’arguments”, como diriam os próprios franceses, ou seja, faltam a
eles e a seus parceiros latino-americanos argumentos concretos para sustentar o debate
em torno das principais questões da globalização contemporânea, e com isso eles
pretendem dar por encerrada a discussão. Como, de minha parte, nunca dou por
encerrada qualquer discussão – pois sempre considero que os argumentos devam ser
todos expostos, para que do debate possa surgir algum esclarecimento mais completo
em torno do problema que nos ocupa –, gostaria de continuar esse exercício em torno
das supostas idéias liberais, de um lado, e antiglobalizadoras, de outro, propondo
algumas perguntas a meus amigos do movimento antiglobalizador, que eles estão
gentilmente convidados a responder.
Tenho plena consciência de que meus esforços são absolutamente unilaterais,
pois que nunca, até o presente momento, obtive resposta ou contestação a meus muitos
escritos “antiglobalizadores” – muitos deles absolutamente provocadores, não hesito em
confessar –, mas pretendo ainda assim continuar no terreno de luta, armado unicamente
de meus instrumentos habituais: os argumentos como elementos essenciais do discurso,
a lógica como método irrecusável e a sustentação empírica e as evidências históricas em
apoio fático às minhas afirmações e propostas.
Voilà, tendo feito esses prolegômenos necessários, vamos às perguntas:
1. Quais são as evidências materiais, ou seja, provas estatísticas, dados quantificáveis,
observáveis e verificáveis, de que a globalização, como pretendem os anti, aprofunda
a miséria, cria mais desemprego e acarreta mais desigualdades no mundo? Isso vale
tanto para dentro dos países, como entre os países, esclareço.
118
2. Se as políticas liberais só conseguem produzir recessão e desemprego, privilegiando
unicamente os setores financeiros – o capital financeiro monopolista internacional,
como se dizia antigamente –, por que, exatamente, os países que mais crescem e que
ostentam as menores taxas de desemprego são, justamente, esses ditos “neoliberais”?
3. Se o “consenso de Washington” fracassou redondamente na América Latina, por que
os países que mais são contrários às suas regras não são, longe disso, exemplos de
crescimento, de dinamismo e de inserção competitiva na economia internacional? E
por que, a contrário senso, os países que mais se identificaram com essas medidas
“neoliberais”, a começar pelo Chile, conseguem ostentar taxas sustentadas de
crescimento, ao mesmo tempo em que fazem progressos no caminho da redução das
desigualdades distributivas e da qualificação competitiva de suas economias?
4. Se os processos de abertura econômica e de liberalização comercial significam, ipso
facto, sucateamento da indústria e desmantelamento de setores inteiros da economia
nacional, como explicar as evidências de que países que adotaram essas medidas de
modo unilateral, como o Brasil do início dos anos 1990, por exemplo, registraram,
nesses anos justamente, as maiores taxas de crescimento da produtividade, além de
ganhos significativos e comprovados de competitividade internacional?
5. Se as regras liberais impõem, como acusam os antiglobalizadores, total liberdade aos
movimentos de capitais e a plena abertura cambial, o que facilitaria as atividades
especulativas nos mercados de divisas, como explicar o fato que de que a Argentina,
no auge do seu “fundamentalismo liberal”, impunha a rigidez cambial, em direção
oposta aos regimes cambiais praticados pela maior parte dos países e contrariamente
ao que sempre prega o FMI em caso de correção de desequilíbrios de balanço de
pagamentos?
6. Se a flexibilização neoliberal do mercado de trabalho produz desemprego e perda de
direitos consagrados, resultando em precarização ampliada das relações de trabalho e
terceirização, por que os países que mais adotaram essa postura são os que exibem as
menores taxas de desemprego e o maior crescimento da produtividade do trabalho?
7. Se o livre-comércio internacional acarreta desigualdades crescentes e dependência de
empresas multinacionais, o que compromete políticas públicas, macroeconômicas e
setoriais, por que os países, ou melhor, as economias que mais se inseriram nos
fluxos internacionais de intercâmbio comercial são as que melhoraram de padrão de
vida, viram o surgimento de suas próprias multinacionais e diminuíram, justamente,
sua dependência de alguns poucos mercados de matérias-primas ou manufaturados
leves, que são dominados por alguns poucos oligopolistas mundiais?
8. Se os direitos de propriedade intelectual são inerentemente injustos, transferindo
renda dos países mais pobres para os mais ricos, condenando os primeiros a uma
“eterna dependência tecnológica” dos segundos, por que países como China e Índia,
que são ainda relativamente pobres para os padrões internacionais, estão aderindo de
forma crescente a normas mais elevadas de proteção patentária?
9. Se os investimentos estrangeiros são criadores de maior dependência econômica e de
remessa ampliada de divisas e de royalties para o exterior, por que tantos países em
desenvolvimento vêm aumentando o volume e a qualidade da proteção dada ao IDE,
119
assinando acordos de garantia de investimentos e assegurando livre transferência dos
resultados produzidos?
10. Se já existem evidências concretas de que as políticas agrícolas, subvencionistas e
protecionistas, de países desenvolvidos, como os EUA, a União Europeia e o Japão,
entre outros, são absolutamente condenáveis, em primeiro lugar em função de sua
inerente irracionalidade econômica, em segundo e principal lugar em virtude do
enorme prejuízo trazido aos países mais pobres, por que os movimentos
antiglobalizadores, que dizem atuar em prol do desenvolvimento e da inserção dos
mais pobres e do bem estar de suas populações, não são mais incisivos na oposição a
essas políticas?
11. Se os países em desenvolvimento são, por definição e historicamente, importadores
líquidos de capitais dos países mais ricos, por que os movimentos antiglobalizadores
insistem tanto na adoção de uma taxação internacional sobre os movimentos de
capitais, sabendo-se que esse novo imposto irá necessariamente aumentar o custo dos
empréstimos e de captação de recursos financeiros nos mercados livres?
12. Finalmente, se mercados livres já provaram, ao longo da história, sua funcionalidade
absoluta do ponto de vista da modernização tecnológica, dos ganhos de
oportunidade, da distribuição de renda via especialização produtiva e outros
benefícios indiretos da livre circulação de fatores, por que os antiglobalizadores, e
com eles o contingente bem maior de protecionistas de todos os tipos, insistem tanto
na administração política dos mercados internacionais, como se os governos
soubessem melhor do que agentes econômicos ou do que os indivíduos
consumidores o que é melhor para o bem estar dos cidadãos dos mais diversos
países?
Voilà: deixo aqui algumas perguntas para as quais eu apreciaria muitíssimo
dispor de respostas pelo menos tentativas por parte daqueles que se identificam, de
perto ou de longe, com o movimento antiglobalizador. Elas podem também servir de
sinalização para o próximo encontro dos anti, a ser realizado neste final do mês de
janeiro de 2006. Respostas eventuais para a minha caixa postal, por favor...
1530. “Perguntas impertinentes a colegas que me acusam de ser ‘liberal
fundamentalista’”, Brasília, 12 janeiro 2006, 4 p. Perguntas incômodas aos que
defendem as posições do movimento antiglobalizador. Feita versão diferente, sob o
título “Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador”, para publicação no
boletim Meridiano 47 (n 65, dezembro 2005, p. 2-4; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_65.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 666.
120
12. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes
equívocos
Os militantes do Fórum Social Mundial já começaram a preparar o próximo
conclave anual do movimento. Esse encontro está marcado para a capital do Quênia,
Nairóbi, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. As organizações participantes do FSM –
nem todas as que gostariam de ser podem sê-lo, pois todas precisam concordar com a
plataforma antiglobalizadora da qual elas se orgulham, o que significa que não se
admitem discordâncias e desvios do “pensamento único” que defendem – elaboraram,
em 2006, um conjunto de objetivos gerais que expressam, presumivelmente, a visão do
mundo de seus militantes, quando não sua filosofia de vida.
Pretendo, no presente texto, transcrever esses nove objetivos gerais, tais como
expressos no site do FSM, e tecer, em seguida, comentários pessoais sobre cada um
deles, agregando a cada vez argumentos de natureza conceitual e histórica sobre o que
me parece correto e o que considero serem equívocos dos “ideólogos” desse movimento
(“ideólogos”, aqui, no bom sentido da palavra, isto é, como produtores de idéias). Faço-
o num puro espírito de debate intelectual, que geralmente ocorre de modo unilateral,
pois raramente tenho encontrado antiglobalizadores que aceitem debater suas “idéias”.
Não importa. Vejamos simplesmente o que eles têm a dizer.
Cito, do site e de mensagem recebida em 2 de janeiro de 2007:
“Veja a seguir a lista completa dos nove objetivos gerais, que foram definidos a partir
de consulta realizada entre junho e agosto de 2006 sobre ações, campanhas e lutas em
que estão envolvidas as organizações participantes do FSM:
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades
diversas;
2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza;
4. Pela democratização do conhecimento e da informação;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de todas as
formas de discriminação;
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, especialmente os
direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e trabalho digno;
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e
nos direitos dos povos;
8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade;
9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições com a
participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos públicos.”
Fonte: Reunião do Conselho Internacional do FSM, em Parma, Itália, 10-12 de outubro
de 2006; link:
http://www.forumsocialmundial.org.br/main.php?id_menu=7&cd_language=1.
121
Comentários sobre os objetivos do FSM:
Meus comentários serão puramente de natureza sociológica ou econômica, uma
vez que a maior parte dos objetivos dos integrantes do FSM tem a ver com a
organização social, política e econômica no plano mundial e com as formas de serem
encaminhados alguns dos problemas com que se debate a humanidade, em especial a
pobreza, a desigualdade, os desequilíbrios ambientais, sociais e de gênero, com seu
cortejo de injustiças a serem remediadas. Acredito que a maior parte dos integrantes do
FSM seja formada por jovens idealistas, efetivamente preocupados com os problemas
que eles dizem pretender combater, embora uma parte significativa dos que poderiam
ser identificados como dirigentes, os seus “ideólogos” – aqui no sentido marxista da
palavra –, ostente uma nítida postura anticapitalista e antimercado que não pode ser
negligenciada.
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas
espiritualidades diversas;
Irreprocháveis e irretocáveis os três primeiros objetivos, embora o último, o de
serem respeitadas as “espiritualidades diversas”, se parece muito com o chamado
“relativismo cultural”, um conceito que passou a infestar as universidades ocidentais e
as sociedades cristãs no período recente. Ou seja, em nome do respeito ao direito dos
povos serem como eles são, pode-se acabar sendo conivente com os piores atentados à
dignidade humana que se possa conceber. Refiro-me, concretamente, ao tratamento da
mulher e das jovens adolescentes em determinadas sociedades africanas e asiáticas, nas
quais não apenas se pratica a ablação do clitóris como se costuma entregá-las
compulsoriamente, segundo conveniências familiares, a homens bem mais velhos, em
casamentos arranjados (em alguns casos quando elas ainda nem se tornaram
adolescentes). Sem mencionar a discriminação educacional e profissional, de modo
geral, que elimina as mulheres de uma série de atividades produtivas nessas sociedades,
caberia lembrar que o que distingue o progresso humano – ou civilizatório – é
justamente o tratamento dado à mulher.
Ora, falar em relativismo cultural representa, em determinadas circunstâncias,
preservar as piores formas de opressão e de violação dos direitos humanos, culturais e
até religiosos (uma vez que essas mesmas sociedades convivem com formas
condenáveis de intolerância religiosa), sem que se possa avançar, por exemplo, a causa
da universalidade e da indivisibilidade desses mesmos direitos humanos (individuais ou
122
coletivos). De resto, o respeito às “espiritualidades diversas” é bem mais praticado nas
sociedades ocidentais do que nessas sociedades implicadas nas formas mencionadas de
discriminação, sem que se levante, contra elas, o mesmo princípio do “relativismo
cultural” (uma vez que o que as caracteriza, justamente, é um absolutismo a toda prova
na afirmação de suas particularidades espirituais e culturais). Em resumo, a defesa da
ética pode não combinar com o respeito de “espiritualidades” que ofendem a dignidade
humana.
2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro;
Incompreensível, impraticável ou simplesmente quimérico, para não dizer
totalmente irracional, na sua forma e na substância. O modo de produção capitalista,
que se disseminou em todo o mundo nos últimos cinco séculos, aproximadamente, está
justamente baseado numa forma de organização social da produção que tem nas
empresas – eventualmente convertidas em grandes conglomerados – o seu principal
vetor de inovação produtiva, de distribuição de produtos e de propagação de hábitos de
consumo que derivam diretamente da atividade dessas instituições de mercado. Ainda
que as formas individuais de criação de conhecimento e de tecnologia possam
representar uma parte significativa do engenho humano aplicado produtivamente, ainda
que as empresas cooperativas – que certamente são defendidas pelos militantes do FSM
– possam ser um tipo de empreendimento socialmente recomendável, nenhuma pessoa
sã de espírito negaria o fato de que, hoje em dia, parte significativa das inovações e dos
sistemas produtivos se dão num contexto dominado por grandes empresas, as
multinacionais aparentemente vilipendiadas pelos militantes do FSM.
Não considerando o fato de que eles também pertencem, atualmente, a um
grande empreendimento multinacional – que, de certa forma, também apresenta o seu
lado financeiro (do contrário eles não poderiam realizar seus vistosos encontros em
capitais “alternativas”) –, esses militantes parecem viver num universo paralelo, que não
tem nada a ver com o mundo real. Para esse tipo de objetivo ser cumprido, eu só teria
uma única recomendação a fazer: os militantes do FSM precisariam parar,
imediatamente, de usar celulares, de se comunicar por internet, de se locomover pelos
meios habituais de transporte, de ir ao cinema, de ver televisão, enfim, parar de fazer a
maior parte das coisas que eles fazem no seu dia-a-dia, uma vez que, inevitavelmente,
eles estão “patrocinando” uma ou outra multinacional de algum setor qualquer de
atividade. Ou seja, eles deveriam se retirar do mundo globalizado – no qual eles
123
parecem se inserir tão bem – e se refugiar como eremitas nas montanhas do
Afeganistão, onde a globalização aparentemente ainda não penetrou (nem, aliás, o tal de
“capital financeiro”).
Como esse objetivo deve ter sido inculcado nos jovens idealistas que frequentam
os foros da antiglobalização por velhos militantes da causa socialista, deve-se alertar
esses jovens que eles estão embarcando numa causa perdida antecipadamente. O mundo
não será “libertado” das vis multinacionais porque, simplesmente, não existe força
humana, sequer coletiva, capaz de realizar tal tarefa impossível. Sugiro, simplesmente,
borrar completamente esse objetivo da lista do FSM.
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da
natureza;
Simples e elogiável, dito assim, de modo generoso e não utilitarista; ou difícil de
ser realizado na prática, se olharmos mais de perto cada um desses conceitos. “Acesso
universal” significa que todas as sociedades possam ser colocadas num mesmo patamar
de consumo e de dispêndio de energia. Algo difícil de ser realizado efetivamente, em
vista das diferentes dotações de fatores naturais e dos diferentes níveis de produtividade
do trabalho humano. O “acesso” é o resultado de certa capacitação técnica – que pode
ser inerente ou importada, mas aqui isso depende de meios adequados – no atendimento
das necessidades humanas, triviais e não triviais, o que as sociedades conhecidas ainda
não conseguiram assegurar de modo igualitário mesmo depois de cinco mil anos – ou
mais – de civilização material. Infelizmente esse acesso é desigual, a despeito, mesmo,
da disseminação quase universal das técnicas mais elementares de cultivo, de
saneamento básico e de produção de alimentos: a privação ainda é um traço muito
comum em pelo menos metade da população do planeta em pleno segundo milênio da
chamada era comum. Esse acesso desigual não resulta, como gostariam de acreditar
alguns simplistas do pensamento socialista, da exploração colonial ou da dominação
imperialista, mas sim dos diferenciais de produtividade do trabalho humano, o que
depende basicamente de educação ou, simplesmente, de capacitação técnica.
Acesso “sustentável” significa que os sistemas produtivos nacionais não
destruam os recursos naturais, além da capacidade de reprodução ou de manejo do meio
ambiente, o que justamente não é assegurado nas sociedades dotadas de baixa
produtividade. Trata-se de um circulo vicioso, no qual a pobreza amplia a destruição
dos recursos existentes. A elevação dos padrões produtivos, em geral vinculada à
124
inovação trazida por grandes empresas (às quais se opõem os militantes do FSM), pode
contribuir para diminuir o grau de “insustentabilidade” dos processos produtivos
“rústicos”. Desse ponto de vista, os militantes do FSM deveriam patrocinar ativamente
essa elevação a padrões sustentáveis de produção, por quaisquer meios disponíveis, o
que implicaria, em princípio, a aprovação da “penetração” das multinacionais nos
sistemas produtivos nacionais, algo aparentemente inaceitável aos seus olhos.
Finalmente, o conceito de “bens comuns” está associado a dois elementos cada
vez mais presentes em nossas vidas: por um lado, os grandes espaços naturais (ainda)
não delimitados politicamente por soberanias exclusivas, o que inclui oceanos,
atmosfera e o meio ambiente, de modo geral, mas também o chamado estoque
acumulado de conhecimento humano, o que inclui as descobertas, a produção científica,
os saberes e as artes, que podem constituir patrimônio comum da humanidade; por outro
lado, aumentam progressivamente os bens culturais colocados voluntariamente à
disposição do público, conhecidos pela sigla “cc”, os creative commons, ou “coletivos”,
no lugar dos direitos proprietários, vinculados ao copyright. Não existe, a priori,
nenhuma objeção técnica a que essa apropriação de “bens comuns” se faça de modo
mais amplo, mas no plano prático isso depende de meios de “delivery” – ou seja,
internet, computadores e logística, de modo geral –, que sempre apresentam custos que
devem ser assumidos por alguém (a coletividade ou instituições privadas, que não
costumam trabalhar de modo gracioso). Talvez os militantes do FSM pudesse começar
contribuindo para essa causa colocando “em comum” as suas discussões e foros, hoje
restritos apenas aos que concordam com suas posições e políticas.
4. Pela democratização do conhecimento e da informação;
Este objetivo tem muito a ver com o anterior e, como ele, depende da
disseminação das informações – o que depende, mais uma vez, de meios técnicos de
acesso – e da disponibilidade dos conhecimentos. Os conhecimentos que resultam de
descobertas e da produção científica estão prática e livremente disponíveis, de modo
direto e imediato, nas bases de dados abertos colocados na internet. Existe, porém, uma
outra parte do conhecimento, com aplicações diretas no sistema produtivo – que é
tecnologia ou know-how –, que exige grandes investimentos para sua elaboração, sendo
geralmente protegida por regimes proprietários (patentes e outros títulos).
Supõe-se, portanto, que por “democratização” os militantes do FSM queiram
dizer, de modo direto, o maior acesso possível, não necessariamente de modo gratuito,
125
mas eventualmente por via do mercado, a instituição humana – não inventada – mais
eficiente que já se descobriu para alocar recursos e fatores produtivos e para distribuir
bens e serviços (inclusive informação). Pode-se propor, mais uma vez, que os militantes
do FSM comecem democratizando a informação e o conhecimento de que já dispõem,
criando escolas para formação básica em disciplinas elementares para aquela parte da
humanidade hoje excluída dos sistemas formais de ensino.
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de
todas as formas de discriminação;
Nada, absolutamente nada, a objetar, a não ser o mesmo tipo de argumento
implícito ao primeiro objetivo, que consiste na proclamação praticamente universal de
direitos e garantias individuais, sem um mínimo de perspectiva crítica quanto à
diversidade “estrutural” existente no mundo. As desigualdades remanescentes – ou
melhor, existentes, de fato – entre os homens (entre os gêneros, sobretudo) e as
sociedades não são, apenas, produto da vontade dos homens e das sociedades, mas
resultam de causas estruturais muito lentas a se implantarem e ainda mais lentas a se
dissolverem. Esse objetivo está implícito a um dos grandes objetivos do milênio, tal
como definido pela conferência da ONU para sua redução até 2015; mas ele será,
provavelmente, o de mais difícil erradicação da face da Terra, em especial naqueles
territórios e sociedades pouco afetados pelo processo de globalização, o mais poderoso
indutor de modernização econômica e social que se conhece na história da humanidade.
Pena que os militantes e as organizações do FSM sejam tão acidamente contrários a este
processo, em nome da preservação, justamente, da diversidade dos povos, esquecendo,
talvez, que essa “diversidade” é muitas vezes produtora de discriminações que têm suas
raízes em costumes ancestrais que caberia extirpar, em nome, por exemplo, da
dignidade da mulher.
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais,
especialmente os direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e
trabalho digno;
Mais uma vez, nada a objetar, a não ser, igualmente, o fato de que esses
“direitos” têm de ser “produzidos” de alguma forma, o que coloca novamente na agenda
dos militantes do FSM a difícil questão de nos explicar a origem da “cornucópia”
fantástica que vai “garantir” esses bens de modo semiautomático. Em geral há uma
tendência, nesses meios, a considerar que basta determinar que os Estados sejam
126
organizados de forma a “prover” o acesso de toda a população a esses direitos básicos,
independentemente do seu modo efetivo de provimento, para que isso ocorra, como que
por fiat divino. É o que Marx e Engels chamavam de “socialismo utópico”.
Trata-se de uma carência lamentável na “economia política” desses movimentos,
uma vez que eles estão sempre invocando o slogan mágico de que “um outro mundo é
possível”, sem jamais, porém, avançar os rudimentos, que seja, desse mundo
alternativo. Dele não se conhecem seus contornos arquitetônicos, sua localização no
tempo ou no espaço e, mais importante, suas engrenagens essenciais, ou seja, seu modo
de funcionamento interno. A não ser que ele funcione por moto perpétuo, como no
velho sonho dos reformistas utópicos, não existe nenhuma maneira factível (conhecida
dos economistas, em todo caso) que seja capaz de assegurar o livre provimento desses
bens de maneira ampla e indiscriminada, a não ser distribuindo os custos e as penas do
processo produtivo por toda a sociedade. Como o Estado, em si, não produz
absolutamente nada – a não ser, obviamente, déficit público – e como tudo o que ele
recolhe sob forma de recursos teve de ser previamente produzido pelos agentes
econômicos (que são os trabalhadores e seus patrões), supõe-se que os militantes do
FSM já tenham pensado em modos alternativos de “dar” ao Estado o poder mágico de
dispensar favores sem custo para a sociedade.
Curiosamente, pelo que se conhece da experiência histórica – dos últimos 150
anos, pelo menos –, as sociedades menos aptas a prover seus cidadãos de quantidades
ilimitadas desses bens materiais (e alguns “espirituais”, como a cultura ou a liberdade)
são justamente aquelas mais dominadas pela presença econômica do Estado enquanto
agente ativo do processo produtivo. Ao contrário, as sociedades mais produtivas – e as
que desfrutam de maior liberdade, também – foram e são aquelas cujos princípios
organizadores dão menos ênfase ao papel do Estado e maior à própria sociedade civil,
no seu sentido estritamente produtivo. A objeção de que as sociedades mais avançadas
do mundo, no plano do IDH, por exemplo, são as escandinavas ou nórdicas, nas quais o
Estado desempenha um preeminente papel redistributivo, não pode ser considerada
como uma denegação dessa tese, uma vez que o direito à propriedade privada, em sua
expressão plena, e a capacidade de iniciativa individual estão nelas totalmente
asseguradas. O próprio Estado está nelas integralmente controlado pelas forças vivas da
nação, como sabem reconhecer todos os que conhecem o modo de funcionamento das
sociedades nórdicas.
127
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na
autodeterminação e nos direitos dos povos;
No plano jurídico, tampouco haveria algo a objetar a esse objetivo inatacável do
ponto de vista democrático, praticamente kantiano em sua inspiração. Ocorre, porém,
que a ordem mundial não está baseada na representação dos povos, mas sim na
organização dos Estados, e aqui começa todo o problema. Como sabem aqueles que já
leram a Carta da ONU, ela começa invocando no preâmbulo os “povos das Nações
Unidas” – que são aqueles que derrotaram as “potências do mal”, no caso, a Alemanha e
o Japão – mas todos os seus enunciados ulteriores referem-se, não a “povos”, mas aos
“Estados membros”. O Estado nacional é a forma política até aqui insuperável que a
humanidade encontrou para organizar esse arremedo de “ordem mundial” que temos
hoje.
Em outros termos, a soberania que temos hoje é a westfaliana, baseada no velho
princípio da não-subordinação de um Estado a um outro (em teoria, pelo menos). Da
mesma forma, a autodeterminação tem mais a ver com o direito dos governos decidirem
em toda legitimidade a ordem interna em suas respectivas jurisdições do que com os
direitos dos povos em exercer, diretamente, esse direito, do contrário a ONU não
poderia aceitar em seu seio governos não democráticos (ou ditaduras execráveis), o que
sabemos que tampouco é o caso. Os “direitos dos povos”, por fim, poderiam estar
consubstanciados na Declaração de 1948, mas ela se refere aos direitos do homem, tão
facilmente negados em certos regimes que integram, de pleno direito, a ordem mundial
regida pela ONU.
A soberania nacional tem sido justamente invocada como um biombo muito
cômodo para a violação dos mais elementares “direitos dos povos”, a começar pela
segurança e pela liberdade. Os militantes do FSM dariam um grande passo adiante, na
defesa dos “direitos dos povos”, se eles se decidissem a lutar, justamente, pelo fim da
soberania absoluta dos Estados como próxima fronteira na construção do direito
internacional, colocando como princípios organizadores dessa “ordem mundial dos
povos” o respeito à democracia política e a defesa absoluta dos direitos do homem (e do
cidadão) como critérios de “inclusividade” na nova ordem onusiana. Movimentos que
não pretendem representar os Estados, mas os cidadãos, precisamente, deveriam pensar
nesse tipo de progresso conceitual no terreno do direito internacional. (Eles não
precisam me agradecer pela ideia, basta usar, sem qualquer tipo de copyright.)
128
8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade;
Pelo que eu conheço dos princípios econômicos elementares, toda e qualquer
economia é baseada nos povos e na sustentabilidade, do contrário ela já teria
desaparecido da face da Terra. Em outros termos, esse objetivo geral não quer dizer
absolutamente nada, a não ser que os velhos “ideólogos” do FSM – não os seus jovens
idealistas, entre os quais podem estar alguns que já estudaram o seu manual de
economia, o famoso text-book Economics 101 –, queiram significar com isso que a
economia não pode se sustentar nos mercados, nas trocas mercantis e na busca
desenfreada de lucro, o que é muito mais provável, se eu conheço a fauna do FSM.
Não é segredo para ninguém que as organizações que militam no FSM abrigam
um número considerável – preponderante mesmo, eu diria – de pessoas que rejeitam,
quase como um anátema, a peste em pessoa, o capitalismo, os mercados, o lucro, enfim,
tudo aquilo que se assemelhe, de perto ou de longe, a formas de apropriação privada dos
meios de produção e a formas mercantis de distribuição de bens e serviços. Seu ideal
seria um mundo que funcionaria sem mercados, sem dinheiro, sem capitalismo e,
sobretudo, sem capitalistas, o que seria o máximo de genialidade possível. Infelizmente
para os órfãos do socialismo estatal e para os viúvos do planejamento centralizado, o
embate entre modos de produção já se deu nos bastidores da história e, pelo que eu sei,
o capital venceu. Tudo isso pode não ser muito agradável para os idealistas de sempre (e
para alguns rancorosos irredentistas), mas a história tem dessas coisas que, de vez em
quando, resultam no soterramento definitivo de paquidermes pouco adaptados às novas
condições ambientais. Pode-se até chorar uma lágrima pelo desaparecimento desses
monstros simpáticos do passado, mas não se pode pretender sua sobrevivência em
contradição com os novos dados da história (ou até da “geologia” econômica).
Quero crer que os que redigiram este objetivo geral estejam entre a dor pungente
de terem perdido um ente querido e a confusão mental de não terem absolutamente nada
para colocar em seu lugar, do contrário não teriam formulado um objetivo tão “sem pé
nem cabeça” como esse. Eu proponho simplesmente que os militantes do FSM retirem
esse objetivo da sua lista, refaçam o dever de casa e voltem depois com algo melhor,
isto é, algum objetivo que tenha consistência econômica ou, pelo menos,
sustentabilidade lógica.
129
9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições
com a participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos
públicos.
Nenhuma objeção, no terreno dos princípios. Ocorre, porém, uma pequena
dificuldade que esse princípio, plenamente assegurado em polities relativamente
diminutas, como aquelas que se reuniam na ágora grega dos tempos de Péricles – ou,
ainda hoje, em algumas aldeias de cantões recuados da Suíça moderna –, é um pouco
mais complicado de ser assegurado em alguns países de dimensão continental:
experimente reunir a população da China, ou que seja da cidade do México, para uma
discussão “democrática” sobre o uso dos recursos públicos. Complicado, não é mesmo?
Esse democratismo de base é muito fácil de ser proclamado, mas muito
complicado de ser implementado nos modernos regimes democráticos, que organizam
povos disseminados por um vasto território. Foi, aliás, por isso mesmo que se inventou
a instituição da representação política, plenamente assegurada na maior parte das
democracias modernas. Justamente, as organizações que militam no FSM são as menos
propensas a pregar esse tipo de controle democrático sobre as decisões e quanto ao uso
dos recursos, uma vez que, elas mesmas, raramente se submetem ao princípio que
pregam: estruturas democráticas pressupõem voto aberto, respeito aos direitos da
minoria e equilíbrio de poderes, com controle independente das decisões adotadas e
escrutínio externo quanto ao uso de recursos (tribunais constitucionais e cortes de
contas, segundo as regras dos checks and balances). No Brasil, sobretudo, onde grande
parte das ONGs vivem de recursos públicos – segundo pesquisas confiáveis –, a
chamada accountability dos movimentos ditos “sociais” é algo ainda mais difícil de ser
assegurado.
Proponho, então, que os militantes do FSM refinem esse último conceito,
consultem o seu Norberto Bobbio em algum fim de semana mais folgado – depois do
próximo encontro, talvez – e voltem a se reunir em Parma para redigir um novo objetivo
geral que seja menos “democratista” em seus princípios básicos e mais realista em suas
aplicações práticas.
De modo geral, comparando-se o mínimo de estruturação conceitual que se
registra hoje em alguns dos textos dos militantes do FSM com a grande confusão mental
que reinava em seus primeiros encontros – da fase de Porto Alegre –, percebe-se que os
chamados altermundialistas (que eu prefiro chamar de antiglobalizadores) estão fazendo
130
um grande esforço para afinar as suas idéias, tanto quanto se percebe, e tentam,
honestamente, se ouso dizer, fazê-las encontrar-se com a realidade do mundo. Mas, eles
ainda estão bem longe da “realidade efetiva das coisas”, como diria um outro filósofo
italiano (totalmente globalizado, cabe registrar).
Atualmente, em todo caso, em lugar dos jamborees anuais, nos quais o maior
esforço de transpiração consistia em xingar o imperialismo, em lugar de uma saudável
inspiração mental, nota-se o sincero desejo de oferecer algumas respostas mais ou
menos estruturadas aos problemas complexos com que se defrontam os povos (que eles
dizem representar). Mais algum esforço e um pouco mais de organização – porque
globalizados eles já estão, talvez até mais do que os seus odiados “primos” capitalistas
de Davos –, os altermundialistas justificarão finalmente o nome pelo qual pretendem ser
chamados: eles ainda precisam oferecer uma forma alternativa, mas factível, de
organização social da produção que não seja inerentemente injusta e desigual como
atualmente o é a capitalista. Eu, pessoalmente, desconfio que, antes disso, muitos desses
militantes se converterão em sisudos capitalistas alternativos. Mas isso faz parte do
processo.
Em todo caso, eu desejo a todos um bom encontro em Nairóbi. Continuem
sonhando!
1708. “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”,
Brasília, 3 janeiro 2007, 10 p. Comentários aos nove objetivos gerais dos
antiglobalizadores do FSM, para o encontro de Nairóbi (21-24/01/2007).
Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; ISSN:
1518-1219). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados nº
738.
131
13. Fórum Surreal Mundial: pequena visita aos desvarios dos
antiglobalizadores
1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?
Os participantes do próximo conclave do Fórum Social Mundial, a realizar-se
em Belém, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 2009, podem congratular-se por serem
os mais globalizados do planeta: eles desfrutam, provavelmente, de 100% de inclusão
digital por meio da internet (sem considerar celulares e outros gadgets do mundo
moderno), ou seja, fazem uma utilização plena das possibilidades abertas pela atual
sociedade da informação. Todo o processo de informação preliminar sobre o FSM, de
convocação e de mobilização preventivas, assim como o registro simultâneo e
instantaneamente disseminado de suas ruidosas reuniões, colocadas (escusado dizer)
sob o signo da antiglobalização, todo ele terá sido assegurado e efetivamente realizado
100% online, isto é, sob o signo do mundo virtual, que é praticamente um sinônimo da
globalização.
E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização
se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios
mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de
informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não
parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de
expressão? Eu – como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de
irracionalidade – respondo imediatamente que SIM.
Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente
constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível
universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em
que vivemos – ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus
deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e
dos direitos humanos – consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite
serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um
mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso,
apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também)
reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em
seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo
o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o
132
mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas
concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se
eximindo – como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias – de
trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a
globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no
momento oportuno.
Podemos perdoar a inconsequência política e cultural desses jovens – que parece
ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja,
daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco
em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo
sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade
organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas
e totalmente inconsequentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso
globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e
sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista
(forçosamente assimétrica).
Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização,
esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo
ultrapassado, hoje quase surrealista – entre os quais podemos identificar vários
acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do
altermundialismo, de origem francesa – não sofram de um mal bem mais grave e
infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade
intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização
capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de
globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem
pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual
desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou
consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde
estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e
comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados.
Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos
argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a
preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que
seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os
133
identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos
em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus
problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo
do capitalismo perverso e da globalização assimétrica.
2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de ideias?
O primeiro conjunto é formado por uma espécie de decálogo que eles vêm
digerindo há algum tempo e que são definidos como os “objetivos de ação para o evento
de 2009”. Ora, isso revela preguiça intelectual dos antiglobalizadores, posto que esses
objetivos não são novos, tendo sido elaborados anteriormente, mas apenas em número
de nove objetivos, por ocasião de reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada
em Parma, Itália, de 10 a 12 de outubro de 2006. Na época, esses nove objetivos se
destinavam a servir como documento preparatório ao FSM de 2007, realizado em
Nairobi, no Quênia, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. Eles foram objeto de meus
comentários (mas também podem ser lidos por inteiro) em texto já publicado sob o
título: “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, in
Meridiano 47 (n. 78, janeiro de 2007, p. 7-14; link:
http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI –
movimento dos sem internet –, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos
antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus
comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos
de 2006-2007:
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades
diversas, livre de armas, especialmente as nucleares;
2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação
imperialista patriarcal, colonial e neocolonial e de sistemas desiguais de comércio,
com cancelamento da dívida dos países empobrecidos;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza,
pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das
florestas e fontes renováveis de energia;
4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da
comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes,
com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração,
orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas
(discriminação baseada na descendência);
134
6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos,
sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde,
educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com
garantia de segurança e soberania alimentar);
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação
e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes;
8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada,
emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo;
9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas –
locais, nacionais e globais – realmente democráticas, com a participação da
população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos.
Pois bem: confirmando o torpor mental dos antiglobalizadores – ou a sua
completa falta de novas idéias, mesmo desinteressantes –, esses nove objetivos são
reproduzidos ipsis litteris num post que li no site do FSM, sob o título de “Rumo a
Belém”; são apresentados como “Os 10 objetivos de ação para o Fórum Social Mundial
2009”. Claro, está faltando um, que eles prepararam em consulta aos seus membros, e
que vai reproduzido aqui abaixo, imediatamente seguido de meus comentários, com o
que ficamos todos quites: você, leitor, que conhece agora todos os dez objetivos de ação
do FSM para seu piquenique de Belém, e eu, que termino assim meus comentários a
esses objetivos vagos e ingênuos. Digo isto, confesso desde logo, sem qualquer
preconceito contra os objetivos dos antiglobalizadores, pois que as suas propostas são
realmente vagas, o que não as impede se serem, também, equivocadas e nocivas – em
sua maior parte – para o mundo de bem estar geral para cuja construção eles pretendem
contribuir.
3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?
Como não podia deixar de ser, o único objetivo novo formulado para o encontro
de Belém tem a ver – nada mais apropriado – com a realidade amazônica e aqui vai ele:
10. Pela defesa da natureza (amazônica e outros ecossistemas) como fonte de vida para
o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes,
tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades,
justiça ambiental, espiritualidade e bom viver.
A primeira coisa que se pode afirmar, em relação a este objetivo, é que ele está
mal redigido, continua vago e indefinido sobre o que se deve fazer para alcançar todos
os elementos nele inscritos e revela, mais uma vez, preguiça mental, pois que contém,
inequivocamente, uma grande dose de conservadorismo social e econômico, o que é
135
surpreendente para pessoas e grupos que se pretendem progressistas e avançados. O que
pode significar “defesa” sem que se defina, exatamente, onde estão os perigos? O
conceito de defesa sempre implica uma ação contra algo ou alguém que ameaça a sua
segurança ou a própria vida. Mas isto não está claro no objetivo acima. Que a natureza
seja fonte de vida é algo totalmente tautológico, como sabem os adeptos da lógica
formal ou aqueles que lidam com a biologia elementar. Não existe, aliás, outra fonte de
vida (salvo para os criacionistas).
A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores
anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse
“aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários
do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística
antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo.
Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se
mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que
não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles
mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua
grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que
não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha,
sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem
e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses
“originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como
ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que
pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores!
Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim:
“territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom
viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso
parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer
apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é
algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer
uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de
comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo,
acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas – ou dos
“povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores – vêm sendo
submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria
136
transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível
sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano
(ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores).
Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo”
em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já
que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter
contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela
via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de
pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não
representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou
mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases
evolutivas do seu desenvolvimento cultural – geralmente correspondendo, em
linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior –, o que, por outro lado,
provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido
inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores.
Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa
defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura
não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de
brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o
mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são
eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma
lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se
reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas,
línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado
mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com
todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim
é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em
favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”.
Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está
definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais
tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a
respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente.
Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar
descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores
137
comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir”
espiritualidade de alguém?
4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?
Eu mencionei, ao final da primeira seção deste meu texto, dois conjuntos de
“teses”, que conteriam aquilo que os antiglobalizadores pensam – verbo sério, este –
sobre os problemas do mundo e suas propostas para salvar esse mesmo mundo do
capitalismo perverso e da globalização assimétrica. Mas me concentrei, até aqui, nos
componentes de apenas um bloco de argumentos altermundialistas. Estes são, de toda
forma, os objetivos oficialmente aprovados para o encontro de Belém, e são eles que
devem ser considerados no debate atual.
Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse
primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e
suas idéias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de
minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se
encontram livremente disponíveis numa pequena bibliografia pessoal que elaborei a
partir dos meus escritos dos últimos anos. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que
tenho a dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas
podem dar uma ideia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores
“originários” (que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais
inteligentes ou intelectualmente mais preparados). Eis a compilação a que me refiro:
“Pequena Bibliografia Pessoal sobre a Globalização (e seus descontentes)”; (no link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/1964BiblioGlobalizacao.pdf).
Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “idéias” dos
antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro,
retomando – e praticamente “desenterrando” – algumas outras propostas de alguns dos
seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de
quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um
“manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem
nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era
apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social
Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”.
Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes
antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a freqüentar
138
os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização
assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré;
Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de
Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen;
Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón;
Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões,
seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente,
portanto), um texto “Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses
do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de
Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números
do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005 (vide recomendações de leitura, ao
final).
No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem,
em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados
antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida...”, elaborado
obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus
blogs em 15 de janeiro (link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-
antecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus
comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste
momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas
imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma
elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios
antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que
costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos
pela repetição das mesmas idéias surrealistas).
Resumindo suas (poucas) idéias, os sábios propunham o cancelamento da dívida
pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o
desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda,
a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da
privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam
se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do
FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum
grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento
antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de
139
idéias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM,
mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave
amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me
comentar agora suas idéias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde
então.
5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?
Vejamos o que seria possível dizer, sinteticamente, sobre cada uma das
propostas:
1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e
que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as
instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte
da humanidade à sua tutela;
Ocorre, em primeiro lugar, uma imprecisão conceitual: trata-se, obviamente, da
dívida externa, posto que nenhum país estrangeiro tem algo a ver com a dívida pública
de qualquer país soberano; esta geralmente se refere à dívida mobiliária interna, criada
exclusivamente em âmbito nacional. Em todo caso, a proposta é redundante, chega tarde
e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde
meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e
os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando –
aprofundando a cada ano – mecanismos de redução negociada e menus de redução
unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes
constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde
às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de
países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter
voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os
menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da
relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública
comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado
de créditos a taxas comerciais.
Os propositores, provavelmente, não têm ideia de como funcionam os diversos
mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o
conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não
possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por
140
exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa
medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas
brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro).
2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin
às transações especulativas de divisas);
Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto
patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu,
involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento
antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens).
Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se
seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou
sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de
ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente
especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras:
ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que
introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos – que se
realizam de qualquer maneira – mas um custo adicional aos legítimos tomadores de
recursos nos mercados de créditos.
O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida
mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi
em um pequeno texto (“Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”,
Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_47.pdf). Considerando-se que existem brasileiros entre os 19
sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam, conscientemente ou não,
prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de recursos nos mercados
financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância?
3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e
bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e
de todos os tipos de tráficos;
De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e
cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra
forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como
141
também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das
administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de
soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as
alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições.
Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar
mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o
de ganhar alguns trocados – ou milhões – à margem dessas operações fictícias). Eles
podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se
sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é
que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter
níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das
empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape,
mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo.
O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma
iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que
obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito
soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás,
eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos
fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem
traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”.
Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa
coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e
mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A
experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam
resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano
fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e
estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à
exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e
centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina
que o contrário costuma ser o verdadeiro.
4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à
aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres;
142
Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em
banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York.
Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são
capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não
dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e
benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar
totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica.
5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre
comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a
educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo
Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC;
Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre
comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus
seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de
significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos
sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem
contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles
pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários
deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em
muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma
regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se
instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição
entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade
dessas universidades com as regras em vigor no Brasil.
Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no
mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que,
por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento.
Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais
nenhum convite das universidades europeias ou americanas que os cortejam (talvez
indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”).
6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a
promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios
à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados
Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países
143
deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de
organismos geneticamente modificados destinados à alimentação;
O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender.
Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem
os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua
agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro
lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais
importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para
empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios
com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os
OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade
agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos
do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude
propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência.
7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como
toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água;
Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em
nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser
objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na
legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos
medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios
pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar
e se abster de usar novos medicamentos.
Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação,
nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão,
cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas
um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente
essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se
sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela,
mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo
preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são
supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).
144
8) Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo,
xenofobia, antissemitismo e racismo). Reconhecer plenamente os direitos políticos,
culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos
indígenas;
Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao
segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que
os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os
impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores
dos povos indígenas.
9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de
mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado
na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais;
Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do
que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil
criticar, mais uma vez, suas “idéias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer
muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas,
que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O
controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer
dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer
controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à
sociedade.
10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em
todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das
Nações Unidas;
Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com
base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras,
instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se
nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os
sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU?
11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante
legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação
gigantes;
Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de
regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa
145
da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso
de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio.
12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre
elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos
humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do
Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema
das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte
dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país,
preferencialmente do Sul.
Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos
governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros
esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal.
Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal
geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos,
excesso de pessoal e desvios de função – quando não duplicação de iniciativas nas
mesmas áreas – se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas
de assistência aos países pobres.
Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de
acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países
do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados.
Enfim, concluímos por aqui mais este “diálogo” com os antiglobalizadores, na
verdade uma iniciativa totalmente unilateral e unidirecional, posto que nunca recebi
nenhum comentário dos interessados a respeito de minhas críticas – algo contundentes,
reconheço – a suas idéias surrealistas. É da minha natureza exercer o pensamento
crítico, como também imagino que deva ser a postura acadêmica dos antiglobalizadores
e seus representantes autorizados, em primeiro lugar os sábios.
O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o
pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não
concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em
seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles
nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem
aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o
mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a
146
contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como
observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do
qual não conseguem entregar a receita.
Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos
antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo
concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações
sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que
deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria
aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto
dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e
recomendações – com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos
humanos e sustentabilidade ecológica – não vêm sendo implementadas por praticamente
nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as
suas causas.
Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações –
tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores – e verificar em que medida
os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM
implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro
teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade,
por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados – junto com
outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa –,
comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark
para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as
demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão
flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste.
Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus
seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada
das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum
Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem
funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança.
Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas
do mundo. Imagino também que os mais velhos – sindicalistas, professores e outros
últimos crentes na verdade revelada – o façam por autismo político e incapacidade de
enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o
147
conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito
que eles continuam a repetir as mesmas idéias surrealistas e os mesmos equívocos na
área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de
uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de
auto-engano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é
imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de
desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não...
Algumas recomendações de leitura:
“Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento
antiglobalizador”. Publicado de forma fragmentada em Meridiano 47 (disponível
em formato integral no link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/1297ContraAntiGlobaliz.pdf).
“Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Meridiano
47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; link:
http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
“A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano 47 (n.
74, setembro 2006, p. 20-29; link:
http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf).
“A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos”, Espaço
Acadêmico (n. 61, junho 2006; link:
http://www.espacoacademico.com.br/061/61almeida.htm).
“A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo”, Espaço Acadêmico
(n. 37, junho 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/037/37pra.htm).
“A globalização e as desigualdades: quais as evidências?”, In: Paulo Roberto de
Almeida, A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política
no Brasil (São Paulo: Códex, 2003; link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf).
1966. “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”,
Brasília, 22 dezembro 2008, 17 p. Consolidação das críticas às ideias surreais do
FSM. Publicado em Mundorama, divulgação científica em relações internacionais
(27.12.2008; link: http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/). Publicado em
Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link:
http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/);
Republicado em Espaço da Sophia (Tomazina – PR, ISSN: 1981-318X, Ano 2, n.
22, p. 1-20, janeiro de 2009). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Academia.edu (https://www.academia.edu/attachments/32900639/download_file).
Relação de Publicados 886, 887.
148
14. O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos
1. Introdução: escopo da análise e resumo do conteúdo
Este breve ensaio efetua uma análise de conjuntura da economia brasileira, mais
pelo lado das políticas econômicas do que propriamente pelos principais indicadores
setoriais. Foram focalizadas a situação econômica previamente e no decorrer da crise, as
principais respostas das autoridades econômicas e as perspectivas que se oferecem ao
Brasil no pós-crise, relativamente favoráveis no conjunto do G20. São também tecidas
considerações sobre as principais propostas brasileiras para uma nova arquitetura
financeira internacional, em torno de posições que o país partilha com os demais Brics,
cujo teor essencial é o aumento da participação dos emergentes nos processos decisórios
mundiais.
2. O Brasil no G20: ativos políticos e limitações econômicas
Embora não imune a seus efeitos mais graves, no seu pico recessivo – entre o
terceiro trimestre de 2008 e o primeiro semestre de 2009 – o Brasil parece ter resistido
bem à crise financeira internacional iniciada no setor imobiliário americano e que logo
se propagou para todo o sistema bancário e, daí, para uma crise econômica
internacional. Ele foi um dos primeiros países a demandar reuniões internacionais de
coordenação, tanto para conter os efeitos mais devastadores da crise, como para
impulsionar o que considera ser uma agenda inconclusa das relações econômicas
internacionais: a rodada Doha de negociações comerciais multilaterais da OMC. Suas
demandas favoráveis à maior regulação do setor financeiro.
Em virtude de sua diplomacia hiperativa – em grande medida derivada da
exposição internacional de seu presidente – o Brasil possui, prima facie, ativos políticos
para sugerir questões para a formulação da agenda financeira internacional, muito
embora, no plano estritamente econômico, seus ativos sejam bem mais limitados, em
função da baixa intensidade de seu comércio internacional, sua situação de importador
liquido de capitais e o caráter não conversível de sua moeda.
149
3. A situação macroeconômica pré-crise e as respostas à crise
O Brasil vinha numa trajetória relativamente satisfatória de crescimento e
estabilidade no período anterior à crise, graças à demanda internacional por seus
produtos primários de exportação, os altos preços alcançados por estes, a descoberta de
gigantescas jazidas off shore de petróleo e a vasta atração de investimentos estrangeiros.
Os canais de propagação da crise internacional no Brasil foram, principalmente: a
exaustão dos créditos para o comércio exterior; a retração dos mercados externos e dos
investimentos estrangeiros; a queda brusca nos preços dos principais produtos de
exportação, o que gerou desemprego setorial no Brasil e revisão completa dos planos de
investimentos na base produtiva nacional. O momento mais dramático foi a queda brutal
da produção industrial no último trimestre de 2008, com o aumento concomitante do
desemprego no setor, fazendo com que as estimativas dos analistas quanto aos
indicadores de crescimento passassem do pessimismo ao catastrófico.
As respostas do governo, mais especificamente do Banco Central, foram
adequadas ao momento, embora o lado monetário e financeiro tenha sido bem mais
coerente do que o lado fiscal. No plano das autoridades monetárias, o que se fez foi
classicamente keynesiano: injeção de liquidez na veia do sistema, com redução dos
depósitos compulsórios; extensão dos créditos ao setor bancário; atuação na frente
cambial e de comércio exterior, com a redução concomitante dos juros de referência. No
que se refere às autoridades fiscais, as medidas não tiveram quase nada de
verdadeiramente anticíclicas: a despeito da redução de impostos indiretos em alguns
setores – mas atingindo apenas aqueles que teriam de ser transferidos aos estados e
municípios, e não as contribuições devidas unicamente ao poder central – houve uma
elevação generalizada de gastos em rubricas que são permanentes – como aumentos nos
salários do funcionalismo e promessas renovadas no que se refere ao salário mínimo e
Bolsa-Família – com muito pouco acréscimo nos investimentos em infra-estrutura e
quase nenhum alívio na carga fiscal da massa dos contribuintes-consumidores. Por
outro lado, o aumento exagerado do crédito através dos bancos públicos – que já
concentram uma grande proporção dos empréstimos no Brasil – pode vir a provocar
insuficiência de oferta produtiva e pressões inflacionárias, o que poderá obrigar o
Copom a elevar novamente os juros, quebrando o ciclo de baixa iniciado em janeiro de
2009 (até um patamar inédito na história do Brasil: 8,75%).
4. As respostas dos membros do G20 e a posição do Brasil
150
Os membros do G20 também atuaram segundo as linhas clássicas do
keynesianismo aplicado. No caso do Brasil, os fundamentos macroeconômicos são bem
mais sólidos do que por ocasião de crises passadas, o que justifica a manutenção, pelas
principais agências de avaliação de risco, do investment grade atribuído anteriormente
ao Brasil, e o fluxo ascendente de capitais externos, tanto de investimento direto como
de cunho puramente financeiro. Por outro lado, a demanda da China – convertida em
principal parceiro comercial no começo de 2009 – por produtos primários de exportação
brasileira atuou no sentido da revalorização dos seus preços, o que pode minimizar o
impacto negativo da crise internacional sobre nossa balança de transações correntes. O
setor financeiro, por sua vez, não foi sequer arranhado, a despeito do retraimento de
fontes externas de financiamento, graças à aplicação judiciosa por parte do Banco
Central das regras prudenciais de Basiléia e à herança do Proer, que eliminou
completamente o perigo de bancos privados e públicos administrados de maneira
irresponsável na primeira metade da década passada. O grande mérito do governo atual
no plano econômico foi, justamente, o de ter preservado o núcleo essencial das políticas
adotadas antes do seu início, quais sejam: flutuação cambial, metas de inflação e
responsabilidade fiscal, tanto pelo lado da preservação do superávit primário como da
vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, que o partido atualmente no poder
pretendia desmantelar quando era oposição.
Na frente cambial, após uma paradoxal valorização do dólar (em meio à crise de
confiança na economia americana) e uma desvalorização sensível da moeda brasileira
entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009 (que atingiu quase 50% entre seu pico de
valorização, em julho de 2008, e o fundo do poço, em dezembro), o real voltou a
conhecer o mesmo fenômeno da valorização gradual, que tanto preocupa os
exportadores e os industriais de modo geral. O Banco Central tem respondido com
novas compras de divisas, tendo as reservas ultrapassado o pico de 209 bilhões de
dólares do período anterior à crise. Mas as autoridades financeiras têm resistido
sensatamente às demandas de setores dirigistas por ativismo cambial e controles dos
fluxos de capitais. Pouco se fala, porém, do enorme custo fiscal do carregamento dessas
reservas – quase 20 bilhões de dólares por ano – ademais da enorme concentração das
divisas em títulos do Tesouro americano, com juros negativos e perspectivas de
desvalorização ulterior do dólar americano.
5. Perspectivas brasileiras para Pittsburgh: a ação através dos Brics
151
Desde a primeira reunião de cúpula do G20 em Washington (em novembro de
2008), passando pela reunião de Londres (de abril de 2009) e, provavelmente também
nesta próxima reunião de Pittsburgh (setembro de 2009), o Brasil vem mantendo
posições relativamente próximas do grupo de “regulacionistas keynesianos”, como
poderiam ser assim designados aqueles que pretendem introduzir medidas mais rígidas
de controle dos fluxos de capital, que pretendem criar mecanismos que possam “coibir”
a “especulação financeira”, inclusive no sentido de reforçar e ampliar os instrumentos
prudenciais e regulatórios sobre as atividades das instituições financeiras – concebidas
num sentido amplo. No plano da conjuntura econômica e da luta pela recuperação da
economia mundial pós-crise, o Brasil advoga a manutenção das medidas fiscais de
estímulo à economia pelo tempo que for necessário para a retomada plena do ritmo de
atividade. Ele também acha que os países precisam introduzir sanções contra os paraísos
fiscais, considerados um dos condutos da especulação. No plano das relações
econômicas internacionais, o Brasil prega a retomada e a conclusão da Rodada Doha de
negociações comerciais multilaterais como um dos componentes da retomada ordenada
da atividade econômica.
Finalmente, no que tange a nova “arquitetura” do sistema financeiro
internacional, o Brasil propõe uma redistribuição e ampliação do sistema de cotas das
duas instituições de Bretton Woods, no sentido de fazer a participação dos países em
desenvolvimento (ou, na nova linguagem, os emergentes) elevar-se à proporção de 47%
sobre o capital total, reduzindo-se de maneira concomitante a participação dos países
avançados (atualmente de 60% sobre o total). A sugestão é que o processo se dê em
detrimento dos pequenos países europeus, como aliás já sugerido pelos próprios Estados
Unidos. Todo o ativismo reformista brasileiro se dá, atualmente, em conjunção com os
Brics, muito embora a China – a despeito de ter lançado inicialmente a idéia – não tenha
aderido, no encontro de Londres, à sugestão de que os países do G20 e as instituições
financeiras multilaterais concebem um novo instrumento de reserva internacional (e
possivelmente de troca também), baseado numa cesta de moedas dos países mais
relevantes. Contraditoriamente, porem, os quatro Brics possuem imensas reservas em
dólar e não teriam, assim, interesse, numa rápida desvalorização da moeda americana.
As reservas brasileiras em divisas ascendem atualmente a mais de 215 bilhões de
dólares, das quais aproximadamente três quartos estão aplicadas em T-bonds.
6. Conclusões: visões contraditórias sobre a crise e a gestão econômica
152
O Brasil se encontra relativamente preparado para uma nova fase de
crescimento, à condição que o mau comportamento fiscal do governo, exibido
atualmente, não seja exacerbado e que sua voracidade tributária seja contida em limites
razoáveis, para permitir que o setor privado possa investir e criar riquezas, emprego e
renda, atividades que apenas ele pode fazer. Dada a propensão governamental ao gasto
excessivo, muitos temem a formação de uma bomba-relógio fiscal, a explodir em algum
momento da próxima década, a despeito de um contexto de provável retomada do
crescimento mundial. O Brasil, em todo caso, é o país de menor crescimento entre os
emergentes, uma característica que ele deveria tentar superar. O setor privado já fez a
sua parte, no sentido de se ajustar às novas condições dos mercados internacionais; cabe
ao governo, agora, tentar fazer a sua, sobretudo atuando de modo responsável no plano
fiscal.
No plano internacional, finalmente, o Brasil deve continuar a se articular com os
três outros membros do Bric, bem como com outros países relevantes dentre os
emergentes – como a África do Sul, país com o qual o Brasil constitui um outro grupo,
junto com a Índia (o IBSA) – no sentido de oferecer propostas reformistas das
instituições financeiras que contemplem o aumento do poder decisório desses países
nessas instituições.
2044. “O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos”, Brasília, 10 setembro
2009, 5 p. Considerações sobre a conjuntura econômica brasileira e a agenda do
G20. Postada no Blog Diplomatizzando (15.09.2009; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/09/1373-o-brasil-e-o-g20-financeiro-
artigo.html). Publicada em Mundorama (14.09.2009; link:
http://mundorama.net/2009/09/14/o-brasil-e-o-g20-financeiro-alguns-elementos-
analiticos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado na Meridiano 47 (n. 110.
Setembro 2009, p. 5-8; link:
http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano-
47/sumariodaedicao110-setembro2009/Meridiano_110.pdf?attredirects=0&d=1).
Relação de Publicados n. 922.
153
Terceira Parte
Regionalismo, Integração
155
15. Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas
excludentes?
Cenário econômico e político do debate hemisférico
Ao mesmo tempo em que o processo negociador de um acordo hemisférico de
livre comércio parecia ter entrado, após a reunião de cúpula de Québec, em abril de
2001, em sua fase decisiva, o Mercosul lutava para preservar sua unidade de propósitos,
em meio a uma crise de identidade como nunca vista em sua história de dez anos. Os
persistentes problemas políticos e econômicos enfrentados pela Argentina levaram seu
novo ministro da economia, Domingo Cavallo, a realizar um ataque frontal ao próprio
conceito de união aduaneira, num momento em que o futuro do Mercosul era colocado
em dúvida por diferentes observadores de dentro e de fora da região.
Essa conjuntura de “revisão de expectativas” no âmbito do Mercosul coincidiu,
no primeiro semestre de 2001, com movimentos preocupantes nos cenários econômico e
político mundiais. Os efeitos combinados de uma recessão potencial nos Estados
Unidos, de crises político-econômicas em pontos diferentes do globo (débâcle da moeda
na Turquia, persistência da estagnação no Japão, percepção de um esgotamento
“técnico” do modelo cambial da Argentina), ademais de um sentimento de ausência de
liderança, de manifestações de arrogância imperial e de relutância em assumir os custos
da hegemonia por parte da nova Administração americana, tornaram pública a sensação
de que o mundo se encaminhava para a retomada dos surtos de instabilidade financeira
e cambial.
No plano dos acordos de comércio, parecia evidente que o Mercosul agregava
aos antigos contenciosos comerciais um elemento de crise “psicológica”, ao serem
reveladas, pela primeira vez, diferenças fundamentais de opinião entre seus principais
parceiros quanto aos destinos do processo integracionista. O projeto da Alca, por sua
vez, encaminhava-se para suas duas etapas finais – presidência equatoriana até outubro
de 2002, co-presidência americano-brasileira em 2003 e 2004 – em meio a uma latente
indefinição quanto aos termos precisos do mandato negociador que o Congresso dos
EUA precisava atribuir ao Executivo para o fechamento dos acordos de liberalização.
Diferenças táticas e desacordos formais entre os Estados Unidos e o Brasil já se
tinham manifestado na reunião ministerial de Buenos Aires, em 6 de abril, quando o
Governo Bush tentou subordinar o calendário das negociações às suas conveniências
eleitorais. A III Cúpula das Américas, realizada em 21 e 22 de abril em Québec,
156
confirmou porém as grandes linhas do cronograma estabelecido de maneira difusa em
Miami, em dezembro de 1994, e detalhado em San José, em março de 1998, com uma
diferença: as negociações devem encerrar-se em janeiro de 2005 e a Alca começar a ser
implementada, após aprovação dos parlamentos nacionais, em dezembro desse ano.
A perspectiva concreta de uma área de livre comércio hemisférica a partir de
2006 gerou reações opostas e contraditórias em todos os países da região. Grandes
corporações na América do Norte e alguns governos no Cone Sul (Chile e Uruguai, por
exemplo) apoiavam sem restrições a rápida implantação da Alca, ao passo que grupos
não-governamentais e sindicatos de todas as latitudes manifestavam sua oposição ao
esquema, que também era olhado com desconfiança por governos e empresários de
países dotados de uma visão crítica em relação ao projeto liderado pelos Estados
Unidos, como no Brasil e na Venezuela, entre outros. Em todos e em cada um dos
países, argumentos pró e contra a Alca eram esgrimidos com a paixão das querelas
ideológicas, quando não com o ardor das guerras de religião. A razão de tantos
desencontros era o caráter ainda difuso dos compromissos a serem alcançados ao cabo
do esforço negociador hemisférico.
Nesse cenário de incertezas externas e de dúvidas internas, a opinião pública
brasileira foi finalmente apresentada ao grande debate que, na área da política externa,
deverá permear a campanha eleitoral no escrutínio presidencial de 2002. As grandes
perguntas pareciam ser: quais são as grandes opções estratégicas de política comercial e
industrial para o Brasil nos primeiros anos do século XXI?; será possível garantir a
soberania nacional numa área de livre comércio dominada pelos EUA?; os ganhos serão
maiores que os custos?; o que acontecerá com o Mercosul? Em relação ao contexto sub-
regional, estavam em causa, de um lado, a sobrevivência do Mercosul, de outro o
espectro de sua diluição na Alca, aliás ao mesmo tempo em que a própria economia
nacional poderia perder sua última “reserva de mercado” representada pelo esquema do
Cone Sul, tendo de conviver diretamente com o Big Brother econômico do Norte.
De fato, quais são as grandes questões em jogo nesse cenário aparentemente
maniqueísta e dicotômico prometido pela aparente oposição entre Mercosul e Alca?
Quais são os limites e condicionalidades impostos ao Mercosul pelas fragilidades
reveladas pelos países membros? Quais são as oportunidades e desafios colocados pela
Alca a uma economia em transição como a brasileira? O que existirá (ou permanecerá)
depois de uma eventual conclusão exitosa do processo negociador da Alca, com sua
implantação a partir de 2006? São esses dois esquemas integracionistas excludentes do
157
ponto de vista da economia política da inserção regional e internacional do Brasil? Há
esperança dentro do Mercosul? Existirá vida (econômica) depois da Alca?
O presente texto pretende discutir esses problemas e tentar responder a algumas
dessas questões não mediante uma análise separada e pormenorizada de cada um dos
aspectos da problemática, mas destacando em forma breve, na próxima seção, os
elementos característicos de cada um dos processos e estimando, em seguida, os
elementos “estruturais” do cenário hemisférico tal como decorrente de uma eventual
negociação hemisférica bem sucedida, isto é, ao terem sido hipoteticamente cumpridos
alguns dos objetivos “maximalistas” do Mercosul e ao terem sido atingidos alguns dos
objetivos “minimalistas” da Alca. Pretende-se, assim, examinar o “caso econômico” do
Brasil e do Mercosul em face da promessa (ou ameaça) da Alca, no quadro de um
exercício especulativo sobre o “day after”, ou seja, o Mercosul depois de uma eventual
Alca. Não é preciso alertar que essa problemática será examinada de uma perspectiva
exclusivamente brasileira, refletindo, obviamente as opiniões pessoais do autor, que não
se confundem, nem necessariamente refletem as da burocracia governamental para a
qual trabalha.
Estado do problema: o caso do Mercosul e o projeto da Alca
O Mercosul, com todos os seus problemas de união aduaneira imperfeita e de
zona de livre comércio inacabada, apresenta-se como um dado da realidade econômica
e política da América do Sul, ao mesmo tempo em que representa um processo real de
aproximação de posições entre países que já partilham de uma história comum. A Alca,
por sua vez, é uma hipótese de trabalho, ao mesmo tempo em que a expressão de um
processo negociador que se apresenta como de difícil realização, por envolver nações
de tradições diversas e que seguiram itinerários contrastantes ao longo do tempo.
O Mercosul é uma decisão fundamentalmente política que se realiza apoiado em
decisões de caráter econômico. A Alca é uma proposta essencialmente econômica que
seus proponentes originais tentam implementar de forma política. O Mercosul emerge
como um exercício de convergência de interesses entre países situados, grosso modo,
num mesmo patamar de desenvolvimento econômico e social, a despeito de diferenças
de tamanho entre eles. A Alca tenciona nivelar o terreno de jogo – level the playing field
– entre economias e sociedades ostentando enormes diferenças estruturais entre si, uma
vez que confronta a principal potência planetária, de fato a única superpotência
158
existente, a três dezenas de outros países que não chegam a perfazer um quinto de sua
própria “massa atômica”.
O Mercosul vem praticando um esforço de auto-contenção nos litígios internos,
utilizando-se basicamente de um mecanismo de administração política das controvérsias
ligadas ao comércio recíproco e só então recorrendo a um tipo de solução arbitral ad
hoc. A Alca deveria normalmente ostentar instâncias resolutivas dos conflitos
comerciais marcadas pela sua relativa automaticidade e independência dos governos,
com efeitos econômicos mais ou menos imediatos.
Em suma, o Mercosul é uma modesta construção integracionista que funciona
em regime de condomínio, com relativa permeabilidade e associativismo entre os seus,
até agora, poucos membros. A Alca apresenta-se como um imenso edifício de
escritórios, onde a impessoalidade de trato e a frieza das regras padronizadas prometem
poucos momentos de excitação e muitos anos de aborrecimento.
Os mais otimistas acreditam que quaisquer que sejam os resultados do processo
negociador da Alca, o Mercosul irá necessariamente sobreviver, ainda que não se saiba
exatamente como e em que condições. Seu desempenho comercial pode tornar-se
francamente medíocre, a depender da profundidade e extensão da Alca, assim como sua
saúde econômica pode retroceder significativamente em relação aos prognósticos
realizados no início dos anos 1990. Ele poderá, obviamente, sair fortalecido e confirmar
o acertado da decisão original de se construir progressivamente um mercado comum
com base numa metodologia inovadora em relação às experiências existentes no gênero,
na verdade restritas ao precedente da União Europeia. Mas, ele poderia também
caminhar para a erosão e ser reduzido a um mero arranjo para consultas políticas de
fachada, sem maiores efeitos comerciais efetivos, já que hipoteticamente absorvido ou
diluído numa Alca bem mais ambiciosa do que os exemplos tradicionais de zonas de
livre comércio.
No caso da Alca, subsistiam, na primeira metade de 2001, incertezas quanto ao
desenvolvimento do próprio processo negociador, como a ausência e a indefinição de
conteúdo em relação ao necessário mandato a ser atribuído pelo Congresso ao
Executivo dos EUA. Outras limitações de natureza política – como a ausência de
consultas regulares entre os líderes dos países membros, como ocorre hoje a cada
semestre no Mercosul – e alguns fatores condicionantes – como a desproporção de peso
comercial entre os países participantes – atuavam para converter a implementação
efetiva da Alca em um cenário de incertezas. Se o processo negociador não resultar em
159
acordo até o final de 2004 ou o início de 2005, o cenário hemisférico não será muito
diferente do atual, com a proliferação quase anárquica de esquemas sub-regionais,
convivendo com as tentativas multilateralistas de “convivência pacífica” ao abrigo da
ALADI ou da OMC. Se por acaso as negociações se revelarem exitosas, o Mercosul
terá de adaptar sua arquitetura institucional e sua agenda interna à nova realidade da
Alca.
A Alca pode ser complementar aos arranjos sub-regionais já existentes no Cone
Sul, dependendo de seu grau de aprofundamento e dos compromissos específicos
contraídos pelos países participantes. Ela não é, portanto, necessariamente excludente
em relação ao Mercosul, mas a substância deste último conhecerá, é óbvio, inflexões
econômicas importantes em função da disposição dos países membros em preservar
essa construção política em face de um poderoso concorrente comercial.
O “day after”: o Mercosul depois da Alca
Admitindo-se que a opção pelo estabelecimento de um espaço integrado em seu
imediato entorno geográfico, tal como evidenciado na experiência do Mercosul,
constitui uma das principais vertentes da estratégia brasileira de inserção econômica
internacional na atualidade, pode-se perguntar em que o desenvolvimento dessa
modalidade restrita de interdependência econômica contribui para o fortalecimento de
sua economia e como a irrupção da proposta da Alca pode, ao contrário, enfraquecer a
“soberania” econômica do Brasil e colocar em perigo as fundações do Mercosul.
Registre-se que as questões acima já comportam uma opção de princípio pelo Mercosul
e uma recusa apriorística da Alca, como parece ocorrer com a maior parte dos atuais
comentaristas da economia brasileira.
Com efeito, muitas das questões que cercam o debate sobre as vantagens e
desvantagens da Alca para o Brasil e o Mercosul vem sendo contaminadas por uma
espécie de parti pris ideológico, ou seja, uma posição de princípio que, por um lado,
tende a recusar, em caráter absoluto, os fundamentos e as implicações econômicas da
zona de livre-comércio hemisférica, aceitando, por outro lado, a estratégia política de
“menor custo” do Mercosul para a economia brasileira ou a opção pela associação deste
bloco com a supostamente mais benigna União Européia. São politicamente realistas ou
economicamente racionais tais pontos de vista e correspondem eles aos interesses bem
pensados da sociedade brasileira, que parece ter chegado a uma nova etapa de sua
transição para a modernidade?
160
Esta não é a postura assumida neste ensaio, que propugna um exame ponderado
de cada um dos elementos em jogo, tendo em vista exclusivamente a formulação da
melhor estratégia possível de inserção econômica internacional do Brasil. Caberia
discutir cada um dos argumentos favoráveis ou contrários à Alca, tentando separar o
que se apresenta como realidade econômica decorrente da liberalização, ou seu possível
desdobramento, daquilo que se poderia classificar como posicionamento político em
relação ao projeto proposto pelos EUA para o continente. Outra distinção importante a
ser feita é aquela que se refere ao que se poderia chamar de “componentes estruturais da
Alca” – seus elementos “imanentes”, em linguagem kantiana – e a simples mecânica do
processo negociador, que vem se desenvolvendo desde a segunda metade dos anos 90 e
promete estender-se até o início de 2005, pelo menos, segundo o que foi acordado em
nível ministerial em Buenos Aires e ratificado na cimeira de Québec, em abril de 2001.
Com efeito, até a conclusão dessas negociações, cujos contornos específicos
dependem muito do conteúdo do mandato negociador a ser atribuído pelo Congresso ao
Executivo dos Estados Unidos, torna-se difícil especular sobre benefícios e ameaças da
Alca para a economia do Brasil e para o esquema do Mercosul. Pode-se no entanto
antecipar, com base nas evidências até aqui demonstradas, que o legislativo e os
negociadores americanos tendem a ver a construção da Alca como um mero resultado
da derrubada de barreiras latino-americanas aos produtos e serviços dos EUA, cabendo-
lhes muito pouco fazer em termos de suas próprias barreiras, senão a eliminação geral,
com as exceções de praxe, das tarifas normalmente baixas aplicadas na importação de
produtos. Essa não tem sido a visão da diplomacia brasileira, que vem buscando colocar
na mesa de negociações outros elementos importantes com vistas a lograr um acordo
final mais equilibrado, não apenas em termos de acesso a mercados – onde são
evidentes diversos focos setoriais de protecionismo americano – mas também no que se
refere a normas e disciplinas de política comercial, terreno no qual são igualmente
claras as restrições aplicadas a produtos estrangeiros no mercado americano.
Um ponto precisa ficar claro no debate que se vai seguir. A compreensão do que
seja um acordo de livre-comércio varia muito de perspectiva, segundo se faça uma
análise acadêmica dos resultados da abertura econômica e da liberalização dos
mercados ou se parta de evidências mais empíricas resultantes de um processo
negociador concreto. Na primeira visão, geralmente de cunho economicista, a
liberalização comercial, quaisquer que tenham sido sua amplitude e distribuição entre os
parceiros, é vista como positiva, pois que conduzindo a uma alocação ótima de recursos
161
e uma utilização mais eficiente da dotação em fatores. Na segunda perspectiva, pode-se
dizer que não existe, para a maior parte dos negociadores, essa figura utópica do “livre-
comércio”, um conceito puramente imaginário que só se materializa nos escritos dos
teóricos acadêmicos, mas na verdade dotado de pouco embasamento prático; para eles,
se trata de lograr a melhor situação possível de reciprocidade no processo de abertura
comercial, administrando áreas de liberalização progressiva em função das vantagens
percebidas ou aparentes. Trata-se de um dilema teórico-prático que não poderá ser
resolvido no presente texto, que tem apenas o objetivo de oferecer alguns elementos de
reflexão sobre as opções do Brasil e do Mercosul na presente fase de discussões sobre a
consolidação interna e o aprofundamento do bloco sub-regional em face da opção
hemisférica representada pela Alca.
A discussão pode ser organizada em torno de algumas perguntas fundamentais,
as mesmas que vêm sendo repetidamente colocadas pelos representantes dos meios de
comunicação aos negociadores e estudiosos acadêmicos do processo hemisférico.
A Alca é desejável, benéfica ao Brasil, funcional para seus objetivos de
desenvolvimento econômico e social?
A Alca representa uma espécie particular no gênero integracionista, tratando-se
de um processo de liberalização controlada dos mercados e de abertura administrada da
economia que já vem sendo aplicado pelo Brasil desde que ele assumiu compromissos
negociais nesse sentido em princípios dos anos 60 (criação da Alalc) e, com maior
ênfase, a partir dos esquemas bilaterais de integração com a Argentina (1986-88) e, de
forma quadrilateral, com os demais parceiros do Mercosul (1991). Os cálculos sobre
custos e benefícios desse gênero de abertura foram conduzidos de forma mais ou menos
empírica pelos responsáveis políticos e econômicos em cada uma dessas oportunidades
e julgados compatíveis com as necessidades de desenvolvimento do Brasil, ainda que
em nenhum dos casos se tenha alcançado a liberalização total e a integração completa
dos mercados.
Do ponto de vista estrito da otimização das oportunidades econômicas, toda
experiência de integração, ainda que na forma simplificada da eliminação de barreiras
aduaneiras sob um regime de livre-comércio, é desejável, relativamente a uma situação
de plena autonomia econômica, pois que correspondendo a uma etapa inicial de
liberalização de mercados e de inserção nos circuitos da interdependência mundial,
162
mesmo num âmbito geográfico mais restrito. Os economistas, procedendo a uma
simulação teórica de caráter extremo, recomendariam aliás uma liberalização unilateral
erga omnes, isto é, conduzindo à plena integração com o mundo, pois que permitindo
nesse caso o livre fluxo de fatores e uma alocação ótima das dotações econômicas. Esse
tipo de exercício ricardiano não foi contudo tentado por nenhum país da era moderna,
tendo apenas se manifestado de maneira mais ou menos abrangente sob o capitalismo de
vanguarda da Inglaterra vitoriana. Desde então, as experiências de liberalização tem
sido conduzidas sob forma condicional e restrita, tendo alcançado maior
desenvolvimento na Europa ocidental, nos diversos esquemas ali conhecidos desde o
final dos anos 1940 (no Benelux, na Ceca, na Comunidade Européia, na Aelc, na União
Européia, notadamente). Todos esses exemplos têm confirmado empiricamente os
pressupostos teóricos traçados pelos economistas sobre os benefícios da liberalização
ampliada.
Não deveria, portanto, ser diferente para o Brasil, tanto no formato mais restrito
do Mercosul como no esquema ampliado de uma futura Alca, ainda que não se possa
arriscar previsões mais positivas quanto a seu caráter funcional, ou não, para seus
objetivos de desenvolvimento econômico e social. Em princípio, a resposta é positiva,
ainda que de forma indireta, uma vez que a integração e a liberalização produzem
situações de maior eficiência alocativa, conduzindo ipso facto ao aumento da
produtividade, à expansão do emprego e à elevação dos níveis de remuneração. Deve-se
no entanto observar que o processo de liberalização comercial, estrito senso, não tem
como missão histórica “produzir” desenvolvimento, isto é, provocar transformações
estruturais na formação social que envolve o sistema econômico, mas tão somente
produzir uma maior eficiência produtiva, o que por si só não gera distribuição de
riqueza ou justiça social. A agenda desenvolvimentista é algo mais ampla que a forma
de organização social da produção, implicando em um complexo jogo de fatores
políticos e sociais que ultrapassam em muito as possibilidades transformadoras da
abertura econômica e comercial.
Resumindo: a Alca pode ser benéfica para o Brasil, mas não se deve esperar que
ela resolva todos os nossos problemas de desenvolvimento econômico e social no curto
ou médio prazo; estes só podem ser encaminhados internamente, com a mobilização de
outros vetores de transformação estrutural – educação, capacitação profissional,
investimentos em ciência e tecnologia, modernização institucional etc. –, não de
maneira exógena a partir de um impulso originado no entorno econômico externo.
163
Mercosul e Alca são compatíveis entre si?; a Alca não pode simplesmente dissolver o
Mercosul e condená-lo ao desaparecimento enquanto experimento sub-regional?
Em princípio, Alca e Mercosul são plenamente compatíveis entre si e até
complementares, uma vez que os esquemas de livre-comércio, mesmo baseados em
processos negociais autônomos e independentes, tendem a se reforçar mutuamente e a
produzir eficiências dinâmicas que potencializam os ganhos alocativos. No que se refere
especificamente ao caso desses dois esquemas americanos, pode-se argumentar que uma
zona de livre-comércio maior tende a absorver e a diluir a menor, que foi o que ocorreu,
comparativamente (no gênero união aduaneira), entre o Benelux e a Comunidade
Européia no decorrer dos anos 70 e 80.
Este não deveria ser o destino, porém, do Mercosul, que corresponde a uma
etapa superior da família integracionista, suplementando seu compromisso de livre-
comércio com as obrigações de uma união aduaneira (tarifa externa comum, política
comercial comum) e visando alcançar, num horizonte histórico ainda indeterminado,
uma situação de mercado plenamente unificado. Em outros termos, o Mercosul
sobreviveria e até poderia aumentar seu grau de coesão interna ao enfrentar o desafio de
uma zona de livre-comércio envolvente, mesmo se no caso da Alca se trata,
potencialmente, de uma “super” zona de livre-comércio, compreendendo aspectos
pouco usuais nesse gênero de exercício (como compromissos em matéria de
propriedade intelectual, política da concorrência, compras governamentais e outros
compromissos setoriais não estritamente comerciais). Na prática, é evidente que o
“mercado comum do Sul” não passa, atualmente de uma zona de livre-comércio
deficiente e incompleta, pois que prejudicada pela existência de alguns setores restritos
à abertura interna recíproca e de outros funcionando sob regime de comércio
administrado. Sua união aduaneira “em fase de implementação” tampouco é consistente
com os pressupostos teóricos e empíricos desse tipo de esquema, pois que tendo de
conviver com exceções nacionais à tarifa externa comum, regimes comerciais
específicos a algumas situações nacionais “temporárias e excepcionais” e de fato
carente de uma administração aduaneira uniforme e dotada de regras claras (falta de um
código aduaneiro ou disposições quanto à arrecadação fiscal, por exemplo).
Ainda assim, mesmo que o comércio intra-Mercosul seja absorvido e dissolvido
no esquema mais amplo da Alca, o Mercosul tenderá a sobreviver enquanto construção
164
institucional, pois que resultando de uma decisão política no mais alto nível, que aponta
no sentido de sua progressão contínua, ainda que lenta e por vezes intermitente, em
direção de um mercado comum e talvez até mesmo de uma união econômica, a exemplo
da Europa de Maastricht (pelo menos no que se refere à união monetária). Os perigos
que cercam sua evolução comercial derivam mais dos desafios competitivos associados
ao polo econômico dominante e da força centrífuga do dólar dos EUA, do que da Alca
em si, que seria pouco relevante se fosse hipoteticamente subtraída a potência
hegemônica. Mas, mesmo nessa situação extrema de eventual inoperância econômica
do Mercosul em razão da preeminência absoluta dos EUA no esquema hemisférico, o
projeto sub-regional do Cone sul tende a sobreviver, pois que ele compreende bem mais
do que simples compromissos liberalizadores, estendendo-se a entendimentos sociais,
administrativos e de políticas setoriais outras que as meramente econômicas (justiça,
turismo e cultura, ciência e educação, previdência social, entre várias outras), o que
justificaria a continuidade desse projeto político e societal.
Resumindo: a Alca representa um enorme desafio para a continuidade e para a
afirmação da personalidade do Mercosul, mas a dissolução deste só se daria por
expressa decisão e vontade dos dirigentes políticos dos países membros, não em função
da criação e implementação plena de uma zona de livre-comércio hemisférica, que
forma alguma eliminará, ao contrário até estimulará, o desenvolvimento de outras
vertentes integrativas entre os países membros e associados do Mercosul. Este tem um
capital político e uma cultura própria que jamais serão alcançados no plano hemisférico,
por mais poderosa e abrangente que venha a ser a Alca no domínio econômico e
comercial.
O projeto da Alca não representa uma ameaça fundamental às economias do Brasil e
do Mercosul, pelo fato de que sua vocação liberalizadora vai além da agenda
tradicional de uma zona de livre-comércio, ou devido a que os elementos de assimetria
estrutural são extremamente relevantes quando confrontados ao cenário mais
homogêneo da América do Sul ou à dimensão mais modesta de todas as outras
economias hemisféricas, à exceção dos EUA?
Sem dúvida que a pauta negociadora da Alca vai muito além do que vinha sendo
aceito como a agenda “normal” de uma zona de livre-comércio – compreendendo
apenas liberalização do intercâmbio de bens, mais algumas disposições de caráter
165
aduaneiro para evitar triangulação indevida –, abrangendo serviços, propriedade
intelectual, compras governamentais, investimentos e outros aspectos menos relevantes,
segundo um programa de abertura e de regulação que já se convencionou chamar de
“OMC plus”. Pode-se no entanto argumentar que a Alca apenas antecipa, ou acelera,
esses aspectos pouco usuais das “velhas” zonas de livre-comércio e que tanto o Brasil
como o Mercosul encontrariam a mesma pauta de reivindicações liberalizantes numa
próxima rodada de negociações comerciais multilaterais ou se decidissem empreender
esforço similar com outros esquemas regionais (como a CAN, a UE ou outros grupos de
países).
Nem tudo porém é tão somente uma questão de tempo, já que a ambiciosa
agenda da Alca certamente coloca desafios de monta aos países do Cone Sul, em
especial no que se refere aos diferenciais de competitividade nos diferentes setores que
serão presumivelmente incorporados ao esforço liberalizador hemisférico (serviços,
compras governamentais, investimentos, por exemplo). Mas, deve-se observar que os
mesmos temas encontram-se previstos no exercício interno ao Mercosul, processo
extremamente complexo e tematicamente diversificado, a despeito mesmo do pequeno
número de países engajados e da dimensão mais modesta de seus aparelhos produtivos e
de serviços, em grande medida voltados para os próprios mercados nacionais. Mais uma
vez neste caso, a Alca coloca ao Mercosul o desafio de seu próprio aprofundamento
interno, preservando áreas de preferência sub-regional num cenário mais amplo de
liberalização progressiva no plano hemisférico. A homogeneidade cultural e a
intensidade de vínculos intra-Mercosul deve atuar em seu benefício, estimulando
negócios no âmbito sub-regional mesmo em face de oportunidades ou desafios
potenciais no cenário continental mais vasto.
Alternativamente, os perigos presumidos ou efetivos para o Mercosul derivados
do esquema da Alca poderiam ser pressentidos a partir das assimetrias fundamentais
que caracterizam as economias do hemisfério, não apenas em termos de dimensão bruta
(a chamada economia de escala), mas essencialmente em razão dos diferenciais
intrínsecos de produtividade e de capacidade de penetração mercadológica. Ainda aqui,
os perigos são mais supostos do que reais, uma vez que algumas vantagens
comparativas naturais e dinâmicas dos países do Mercosul podem servir de contrapeso
ou atuar em seu benefício, no confronto com a potência avassaladora do gigante do
Norte. É de se esperar, por exemplo, que mesmo depois de empreendido sério esforço
de modernização produtiva e de aggiornamento tecnológico por parte dos países do
166
Mercosul, os diferenciais de produtividade permanecerão importantes em relação
àqueles observados em setores de serviços e ramos industriais nos quais os EUA já
detêm uma liderança incontestável. Mesmo neste caso, os diferenciais de custos de
mão-de-obra para serviços associados, particularidades dos mercados locais, diferenças
ou especificidades culturais, assim como o simples fator da proximidade geográfica
atuarão em benefício do Brasil e do Mercosul para uma ampla gama de bens e serviços,
produzindo portanto atração de investimentos e transferência de tecnologia num
horizonte de tempo indeterminado depois de começada a implantação da Alca.
Numa análise puramente econômica, aliás, a “ameaça” das assimetrias não
apresenta a mesma relevância estrutural, se pensada fora de um esquema de capitalismo
“nacional”. Com efeito, os economistas deduzem uma situação de maior racionalidade
econômica intrínseca quando um país industrialmente menos desenvolvido se associa,
num esquema de livre-comércio, a um parceiro mais poderoso, não quando dois ou mais
países igualmente “subdesenvolvidos” empreendem a construção de um “mercado
comum”. Daí as frequentes críticas de economistas “liberais” ao esquema do Mercosul,
manifestando eles a opinião de que o Brasil deveria abrir-se diretamente aos EUA num
exercício de comércio preferencial, pois tal situação conferiria mais vantagens a sua
economia menos avançada, ademais de permitir o desenvolvimento das especializações
produtivas. Na prática, como já constatamos, as situações de livre-comércio nunca são
perfeitas, persistindo espaços de liberalização restrita e diversos mecanismos de
proteção setorial que inviabilizam o pleno jogo da movimentação de fatores idealizada
pelos economistas teóricos.
Não se trata aqui de uma questão que possa ser resolvida in abstracto, podendo
apenas ser equacionada no terreno concreto das negociações para a definição das regras
da futura zona de livre-comércio hemisférica, assim como no domínio bem mais prático
(e microeconômico) das associações produtivas que serão promovidas voluntariamente
pelas próprias empresas, independentemente da vontade dos governos. Com efeito, as
empresas, conhecendo o cenário ambiental em que terão de atuar num determinado
setor, antecipam-se às medidas governamentais de “imposição” de novas regras,
construindo alianças táticas e acordos pragmáticos com competidores e parceiros no seu
setor de atividade, atuando assim para reduzir progressivamente tais assimetrias. Esse
processo será tão mais rápido quanto mais desregulado e aberto for o mercado setorial
em questão.
167
Não é certo, por exemplo, que as empresas brasileiras e as do Mercosul sejam
invariavelmente menos performantes do que as dos EUA em todos os setores abertos à
competição, assim como não é seguro que o diferencial mercadológico em favor das
empresas multinacionais seja válido em todas as situações de acesso e de penetração em
novos mercados. Segmentação da demanda, disponibilidade de fatores, apresentação
dos produtos, identificação cultural e sobretudo capacidade adaptativa e imaginação
criadora podem atuar em proveito de empresas locais em certas áreas de bens e serviços.
O Brasil, historicamente, já demonstrou possuir uma enorme capacidade de “digestão”
de novas tendências e de novas técnicas produtivas, não havendo razão para acreditar
que ele não saberá responder ao desafio que a Alca coloca para o seu sistema produtivo
e para a sua capacidade inovadora. A passividade e o fatalismo nunca foram traços da
personalidade brasileira.
Resumindo: a Alca possui, sem dúvida, um certo potencial “destruidor” de
empregos, em função das diferenças reais ou presumidas, de escala e de produtividade,
entre as economias hemisféricas, assim como pelo fato de ela estender-se a uma gama
tão ampla de setores que ultrapassa, por vezes, a capacidade “balanceadora” e a missão
“restauradora” das condições “normais” de competição por parte dos governos
nacionais. Sem embargo, os perigos são mais aparentes do que reais, na medida em que
o próprio setor privado encontrará soluções pragmáticas a tais assimetrias, que
representam outras tantas oportunidades para ganhos temporários antes que a
liberalização regional se converta em verdadeiro processo de globalização. Neste caso,
o excesso, ou a tentativa, de regulação governamental pode dificultar, mais do que
facilitar, o processo de superação das assimetrias existentes.
Meio ambiente e normas laborais são fatores limitantes e negativos no esquema de
negociações hemisféricas?; tais cláusulas vão bloquear a expansão do comércio ou o
livre fluxo dos investimentos?
Tais normas, a exemplo das barreiras técnicas e outras medidas não-tarifárias
que limitam ou obstaculizam o pleno acesso aos mercados, podem efetivamente
constituir fatores limitantes a uma verdadeira liberalização hemisférica, pois que
confirmando, se implementadas a partir de uma visão exclusivamente nacional da
questão, o sistema de “arquipélago de economias” que caracterizou, durante muito
tempo, a economia internacional. A dificuldade não está tanto na fixação de um
168
determinado padrão, supostamente mais elevado, para equacionar problemas no campo
trabalhista e na proteção do meio ambiente – algo continuamente tentado nos foros
multilaterais –, mas em sua utilização abusiva, de forma unilateral, para bloquear a livre
movimentação de bens, serviços e de capitais e tecnologias, inclusive mediante o
recurso a sanções de natureza comercial. Essa possibilidade deve ser simplesmente
vetada na mesa de negociações, pois que correspondendo a uma reação protecionista
daqueles que desejam “fazer girar para trás a roda da história”, ou seja, impedir que o
capital se dissemine pelo planeta, aproveitando as melhores chances de custo-benefício
para uma alocação “ótima” de recursos.
Parece ocorrer, nesse particular, uma curiosa colusão de interesses e de
propósitos entre sindicalistas do Norte e seus contrapartes do Sul, entre ONGs de
ecologistas das duas pontas do continente americano, entre refratários pragmáticos (por
definição de direita) e opositores ideológicos (geralmente de esquerda) ao livre-
comércio, ademais da já conhecida (e pouco santa) aliança entre anti-globalizadores de
todos os quadrantes do hemisfério. Normas laborais e ambientais converteram-se no
terreno comum de luta de todos aqueles que se posicionam contrariamente à Alca, seja
pelos nobres motivos da defesa efetiva do meio ambiente e dos direitos humanos, seja
por aqueles bem mais interessados (e por vezes mais mesquinhos) da defesa do emprego
local ou de uma idílica produção saudável (e subsidiada), em fazendas familiares
supostamente protegidas da concorrência selvagem introduzida pelas variedades
geneticamente modificadas. O mais estranho, certamente, é ver sindicalistas do Sul
defendendo empregos no Norte – uma vez que a introdução de normas laborais tem
precisamente como objetivo impedir a “fuga” do capital, e portanto a transferência de
empregos ao sul do Rio Grande – ou ecologistas normalmente contrários à desigualdade
inerente às estruturas econômicas internacionais promovendo o protecionismo agrícola
nos países desenvolvidos ou a manutenção involuntária de populações inteiras de
coletores-extrativistas nas regiões tropicais em níveis próximos da miséria absoluta.
A formulação tentativa e a promoção ativa de normas e padrões ambientais e
laborais mais avançados, quando combinada aos estímulos adequados para a livre
circulação de fatores, inclusive da mão-de-obra, pode no entanto atuar como elemento
de melhoria nos padrões de vida da maioria da população, sobretudo nos países ainda
em desenvolvimento, servindo para elevar a produtividade do trabalho e a performance
geral das economias mais atrasadas. Sua vinculação a acordos de comércio tem a
virtude, porém, de bloquear a disseminação desses mesmos padrões que seus
169
promotores querem ver implementados, uma vez que dificultando a mobilidade do
capital e a transferência de tecnologia pela simples razão de inibir os fluxos de
comércio, em lugar de estimulá-los.
Resumindo: Um sistema de códigos de conduta, de caráter voluntário mas de
adesão progressiva, para padrões ambientais e laborais pode permitir superar situações
de bloqueio “psicológico” que vêm contribuindo para contaminar o ambiente
negociador da Alca. Quanto ao Brasil, consciente das limitações, mas também dos
enormes progressos realizados nessas áreas, ele não parece ter algo a temer a partir da
fixação de metas mais ambiciosas nos terrenos social e ambiental. A fixação de metas
indicativas para a adesão progressiva dos países, mais do que a determinação de padrões
uniformes para todos numa escala sincrônica de tempo, pode servir para reconciliar o
capital e o trabalho, assim como ecologistas e empresas.
Práticas abusivas de salvaguardas comerciais e de antidumping, assim como políticas
deliberadamente distorcivas das condições de comércio, a exemplo das medidas de
apoio interno na área de agricultura, podem falsear os resultados da Alca, tornando o
exercício liberalizador meramente retórico e desequilibrado?
Certamente, e aqui o Brasil e o Mercosul devem atuar com toda a determinação
possível para eliminar as práticas mais danosas à liberdade de comércio nos terrenos em
que ele apresenta uma competitividade “natural” bastante superior à do parceiro
supostamente mais poderoso. Os EUA, com efeito, já declararam que pretendem deixar
intocada, no processo de negociações da Alca, sua panóplia de medidas de defesa
comercial, numa postura contraditória com o espírito de qualquer negociação
multilateral, na qual todos os elementos possuindo incidência nos fluxos de comércio
devem ser honestamente objeto de exame e eventual discussão quanto a sua adequação
ao novo espaço econômico integrado.
Esse posicionamento tem menos a ver com a suposta consistência desses
mecanismos nacionais de defesa comercial com as regras do GATT do que com o
elemento de chantagem política exercido pelo Congresso contra a liberdade de ação dos
negociadores do Executivo dos EUA. Trata-se de elemento puramente político, não
sustentável em qualquer critério econômico de competição leal e de abertura negociada
de mercados, e inteiramente dependente do exercício de uma efetiva capacidade
negocial que deve poder manifestar-se no caso do Mercosul e do Brasil em particular.
170
Resumindo: Um acordo de livre-comércio hemisférico no qual determinados
componentes da agenda permanecem unilateralmente inegociáveis – uma reprodução
econômica do conhecido aforismo orwelliano segundo o qual no “socialismo
comercial” todos são iguais, mas alguns são “mais iguais do que outros” – não parece
corresponder aos princípios aprovado em Belo Horizonte, em 1997, quanto ao equilíbrio
de resultados e ao compromisso indivisível em benefício de todos.
A Alca conduzirá à desnacionalização da economia brasileira? Subsistirão políticas
setoriais em nível nacional, diminuirá a margem de liberdade alocada à política
econômica governamental?
A eventual “desnacionalização” – não de setores, mas de frações de mercados
setoriais – a partir da venda ou fusão de empresas brasileiras a gigantes estrangeiros
nãonão será diferente ou em todo caso maior do que já ocorre no âmbito do processo de
globalização atualmente em curso, que foi voluntariamente assumido pelo Brasil como
um desafio importante a ser vencido, não como uma ameaça a ser evitada. Em nenhum
dos processos conhecidos de ativa interdependência econômica, como são os existentes
no âmbito da OCDE e a fortiori no seio da UE, diminuiu o papel do Estado ou
enfraqueceu-se a economia nacional, pela simples razão de que o capital estrangeiro
passou a participar com maior intensidade dos esquemas produtivos internos e dos
circuitos locais de produção e distribuição. Ao contrário, as “pequenas” empresas locais
adquirem dimensão nacional e a partir daí passam a atuar no plano internacional,
constituindo um “capitalismo multinacional” que foi até agora o apanágio dos países
mais avançados. Ocorreu assim nos casos de Portugal e Espanha, assim como da Itália,
e não há porque descartar que tais processos venham a ocorrer igualmente no âmbito do
Brasil e do Mercosul.
O Brasil tem, por certo, um crônico problema de déficit em transações correntes
e de desequilíbrio na balança de pagamentos, que acompanharam todo o seu processo
de industrialização. Mas tais fragilidades estão igualmente associadas ao ambiente geral
dos negócios, mais do que à ausência de capacidade reguladora do Estado, que assumirá
formas novas num cenário mais previsível de planejamento microeconômico. O fato de
que parceiros estrangeiros passem a atuar em setores antes vedados ou mais limitados à
presença de multinacionais não se traduz necessariamente numa desintegração
automática das cadeias produtivas, antes numa integração destas a circuitos mais
amplos nos planos hemisférico ou mundial.
171
É evidente, por outro lado, que qualquer acordo internacional que se faça em
áreas ainda inéditas de regulação multilateral ou regional, como é o caso da Alca — que
parece apontar para um instrumento relativamente “intrusivo” em termos de políticas
setoriais ou de mecanismos regulatórios — redunda numa diminuição da esfera da
soberania absoluta dos Estados nacionais e na redução ulterior dos poderes regulatórios
dos legisladores econômicos e, na outra vertente, num aumento do grau de
interdependência das economias e da margem de liberdade alocada aos agentes
econômicos privados. Mas, isso é próprio das tendências atuais tanto do regionalismo,
como do multilateralismo econômico, assim como da própria agenda negociadora
internacional, das quais participa o Brasil em plena consciência de causa e tendo sempre
como critério absoluto de atuação o interesse nacional na matéria. Entre esses critérios
não se situa o de privilegiar o capital estrangeiro em detrimento do capital nacional, mas
sim em atribuir a ambos um ambiente regulatório relativamente uniforme quanto às
regras gerais de exercício da atividade, o que é conhecido em terminologia “gattiana”
como tratamento nacional.
Resumindo: a internacionalização da economia brasileira e a constituição de
firmas nacionais de dimensão internacional – algo presumivelmente desejado, mesmo
pelo mais ferrenho opositor da Alca e do capitalismo norte-americano – se dará, não no
quadro de um suposto processo de “preparação” da economia brasileira para “enfrentar
a concorrência externa” – período de tempo que é sempre indefinido e invariavelmente
dependente de condições “ótimas” de políticas macroeconômicas, comercial e
industrial, que nunca se realizam na prática –, mas no próprio bojo da globalização, seja
ela restrita ao hemisfério ou ampliada em escala planetária. Processos de “acumulação
primitiva” nunca ocorreram de fato, a não ser nas análises ex-post que tendem a
racionalizar a experiência histórica e a oferecer como “modelo” o que nunca passou de
um processo único e original em termos de desenvolvimento socioeconômico de uma
determinada formação nacional. 1
O Brasil estaria isolado se decidisse permanecer fora da Alca?
1 Este último ponto apresenta uma certa importância (teórica) do ponto de vista da sociologia do
desenvolvimento econômico, mas tem pouca relevância prática do ponto de vista do negociador
governamental ou do estadista, que precisam responder às preocupações de suas respectivas
clientelas, sempre inquietas com qualquer tipo de penetração estrangeira na economia nacional.
172
Trata-se de uma decisão inteiramente política, a partir de uma hipótese extrema,
mas que terá de ser tomada com base numa análise econômica e diplomática no curso
do processo negociador. A Alca não é o único processo negociador de que participam
ou participarão o Brasil e o Mercosul, bastando com mencionar o processo bi-regional
com a União Europeia, os entendimentos no contexto da África austral e a opção
preferencial no âmbito da América do Sul. As opções para o Brasil e para o Mercosul
não estão fechadas, como alguns cenários mais pessimistas parecem antecipar. É bem
mais provável, aliás, não existir uma Alca, por razões que não teriam nada a ver com a
oposição ou relutância brasileira (mas mais provavelmente com a relutância do
Congresso e do próprio Executivo dos EUA), do que ser concluída uma Alca sem a
participação do Brasil.
Uma revisão de meio século do multilateralismo econômico e político revela que
nenhum país de dimensões “respeitáveis”, seja ele “atrasado” ou desenvolvido,
permanece isolado no cenário internacional. A experiência histórica da China, da Índia,
da Rússia, e dos próprios países desenvolvidos ocidentais, a começar pelos EUA e
passando pelos grandes da Europa – hoje unidos no mais exitoso experimento de
integração já conhecido – confirma que o isolamento é uma fase temporária e passageira
de qualquer processo de emergência e consolidação de novas estruturas de poder
econômico e político mundial. A posição do Brasil em relação ao sucesso – ou fracasso
– das negociações da Alca não deveria fugir a essa regra não escrita da diplomacia
contemporânea. O Congresso dos EUA, aliás, teriam provavelmente maior
responsabilidade nesse eventual fracasso, do que uma suposta “intransigência” do
Itamaraty ou do Governo brasileiro. Muito depende, em todo caso, da capacidade
negociadora da diplomacia brasileira no terreno da barganha concreta em torno da Alca,
bem como de sua capacidade “explicativa” em direção dos públicos externo e interno.
Nesse particular, o Brasil – dotado de uma diplomacia econômica que deita raízes nas
primeiras décadas do século XIX – pode considerar-se bem servido e dispondo de
enormes vantagens comparativas em relação a vários outros países do continente.
792. “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes?”,
Washington, 17 mai. 2001, 20 p. Artigo analítico, derivado do trabalho n. 791,
integrado ao livro organizado por Marcos da Costa Lima, O Lugar da América do Sul
na Nova Ordem Mundial (São Paulo-Recife: Cortez Editora-FAPEPE, 2001, p. 53-69).
Divulgado em partes no Meridiano 47 (n. 13, jul. 2001, p. 2-6; link:
173
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_13.pdf) sob o título “Cenário econômico e político do debate
hemisférico”, e n. 14-15 (ago. 2001, p. 11-15; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_14_15.pdf), sob título “Mercosul e ALCA: liaisons dangereuses?”.
Revisto em 31.10.01, para publicação nos anais do seminário “O Brasil e a Alca”
(Brasília: Câmara dos Deputados, org. do Dep. Marcos Cintra). Disponível no site
pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/798MSulAlca.html. Publicado sob o
título “O Mercosul e a Alca na perspectiva do Brasil: uma avaliação política sobre
possíveis estratégias de atuação”, In Marcos Cintra e Carlos Henrique Cardim (orgs.), O
Brasil e a Alca: seminário. (Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de
Publicações: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2002, p. 97-110, ISBN:
85-7365-188-1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados ns. 266,
275, 276, 278, 281, 285, 335.
174
16. O Mercosul não é para principiantes: sete teses na linha do bom
senso
Introdução
Vou formular algumas “teses” sobre a posição do Brasil em relação ao Mercosul que,
aparentemente, têm a pretensão de ser de “bom senso”, ou seja, tratam do óbvio. Mas,
elas também são, num certo sentido, iconoclastas, uma vez que nem sempre o óbvio e o
necessário são observados na vida real. Em momentos considerados de “ruptura” ou
dominados por políticas e práticas “inovadoras”, determinadas posturas diplomáticas
não necessariamente refletem o que se poderia chamar de racionalidade econômica
stricto sensu, e sim posições e políticas momentaneamente dominantes. Alguma coisa
poderia ser agregada em relação aos interesses nacionais, mas esse aspecto pode ser
deixado momentaneamente de lado para fins desta discussão puramente conceitual e
exploratória.
Apresento resumidamente a seguir minhas teses e depois tentarei elaborar sobre cada
uma delas.
1. O Mercosul não é, nem pode ser um fim em si mesmo.
2. O Mercosul não contém, não pode conter, não responde e não pode responder a todos
os interesses nacionais brasileiros.
3. Os benefícios do Mercosul precisariam, em algum momento, ser confrontados aos
seus custos.
4. O Mercosul não é um instrumento de desenvolvimento nacional; é um mecanismo de
liberalização.
5. O Mercosul não é uma instituição de caridade (e nem se deveria cogitar de criar
uma).
6. As instituições do Mercosul não devem definir-lhe a forma e sim responder a funções
reais do processo de integração; por isso não se deve constituir instituições que não
respondem a funções concretas.
7. Não se deve temer retrocessos, desde que seja para avançar de maneira mais segura,
mais adiante, segundo a conhecida fórmula: reculez pour mieux sauter, recuar para
melhor saltar.
Vejamos agora cada uma dessas “teses” com maior grau de detalhamento e dotadas
das devidas explicações.
1. O Mercosul não é, nem pode ser um fim em si mesmo.
O Mercosul, salvo algum entendimento secreto e não sabido entre os negociadores
diplomáticos dos países membros, não foi feito com intenções jurídico-conceituais e
não se destinava a provar nenhuma tese de cunho acadêmico, para maior glória e
175
excelência de uma integração econômica em si e por si. Ele foi feito para alcançar
determinados objetivos que estão explicitados no Tratado de Assunção (TA), de1991.
Entre esses objetivos podemos citar:
(a) a necessidade de ampliar as dimensões dos mercados nacionais dos países
membros, requerimento considerado como “condição fundamental para acelerar seus
processos de desenvolvimento econômico com justiça social”. “Justiça social” entra
aqui como uma invocação tipicamente política, mas o argumento econômico é claro:
ampliar os mercados nacionais, ou seja, lograr economias de escala para suas empresas.
(b) Esse objetivo deveria ser alcançado “mediante o aproveitamento mais eficaz dos
recursos disponíveis, a preservação do meio ambiente, o melhoramento das
interconexões físicas, a coordenação de políticas macroeconômicas da (sic!)
complementação dos diferentes setores da economia”, o que também deve ser visto
como uma finalidade essencialmente racional do ponto de vista econômico. A
metodologia a ser seguida para alcançar esses objetivos toma como base os princípios
de “gradualidade, flexibilidade e equilíbrio”, o que em nada diminui a qualidade
essencialmente ricardiana dos objetivos propostos. (Nota: o TA padece de erros de
redação que não foram corrigidos até hoje.)
(c) Uma das justificativas para se avançar no processo de integração foi apresentada
como sendo a “evolução dos acontecimentos internacionais, em especial a consolidação
de grandes espaços econômicos”, daí “a importância de lograr uma adequada inserção
internacional” para os países membros. O processo de integração foi considerado como
constituindo “uma resposta adequada a tais acontecimentos”. (Na verdade, não se trata
de acontecimentos, ou eventos, mas de processos e fenômenos com prazos mais
delongados de maturação e de desenvolvimento do que os eventos a ele associados.)
(d) Outros objetivos da decisão dos países membros de firmarem o TA remetem à
“necessidade de promover o desenvolvimento científico e tecnológico dos Estados
Partes e de modernizar suas economias para ampliar a oferta e a qualidade dos bens de
serviços disponíveis, a fim de melhorar as condições de vida de seus habitantes”.
Em outros termos, de todos os requerimentos alinhados para justificar o TA, pode-se
observar que a integração não é, nem nunca foi, no TA e em outros instrumentos,
considerada como um fim em si mesmo. Ela sempre apareceu como um meio para
alcançar objetivos relevantes do ponto de vista econômico, social, político, tecnológico
e diplomático; em todo caso, ela é mobilizada enquanto instrumento funcional para o
176
atingimento de outros fins que não a integração em si e por si, que deve ser um simples
meio ou instrumento para o atingimento daqueles objetivos já explicitados.
Ora, o que vem sendo observado, desde alguns tempos para cá, é que a integração
parece ter virado um objetivo em si e por si, como se estivéssemos em busca de algum
padrão de perfeição estética no campo da integração, ou necessitados de mais uma
instituição burocrática que se justificaria por si mesma, apenas por ter o compromisso
de realizar a integração. Esta é proclamada prioridade estratégica de diplomacia
brasileira (aliás, desde muito tempo), sem que uma avaliação realista tenha sido feita
para separar o que aparecia como “necessidade histórica”, numa determinada
conjuntura, e o que pode, realisticamente ser feito hoje para inserir o Brasil na economia
mundial e nos fluxos mais dinâmicos do comércio internacional e das demais transações
financeiras, tecnológicas ou de investimentos.
O que pretendo dizer é que, se a integração regional aparecia como funcional para o
atingimento de determinados objetivos, numa fase específica do itinerário econômico do
Brasil – e isso depende do julgamento dessa época sobre ela mesma e do julgamento
que hoje podemos fazer sobre aquele momento, com o benefício da chamada avaliação
retrospectiva -, pode perfeitamente ocorrer, atualmente, que ela não mais o seja. Ou
então que a forma “modelar” dessa integração, tal como escolhida pelos “pais
fundadores”, atendendo eles a requisitos e percepções de uma determinada conjuntura,
já não mais corresponda às necessidades da presente fase. Essa avaliação deve ser
conduzida com toda isenção política e econômica, com toda independência analítica,
separando idéias e princípios pré-concebidos das tarefas e práticas que devemos
conduzir hoje, para alcançar os objetivos que são os nossos, nacionais, antes dos
objetivos regionais ou multilaterais.
Nossa realidade, dispensável dizê-lo, é a da realidade nacional, das necessidades de
desenvolvimento da sociedade nacional, e nesse sentido qualquer projeto integracionista
deve, antes de mais nada, subordinar-se aos interesses nacionais. Se estes puderem ser
combinados aos interesses nacionais de outros países, muito bem, caso contrário,
aqueles devem prevalecer. Este deve ser, sempre, o critério básico através do qual
devemos abordar o fenômeno integracionista.
2. O Mercosul não contém, não pode conter, não responde e não pode responder a
todos os interesses nacionais brasileiros.
Pela sua própria definição, enquanto projeto de liberalização comercial e de
integração de atividades econômicas de âmbito regional, o Mercosul é uma parte, e
177
apenas uma parte, da economia, do comércio, dos intercâmbios mantidos pelo Brasil
com o exterior. Essa parte cresceu tremendamente no curso dos primeiros dez anos da
integração, passando grosso modo de menos de 5% dos intercâmbios externos para algo
como 14 ou 15% desses intercâmbios na fase presente. Não é certo que esse
crescimento das trocas estaria ausente na falta de um projeto integracionista, mas é certo
que o projeto ajudou nesse crescimento, tanto quanto ele estimulou certo número de
trocas externas, isto é, com terceiros países.
O Mercosul – e os países associados e os demais vinculados por acordos de comércio
– representa um aporte significativo de mercados adicionais e complementares que
podem estar à disposição das empresas brasileiras, tendo em vista os mecanismos
preferenciais existentes. Ou seja, ele é uma espécie de reserva de mercado ampliado ou,
em certo sentido, uma mini-globalização, que destaca uma parte dos mercados externos
para melhor usufruto das competências nacionais. Os economistas debatem, ainda e
sempre, se nesse processo não existiria algum desvio de comércio e de investimentos,
criando, portanto, situações de third best no quadro das possibilidades das trocas
externas. Esse debate continuará, mas cabe reconhecer que, independentemente do
maior ou menor grau de desvio de intercâmbios externos, estes, no quadro global,
sempre representarão uma pequena parte, apenas, da soma total dos intercâmbios
externos. Em algumas áreas eles poderão ser importantes, em outras menos, mas sempre
de modo parcial e incompleto.
Ora, a melhor das situações, do ponto de vista da racionalidade econômica, é dispor
o país, qualquer país, de todas as possibilidades abertas para si. Isso nem sempre é
possível, mas trata-se certamente de objetivo a ser perseguido. Não é por outra razão,
por exemplo, que Chile e México, em nossa região, e mesmo os EUA, tentam
multiplicar as chances de acordos comerciais com todo e qualquer parceiro disponível e
aberto a esse tipo de empreendimento, na ausência da situação de first best, que seria a
abertura multilateral, incondicional e irrestrita, de todas as economias a todos os tipos
de intercâmbios. Não é por exemplo do Paraguai ou do Uruguai que as empresas
brasileiras retirarão mercados importantes, financiamento adequado, tecnologias
avançadas e sobretudo desafios competitivos para sua melhor e maior inserção na
economia mundial. O Mercosul é bom para algumas coisas, mas não o é para outras, ou
para todas, e como tal deve ser considerado. Sendo parcial e limitado, ele não deveria
delimitar ou definir os parâmetros externos para a inserção competitiva do Brasil na
economia mundial.
178
3. Os benefícios do Mercosul precisariam, em algum momento, ser confrontados
aos seus custos.
A despeito de todos os argumentos que destacam ou enfatizam, com maior ou menor
grau de sinceridade ou racionalidade, as bondades do Mercosul, cabe reconhecer que
toda situação de comércio preferencial, de exclusividade, portanto, comporta aspectos
positivos e negativos. O que deve ser feito é uma avaliação honesta e objetiva desses
prós e contras do processo integracionista, de qualquer processo de integração, aliás. O
que não pode ser feito, seguramente, é ressaltar e elogiar os benefícios desse processo e
deixar de lado os aspectos ou elementos menos positivos, que têm a ver, justamente,
com a preferência artificial criada em favor de determinados setores ou ramos da
economia, em detrimento de uma competição ampliada.
A competição, desde o final do mercantilismo, sempre foi reconhecida como uma
das mais poderosas alavancas de progresso material e de inovação tecnológica, algo que
depende, intrinsecamente, da liberdade dos mercados e da estabilidade de regras para
gerar confiança nos parceiros e interventores desses e nesses mercados. Ora, ao definir
regras de competição não tão amplas – ou livres – quanto desejável, os processos de
integração diminuem o quantum de liberdade e de “multilateralidade” necessário para
assegurar que a competição seja realmente levada ao ponto ótimo possível. Esse ponto é
difícil de definir, uma vez que as situações de abertura unilateral e incondicional
também apresentam certos custos que devem ser medidos em termos de empregos
perdidos e de destruição de competidores iniciantes, o que geralmente é resolvido na
prática por práticas e políticas de protecionismo à la List, isto é, de caráter temporário e
de tipo moderado. Nem sempre os governos, ou os lobbies que fazem pressão em torno
deles, adotam a curva ideal de protecionismo decrescente, como geralmente praticado
nos processos de desenvolvimento gerado e gerido de forma autônoma: pode ocorrer de
essas práticas serem prolongadas indefinidamente, com perdas para o país e os
consumidores.
O fato é, porém, que os processos de integração, todos eles, tendem a gerar impulsos
protecionistas, para dentro e para fora do próprio processo em causa. A esses custos
diretos, em termos de segmentação e cartelização de mercados, devem ser acrescentados
os custos indiretos da burocracia regulacionista, nos planos nacional e regional, que
tendem a congelar situações competitivas que não são as do maior bem-estar possível,
mas sim as existentes no momento da negociação da abertura recíproca de mercados.
Isso gera um baixo dinamismo econômico que tende a ser cumulativo, descolando o
179
bloco em questão das pressões competitivas de outra forma advindas da economia
mundial.
Em resumo, excessos integracionistas, em contraposição à abertura unilateral ou
negociada, ainda que moderada e restrita, podem representar custos reais para os
sistemas produtivos nacionais, ademais de reduzirem os ganhos de bem-estar dos
consumidores nacionais. Pode-se dizer, portanto: integração, OK, ma non troppo,
sobretudo aquela do tipo exclusivo e excludente.
4. O Mercosul não é um instrumento de desenvolvimento nacional; é um
mecanismo de liberalização.
Parece evidente que um processo de integração não pode substituir, por seu próprio
mérito, projetos ou processos de desenvolvimento nacional. Esses processos atuam na
interface do comércio exterior, dos investimentos, de acesso a novas tecnologias, mas a
dinâmica principal do desenvolvimento tem a ver com a capacitação (sempre interna)
dos recursos humanos e materiais engajados na definição de políticas adequadas de
criação de novas oportunidades de emprego e, portanto, de crescimento da produção e
da renda.
Tentar fazer do processo de integração um instrumento de desenvolvimento, em sua
dimensão própria, representa exigir em demasia desse processo, tentar fazê-lo cumprir
uma missão histórica que não é a sua. Políticas de desenvolvimento devem ser definidas
pelas autoridades econômicas e políticas nacionais, de acordo com um leque, ou um
coquetel, de medidas do mais variado sabor: políticas macro e micro, medidas setoriais,
sobretudo aquelas que incidem sobre os fatores principais de crescimento e de
desenvolvimento: o aumento das taxas de produtividade do trabalho humano, o que tem
a ver, basicamente, com o incremento da qualidade da educação e da formação técnico-
profissional da mão-de-obra do país em causa.
O Mercosul deveria ficar restrito, tanto quanto possível, aos objetivos fixados
originalmente no TA: liberalização comercial, formação de um mercado comum,
coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais, enfim, objetivos limitados, que
têm a ver mais com o bom desempenho das políticas globais e setoriais (sobretudo
comerciais), do que com a mudança social e redistributiva implícita a todo e qualquer
processo de desenvolvimento.
5. O Mercosul não é uma instituição de caridade (e nem se deveria cogitar de criar
uma).
180
Transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres pode e deve ser feita,
desde que obedecendo a certos critérios redistributivos que levem em conta as
disparidades reais entre indivíduos – o que geralmente é medido pela renda per capita –
e desde que exista, de fato, recursos disponíveis para esse tipo de política assistencial.
Do contrário seria melhor basear-se em velhos mecanismos de mercado, bem mais
eficientes do que os governos, para gerar maiores oportunidades de emprego e de
criação de riqueza.
Fundos de desenvolvimento, quaisquer que sejam suas regras específicas, dependem
de um provedor principal de recursos, que aceite a relativa assimetria implícita nesses
mecanismos de transferência de renda, geralmente alguma economia mais poderosa que
consinta, democraticamente, nessa transferência. Não parece existir tal situação no
Mercosul, região onde as disparidades entre os países são menos importantes do que
aquelas existentes, por exemplo, entre regiões brasileiras – entre o Nordeste e o Sudeste
e o Sul, para ser mais claro – e onde os indicadores sociais e de renda per capita dos
países supostamente beneficiários da ajuda – os menores - superam amplamente aqueles
existentes nessas regiões mais atrasadas do Brasil. A suposta “generosidade” de
políticas assistencialistas desse tipo não contribui necessariamente para gerar riquezas
permanentes ou situações de equilíbrio dinâmico no processo de integração. De resto,
assimetrias são inerentes a toda e qualquer situação sistêmica, confrontado sempre
países e economias com dotações desiguais, diferentes entre si, que conformam
precisamente a base das vantagens ricardianas existentes (e adquiridas, dinamicamente),
bem como as alavancas necessárias ao estabelecimento de relações de intercâmbio entre
eles.
6. As instituições do Mercosul não devem definir-lhe a forma e sim responder a
funções reais do processo de integração; por isso não se deve constituir
instituições que não respondem a funções concretas.
Em princípio, as instituições integracionistas devem seguir as necessidades ditadas
pelos processos reais de integração econômica e adaptar-se aos seus requerimentos, não
moldarem elas mesmas o formato, o ritmo e as características básicas desses processos.
Instituir uma nova organização, digamos um Parlamento, para só depois tentar encontrar
funções para ele, pode significar colocar o carro na frente dos bois, o que não é uma
receita para fazer avançar o processo histórico. Da mesma forma, criar um instituto
monetário para especular sobre as melhores condições de se instituir uma moeda única
pode representar certo lirismo acadêmico na busca de progressos da integração, mas não
181
faz avançar um milímetro o processo, se inexistirem condições reais para a efetivação
desse ambicioso projeto de renúncia de soberania monetária.
Cabe, com efeito, chamar a atenção para o tremendo potencial de renúncia de
soberania – tanto estatal, stricto sensu, como econômica, no sentido amplo – desses
projetos que tendem a exigir uma burocracia “extranacional” muito extensa ou que
geram instituições que adquirem vida própria, uma vez criadas. O mundo – sobretudo o
mundo onusiano, dos últimos 60 anos – é pródigo em novos órgãos e carente, de um
modo terrível, de um real processo de desenvolvimento de povos ditos “atrasados”. No
último meio século são muito poucos, pouquíssimos os países que saltaram a barreira do
desenvolvimento real, que significa um processo endógeno de crescimento sustentado
com transformação produtiva e redistribuição de riqueza. Se a maior parte não o fez,
não foi exatamente pela falta de órgãos, nacionais e internacionais, dedicados à nobre
missão do desenvolvimento. Ao contrário: há uma verdadeira pletora deles, em todos os
setores de atividades (nacionais e regionais) que se pode desejar, inclusive vários para
acabar com a fome e a miséria. Não se tem notícia de que os problemas sociais nos
países mais pobres ficaram menos dramáticos devido à existência desses órgãos, que
continuam existindo décadas depois que foram criados, atuando nas mesmas bases.
Aliás, um exemplo nacional bastaria: vinte anos de “criança esperança”, com milhões
sendo arrecadados a cada ano, diz alguma coisa do ponto de vista da ajuda ao
desenvolvimento?
7. Não se deve temer retrocessos, desde que seja para avançar de maneira mais
segura, mais adiante, segundo a conhecida fórmula: reculez pour mieux sauter,
recuar para melhor saltar.
Persistir no erro de soluções requentadas pode ser uma forma burra de consolidar
respostas erradas para problemas que foram mal diagnosticados. A América Latina, de
modo geral, é subdesenvolvida, ou pouco desenvolvida, devido à inexistência ou à
insuficiência dos processos de integração? Não creio, pois o desenvolvimento responde,
como já referido, a processos e políticas de maior escopo e abrangência do que a
simples liberalização dos mercados e a abertura econômica, que são medidas
consubstanciais aos processos de integração.
Não há nada de errado na integração, que deve ser considerada como o vestíbulo de
uma integração mais ampla, das economias nacionais com a economia mundial, uma
espécie de mini-globalização provisória, até que a globalização mais vasta englobe de
verdade os países participantes. O erro seria concebê-la de maneira exclusiva e
182
excludente. No caso dos projetos de mercado comum, o timing do processo deve ser tão
importante quanto à forma ou as peculiaridades desse processo, pois ele implica, de
fato, na renúncia de soberania implícita ao ordenamento interestatal de políticas
econômicas, de caráter macro ou setorial.
Por questões atinentes ao timing de seus próprios processos de estabilização
macroeconômica, os países do Mercosul não parecem prontos para adentrar nas tarefas
e requerimentos de um mercado comum, aliás, sequer naqueles de uma união aduaneira.
Talvez uma solução de menor custo, para evitar a perda de credibilidade do bloco, seria
terminar a construção da zona de livre comércio antes de passar às etapas mais
avançadas do processo de integração. Não há nenhum problema em admitir
insuficiências do processo real; é bem melhor, aliás, do que manter a ficção de uma
construção inacabada e inacabável, por insuficiência de meios e de vontade política para
tanto. Grandes saltos podem ser obtidos por aceleração gradual, mas também por recuos
táticos ou estratégicos. Talvez seja o caso de repensar o Mercosul enquanto projeto
comercial, apenas comercial.
Como conclusões provisórias e puramente circunstanciais, eu alinharia as seguintes:
(a) o Mercosul deveria concentrar-se no essencial e voltar às suas origens, que estão
num mandato de liberalização precipuamente comercial, dedicando-se ao acabamento
de uma integração, stricto sensu, dos espaços econômicos regionais;
(b) não se deveria entupir a agenda do Mercosul de temas acessórios, de escassa
relevância econômica ou comercial, ainda que de suposto interesse “social”;
(c) também não caberia sobrecarregar o “barco” institucional do Mercosul, que
poderia adernar, e sim fazer funcionar o que já foi acordado, com base nas instituições
criadas até aqui;
(d) atenção especial deveria ser dada, mas isso é óbvio também, à defesa dos
interesses comerciais brasileiros, o que, atualmente, passa pela defesa dos exportadores
nacionais submetidos a demandas ilegais por salvaguardas;
(e) finalmente, não se deveria fazer do Mercosul um cadáver embalsamado, estilo
Lênin na Praça Vermelha, mas ter a coragem – e eventualmente a iniciativa – de rever
posturas diplomáticas e compromissos políticos do passado, se a atual realidade assim o
impõe.
Esquema: São Paulo-Brasília, 29 de junho de 2005.
183
Elaboração: Brasília, 15-17 de agosto de 2005.
1458. “Mercosul: sete teses na linha do bom senso”, Brasília, 15 de agosto de 2005, 9 p.
Considerações sobre o Mercosul, apresentadas em seminário sobre o Mercosul
organizado pela CNI (Brasília, 16/08/2005). Reformulado sob o título “O Mercosul não
é para principiantes: sete teses na linha do bom senso” e publicado na revista Espaço
Acadêmico (a. V, n. 53, out. 2005;
http://www.espacoacademico.com.br/053/53almeida.htm). Dividido, em 4/10/2005, em
versão resumida, em três partes, e publicado no Colunas de Relnet: “Mercosul para
principiantes, I: Objetivos e interesses” (n. 12, jun/dez. 2005 [12/10/2005]; “Mercosul
para principiantes, II: Custos e benefícios” (n. 12, jun/dez. 2005 [19/10/2005]; e
“Mercosul para principiantes, III: Instituições e regras básicas” (n. 12, jun/dez. 2005
[29/10/2005]). Republicado em ordem dispersa no boletim Meridiano 47 (n. 64,
novembro 2005, p. 2-3; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-
_1-100_files/Meridiano_64.pdf; Mercosul para principiantes: Custos e benefícios: n. 63,
outubro 2005, p. 9-10; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-
_1-100_files/Meridiano_63.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de
Publicados n. 590, 597, 602, 609, 614 e 619.
184
17. Problemas da integração na América do Sul: a trajetória do
Mercosul
Depois de anos, ou décadas, de tentativas bem intencionadas, mas relativamente
infrutuosas, para conformar um espaço econômico integrado na região, desde o início
da antiga Alalc – Associação Latino-Americana de Livre-Comércio, derivada do
primeiro tratado de Montevidéu, de 1960 – até a atual Aladi – Associação Latino-
Americana de Integração, constituída pelo segundo tratado de Montevidéu, em 1980 –,
o processo integracionista na América Latina ingressou, na segunda metade dos anos
1980, numa fase de sub-regionalização, ou seja, de diluição em experimentos parciais e
geograficamente mais limitados, o que foi seguido de características novas em suas
modalidades operacionais. Afastando as linhas mais rígidas dos grandes projetos do
passado, os países voltaram-se para esquemas mais graduais e flexíveis, com uma
abordagem setorial e mais equilibrada dos principais eixos da integração.
Estas foram, em todo caso, as principais características do mais exitoso projeto
de integração dos anos 1990, o Mercosul, que tinha começado por adotar aquela
metodologia mais cautelosa em meados da década anterior, mais exatamente a partir de
1985, com os esquemas bilaterais conduzidos pelos novos regimes democráticos da
Argentina e do Brasil. Um tratado bilateral de integração, de 1988, vinha coroar esse
esforço de constituição de um mercado comum, em dez anos, pelo método dos acordos
setoriais, ou protocolos de integração complementar, numa visão relativamente dirigista
e administrada desse processo. No início dos anos 1990, entretanto, duas novas
administrações mais comprometidas com uma visão liberal da economia e do mundo,
decidiram acelerar e aprofundar esse processo, julgado excessivamente cauteloso ou
lento, ademais de submetido às limitações intrínsecas a cada setor objeto de acordos de
complementação.
O novo esquema Brasil-Argentina de liberalização comercial e de construção do
espaço integracionista, logo consagrado no esquema quadrilateral do Mercosul e o seu
tratado de Assunção (março de 1991), passou a ser automático, geral e de características
fundamentalmente livre-cambistas, em lugar do relativo “dirigismo” do esquema
anterior, baseado nos protocolos setoriais. Os novos prazos de integração foram
praticamente reduzidos pela metade – devendo-se alcançar a etapa do “mercado
comum” até o inicio de 1995 –, mas as rebaixas automáticas de barreiras tarifárias
deixaram ao sabor do mercado o que os estrategistas anteriores da integração sub-
185
regional pensavam administrar segundo um processo gradual de especialização e de
complementação produtiva.
Colocou-se, no mesmo momento – segundo semestre de 1990 –, a questão da
possível adesão do Chile ao novo bloco de integração, que passou então a contar com as
presenças do Paraguai e do Uruguai. Desde aquela época, porém, assim como em
tentativas ulteriores de sua associação mais estreita ao Mercosul, o obstáculo básico a
essa adesão do Chile ao esquema sub-regional reside na estrutura linear e única da tarifa
comercial chilena, já então bem mais limitada em sua alíquota máxima – e descendente,
a partir de apenas 11% -- do que o leque tarifário que o Brasil e a Argentina pretendiam
estabelecer como Tarifa Externa Comum.
A despeito de problemas conjunturais bastante graves que então marcavam os
respectivos processos de estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina – esta
recentemente saída de dois dramáticos surtos hiperinflacionários, aquele ainda batendo-
se para eliminar a desindexação generalizada da sua economia –, a liberalização
comercial pode caminhar de forma mais ou menos rápida, abrindo espaço para um
poderoso aumento do comércio bilateral, que não chegou, entretanto, a desviar os fluxos
de terceiros países, uma vez que esse impulso correspondeu a um aumento generalizado
das correntes de comércio em várias direções. Não obstante, não foram corrigidas
algumas das chamadas “assimetrias estruturais” que conduziram o Brasil a uma
crescente especialização industrial e a Argentina a uma ênfase nas indústrias ligadas ao
setor primário de sua economia.
Numa primeira fase, a abundância dos investimentos internacionais, acoplada a
processos de privatização e de desmonopolização em ambas as economias, permitiu ao
Brasil e à Argentina sustentar o aprofundamento da integração comercial, ocorrendo
mesmo investimentos recíprocos nos dois países. Movimentos cambiais diferenciados
de um lado ou outro do rio da Prata também contribuíram para manter os fluxos de
comércio, sendo que o Brasil foi, praticamente, um dos únicos provedores de saldos
comerciais para a Argentina, numa fase em que o Plano Cavallo de conversibilidade
impunha uma paridade cambial fixa para o peso em relação ao dólar, o que diminuía
bastante sua competitividade nos mercados internacionais.
O comércio dentro e fora do Mercosul cresceu bastante – inclusive o comércio
intra-ramos e intra-firmas –, observando-se, em particular, a criação de uma “Brasil-
dependência” na Argentina, uma vez que esta tinha no seu maior vizinho o destino para
mais de um terço de suas exportações totais e um volume praticamente similar nas
186
importações. A “bonança” dos superávits comerciais não pôde, contudo, sustentar-se
durante muito tempo, uma vez que a Argentina entrou em uma fase de baixo
crescimento no final dos anos 1990, situação ainda agravada pelo aumento dos déficits
orçamentários, pela baixa na atração dos investimentos externos – e o consequente
apelo a emissões importantes nos mercados financeiros internacionais – e pelos
violentos tremores financeiros dessa época, que terminaram por atingir de modo
dramático o Brasil.
Não é preciso dizer que, a despeito dos avanços logrados no comércio
intrarregional, nunca se chegou a estabelecer o prometido “mercado comum”, assim
como a união aduaneira, virtualmente existente a partir de 1995, comportava inúmeras
exceções à Tarifa Externa Comum, sem mencionar os produtos ainda fora da zona de
livre-comércio sub-regional, como o açúcar e a importante indústria automotiva, base,
aliás, de grande parte do comércio bilateral entre o Brasil e a Argentina (que incluía
ainda certo volume de fluxos administrados, como trigo e petróleo). Tampouco foi
possível lograr a coordenação de políticas macroeconômicas e cambiais, inclusive
porque a manutenção da paridade fixa do peso no caso argentino impedia qualquer
exercício de fixação de alguma banda de flutuação com o novo real do Brasil.
O protocolo de Ouro Preto, assinado no final de 1994 para “completar” o tratado
de Assunção, não criou instituições novas para administrar o processo de integração,
nem estabeleceu mecanismos para facilitar a coordenação de políticas macroeconômicas
ou para aprofundar a integração no plano microeconômico. A despeito da associação ao
Mercosul, em 1996, do Chile e da Bolívia como parceiros da “zona de livre-comércio”,
não se conseguiu avançar na prometida ampliação do espaço integracionista no âmbito
sul-americano, que deveria comportar ainda os países membros da Comunidade Andina
de Nações, cuja união aduaneira ostentava mais deficiências do que o próprio Mercosul.
Por outro lado, a suposta “ameaça” da Alca – projeto arquitetado pelos EUA desde a
conferência de Miami, em dezembro de 1994, para unificar numa mesma zona de livre-
comércio todos os países do hemisfério até 2005 – fez com que os países do Mercosul
desenvolvessem uma estratégia comercial basicamente defensiva, interrompendo-se os
movimentos de abertura para dentro e para fora até que se pudessem negociar todos os
compromissos de liberalização, inclusive nas áreas mais difíceis da agricultura (para os
Estados Unidos) e dos serviços e dos investimentos (para o Brasil).
A moeda brasileira manteve-se numa banda relativamente estreita e alinhada ao
dólar durante a primeira fase do processo de estabilização conduzido pela administração
187
FHC entre 1995 e 1998, o que levou a uma relativa valorização do real, ao agravamento
dos déficits comerciais e aos já referidos saldos positivos acumulados pela Argentina no
intercâmbio comercial bilateral durante todos esses anos. A partir de 1997, a sucessão
de crises financeiras na Ásia, seguida pela moratória russa em agosto de 1998 conduziu
ao primeiro programa de ajuda financeira por parte do FMI ao Brasil no final desse ano.
O acordo então concluído – por um montante total de US$ 41,5 bilhões – previa a
continuidade da estabilidade cambial, a despeito de discretas pressões do FMI para a
desvalorização do real, o que foi obtido de maneira mais espetacular em janeiro de 1999
quando da inauguração de um novo mandato para o presidente Cardoso.
Esta conjuntura representou também um choque para a Argentina e o início de
uma fase crítica para o Mercosul que se prolonga, praticamente, até os nossos dias.
Mesmo se os saldos comerciais favoráveis não desaparecem de todo, no seguimento
imediato da crise do real, as condições de competitividade estrutural se alteraram de
modo sensível, com perda de confiança na capacidade da economia argentina de
recuperar-se e enfrentar os novos desafios do regime de flutuação da moeda brasileira.
A Argentina ainda arrastou-se por dois anos na ficção do seu plano de conversibilidade,
acumulando uma enorme dívida externa e sucessivos planos de ajuda com o FMI que
apenas remediavam, sem resolver definitivamente, o que agora parecia uma crise
terminal. Esta ocorreu no final de 2001, não sem antes obrigar o Brasil a negociar um
segundo acordo de sustentação financeira com o FMI que, como o primeiro, teve função
essencialmente preventiva.
Mais ainda do que na fase anterior (meados dos anos 1990), o Brasil passou a
atrair investimentos nos setores industriais e de serviços, deixando a Argentina numa
incômoda posição de “sócio menor”, o que provavelmente afetou o esquema de
integração mais pelos seus efeitos propriamente “psicológicos” do que pelo real impacto
nas correntes bilaterais de comércio. Tentativas de “coordenação macroeconômica”, de
um lado, e ameaças de dolarização completa, de outro, não resolveram os problemas
conjunturais do Mercosul, que se viu mergulhado em profunda crise de identidade,
ademais do próprio decréscimo brutal dos fluxos totais de comércio intrarregional nos
primeiros anos da presente década.
O processo eleitoral no Brasil, no decorrer de 2002, aliás coincidente com mais
uma pacote de ajuda do FMI – desta vez pela quantia historicamente inédita nos
registros da instituição de Washington, de USS 30 bilhões –, e a transição política
altamente volátil observada na Argentina durante esse período, não contribuíram para
188
diminuir o clima de crise no Mercosul, a despeito das promessas da nova administração
de Luís Inácio Lula da Silva de dar toda prioridade ao esquema sub-regional e de
reconstruir a relação especial com a Argentina. Em especial na área industrial, os
déficits setoriais começaram a se acumular, ameaçando inverter a bonança dos anos 90,
o que efetivamente se consolidou a partir de 2003.
A Argentina começou a utilizar-se, de modo cada vez mais frequente e sem a
devida consulta bilateral, de mecanismos permitidos ou abusivos de defesa comercial,
em especial salvaguardas unilaterais e processos de antidumping em vários setores
ameaçados de “desindustrialização”. Não é preciso dizer que o setor automotivo nunca
logrou conhecer o prometido livre-comércio. Uma violenta crise financeira no Uruguai
e problemas persistentes no Paraguai também atuaram para conduzir o Mercosul a um
estado de “anemia integracionista” jamais visto em sua história. A despeito de uma
volta ao crescimento dos fluxos intrarregionais de comércio a partir de 2003, sobretudo
entre as duas grandes economias, permaneceram os desequilíbrios setoriais, motivando
demandas por proteção por parte da União Industrial Argentina, geralmente atendidos
pela nova administração de Nestor Kirchner.
A Argentina voltou a acreditar que o Brasil pretendia reduzi-la a um mero papel
de fornecedor de produtos primários, reservando para si todas as cadeias de maior valor
agregado, o que de certo modo era confirmado em quase todas as áreas, devido ao
tremendo esforço de adaptação produtiva conduzida pela indústria brasileira no curso do
processo de liberalização comercial dos anos 90 e, depois, em virtude dos novos ganhos
de competitividade adquiridos a partir da desvalorização de 1999. As autoridades
argentinas, ademais, acusavam repetidamente o Brasil de competição desleal na atração
de investimentos, graças a incentivos fiscais que se somavam às economias de escala de
um mercado quatro vezes superior ao da Argentina. Esse efeito pode ter ocorrido de
forma concreta no setor automotivo, base essencial do comércio bilateral e poderoso
fator de impulso ao crescimento dados seus efeitos em cadeia. Mas, tampouco pode ser
descartada a razão da queda dos investimentos diretos estrangeiros na Argentina ao seu
dramático rompimento com a comunidade financeira internacional e o tratamento duro
que a administração Kirchner passou a conceder aos investidores já instalados no país.
O essencial dos desequilíbrios comerciais, contudo, se deu por incapacidade da
indústria argentina de se modernizar rapidamente, levando ao que foi chamado de
“invasão industrial brasileira”, evidente na linha branca – aparelhos eletrodomésticos –
e em vários outros insumos industriais. Em 2004 a Argentina começou a pressionar pela
189
adoção de um instrumento de salvaguardas automáticas, eufemisticamente caracterizado
como sendo um “mecanismo de adaptação competitiva”, que ela pretendia implementar
de maneira unilateral. Anteriormente, ela já tinha insistido numa espécie de “gatilho
cambial”, que deveria produzir os mesmos efeitos a partir da desvalorização do real, o
que foi contudo abandonado em face da persistente valorização da moeda brasileira em
face do dólar a partir de 2003.
O crescimento persistente do comércio exterior brasileiro – que praticamente
dobrou de 1995 a 2005 – também fez diminuir o peso e a importância do Mercosul no
intercâmbio global do principal país da América do Sul, ao mesmo tempo em que novas
oportunidades se abriam dentro e fora da região. Um acordo de associação do Peru ao
Mercosul, em 2003, ademais de novos acordos de liberalização comercial com os
demais sócios da CAN em 2004, ainda que pouco significativos em termos de aumento
do volume de comércio no curto prazo, podem contribuir para a expansão comercial
brasileira na América do Sul no futuro de médio prazo. Do lado argentino, o peso do
Brasil continua determinante, o que configura novos motivos de preocupação para os
industriais da nação platina.
No plano político, pode-se dizer que ambos os governos, brasileiro e argentino,
desconfiam, bem mais que seus predecessores, das virtudes do livre-comércio, o que os
levou a privilegiar, novamente, uma conformação integracionista baseada no velho
método dos protocolos setoriais e das negociações de complementaridade recíproca.
Finalmente, no início de 2006, ambos os países concluíam o tão ambicionado projeto
argentino de um mecanismo de salvaguardas setoriais, recebido com entusiasmo
naquele país e com imensos reclamos por parte da indústria brasileira. Ainda no plano
político, diversos outros projetos não comerciais foram impulsionados, com o apoio
declarado do governo brasileiro, como a criação de um fundo “corretor” de assimetrias
estruturais – a ser utilizado sobretudo pelos dois sócios menores, mas com maior
volume de financiamento por parte do Brasil – e a instituição de um “parlamento” do
Mercosul, considerado um aperfeiçoamento institucional. Não se voltou mais a falar de
uma “moeda comum”, mas permanece viva a demanda por mecanismos de coordenação
de políticas macroeconômicas, na prática tornados difíceis em virtude das diferenças
operacionais entre os tipos de políticas seguidas em cada um dos países.
Permanecem as demandas pelo estabelecimento de “cadeias produtivas setoriais
conjuntas”, iniciativas inviabilizadas na prática pela incapacidade dos governos de cada
um dos países de prestar assistência financeira ou empreender investimentos em base a
190
recursos públicos. Mas voltou-se a dar bastante ênfase, sobretudo sob impulso político
do governo brasileiro, aos projetos de integração física continental, objeto principal do
grande empreendimento iniciado pelo governo Lula de constituição da “Comunidade
Sul-Americana de Nações”, ela mesma herdeira da iniciativa anterior do governo de
FHC, conhecida como IIRSA (Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana).
Assim, ao mesmo tempo em que todos os esforços de “relançamento comercial”
do Mercosul foram sendo sucessivamente frustrados, cresceram as iniciativas políticas
de integração física continental, em especial no setor energético, projeto ainda mais
ampliado a partir do ingresso “político” da Venezuela no Mercosul, em dezembro de
2005. Com a diluição da “ameaça” da Alca – inclusive a partir de sua virtual paralisação
na terceira cúpula hemisférica, em Mar del Plata, no final de 2005, por atuação conjunta
da Argentina, do Brasil e da Venezuela –, os países sul-americanos tentam construir,
com estratégias e objetivos muito diversos, uma nova agenda integracionista para a
região, menos voltada para a liberalização comercial e mais orientada para a cooperação
política e o estabelecimento de ligações físicas.
Eles acreditam que, assim fazendo, conseguirão atrair os investimentos externos
necessários para viabilizar imensos projetos de infraestrutura nos terrenos da energia,
comunicações e transportes. Não é totalmente seguro de que o consigam, inclusive
porque o atrativo principal, em termos de comércio, investimentos e financiamento,
ainda continua sendo a economia dos EUA, único país que possui o mercado suscetível
de absorver os produtos ainda pouco sofisticados da maior parte desses países. Não
obstante a viabilidade de vários desses projetos, o principal fator limitativo parece
continuar sendo a volatilidade política na região, dramatizada ao extremo na região
andina nos últimos três ou quatro anos.
A despeito da dimensão relativamente modesta de sua economia, o Chile é o
país que tem confirmado sua vocação para a estabilidade e o crescimento, com redução
paulatina das desigualdades sociais – ainda relativamente elevadas – e uma disposição
continuada para a abertura comercial e sua incorporação plena nos circuitos da
globalização. Num momento em que vários dos líderes da região ainda insistem em
manter uma postura de recusa da interdependência global, preferindo fazer vibrantes
discursos anti-imperialistas em encontros do Fórum Social Mundial, o Chile confirma
sua agenda liberal e desponta com um perfil de membro da OCDE, se tal fosse possível
no horizonte previsível. Trata-se do único “tigre asiático” numa região que continua
ainda a apresentar, com algumas exceções, os traços típicos da América Latina desde
191
tempos recuados, feitos de pobreza, desigualdades sociais, instabilidade política e
especialização em produtos primários. A América do Sul continua a mover-se
lentamente no cenário internacional.
1549. “Problemas conjunturais e estruturais da integração na América do Sul: a
trajetória do Mercosul desde suas origens até 2006”, Brasília, 13 fevereiro 2006, 8
p. Artigo elaborado para o relatório do World Economic Forum, Latin America, a
realizar-se em São Paulo (5-6 abril 2006). Feita versão resumida em inglês para
publicação no relatório. Publicado em inglês, sob o título “Mercosur’s Identity
Crisis” in The Latin America Competitiveness Review: Paving the Way for
Regional Prosperity (Geneva: World Economic Forum, 2006, p. 63-65, link:
http://www.weforum.org/pdf/Latin_America/Review.pdf). Publicado, em
português, no boletim Meridiano 47 (Brasília, IBRI, n. 68, mar. 2006, ISSN 1518-
1219, p. 4-9; link: http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_68.pdf). Versão original, em português, disponível no site
pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1549mercosul15anos.pdf). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Trabalhos ns. 635, 651 e 667.
192
18. Acordos regionais e sistema multilateral de comércio: a América
Latina
1. Introdução: os acordos regionais ameaçam o sistema multilateral?
Uma questão recorrente nos debates sobre a evolução atual (e futura) do sistema
multilateral de comércio é a de saber se a profusão de acordos bilaterais de comércio, tal
como observada atualmente, representa uma ameaça ao multilateralismo. A resposta
mais direta, e mais simples, poderia ser traduzida num sonoro sim. Sim, a profusão, uma
verdadeira proliferação diriam alguns, de acordos bilaterais, ou minilaterais, de
comércio constitui, de fato, uma ameaça ao sistema multilateral de comércio.2 A
segunda observação que poderia ser feita, imediatamente, seria esta: não há nada a ser
feito de imediato, pois esses acordos continuarão a se disseminar no futuro previsível.
Observando-se a evolução do sistema multilateral de comércio, nos últimos
vinte anos pelo menos, a constatação que pode ser feita é essa mesma: esses acordos
seletivos e restritos – tanto no sentido geográfico como em seu conteúdo substantivo –
têm assumido um espaço cada vez mais importante na arquitetura institucional do
sistema multilateral de comércio, bem como na composição dos fluxos reais de bens e
serviços que são intercambiados diariamente num planeta hoje quase inteiramente
globalizado. Pode-se dizer “quase”, porque ainda permanecem algumas “terras
incógnitas” do ponto de vista da abrangência das trocas capitalistas e no que se refere às
regras que presidem a alguns tipos de intercâmbio. Mas, elas estão diminuindo cada vez
mais.
Com efeito, a evolução do sistema multilateral de comércio foi notável, desde a
entrada em vigor – provisória, relembre-se – do velho GATT-1947, negociado em um
dos antigos locais da Sociedade das Nações, em Genebra, até a atual rodada multilateral
de negociações, cujo título, o de uma capital de um minúsculo emirado árabe, traduz
bem esse sentimento de sucesso pela amplitude da obra realizada. Os founding fathers
do GATT, em primeiro lugar os americanos, podem, justificadamente, sentir-se
orgulhosos pelos bons resultados atingidos em pouco mais de meio século.
De algo perto da metade do comércio internacional no imediato pós-Segunda
Guerra, as regras multilaterais do renovado GATT-1994 cobrem, hoje, mais de 95% dos
2 De acordo com dados da OMC, existiriam, atualmente, mais de 160 acordos regionais em
vigor, havendo ainda outros 70 não notificados. Dos mais de duzentos acordos “minilaterais”,
nada menos do que três quartos foram assinados a partir de 1995.
193
intercâmbios, com tendência ao crescimento próximo da saturação. A Rússia deve
entrar no sistema multilateral da OMC nos próximos meses, senão semanas, com o que
o quadro multilateral estará virtualmente completo, pois mesmo um dos dois únicos
bastiões do socialismo, Cuba, dele faz parte (desde a origem, aliás, como confirmado
pela Carta de Havana de 1948, natimorta, mas prometedora). Dele ficarão ausentes
alguns pequenos países, se tanto, que representam menos de dois por cento das trocas
globais, mas o sistema é hoje praticamente mundial, senão universal.
O sistema multilateral de comércio pode, portanto, ser considerado um tremendo
sucesso, provavelmente mais do que a própria ONU ou o tão vilipendiado FMI, seus
mais próximos concorrentes em termos de importância e de abrangência política e
geográfica. Como essas duas entidades, o sistema hoje presidido pela OMC pode,
talvez, ser acusado de ineficiência relativa, já que ele não consegue eliminar as ameaças
potenciais à sua arquitetura institucional provavelmente imperfeita, mas insubstituível,
no gênero, como tampouco consegue eliminar os muitos focos de instabilidade
sistêmica, de assimetrias estruturais, de desigualdades históricas, remanescentes ou
criadas ao longo desse último meio século.
Sua responsabilidade é basicamente econômica, ou melhor, simplesmente
comercial, não cobrindo aspectos da paz e da segurança internacionais, como a ONU,
ou o mundo das finanças mundiais, como os dois irmãos mais velhos de Bretton Woods.
O comércio sempre foi fonte de riqueza, de prosperidade, de bem-estar, de transferência
de tecnologia, de avanços sociais, enfim. O comércio é, sobretudo, um propagador de
causas avançadas, de liberdade de pensamento, como confirmado nesta frase de um
grande historiador econômico, David Landes: “...se os ganhos derivados do comércio de
mercadorias são substanciais, eles são pequenos quando comparados com o intercâmbio
de idéias”.3
2. O sistema multilateral de comércio: um sucesso aparente
O mundo é, por certo, mais próspero, hoje, do que era em meados do século XX.
Ele é também, em seu conjunto, bem mais industrializado, comparativamente à primeira
metade do século XX, quando as zonas industriais estavam quase todas restritas ao
norte desenvolvido e eram desigualmente e esparsamente espalhadas por alguns
“arquipélagos” no hemisfério sul. Desse ponto de vista, ele aparece, portanto, como
3 Cf. David M. Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p.
149.
194
mais homogêneo tecnologicamente, mas ele também parece ser mais desigual na
repartição dos benefícios dessa industrialização “tardia”.
Alguns economistas arriscam dizer que o mundo atual é menos convergente, do
ponto de vista das tendências de desenvolvimento e das oportunidades de bem-estar, do
que ele foi durante o ativo esforço desenvolvimentista do imediato pós-guerra, quando
estiveram em vigor políticas macroeconômicas e setoriais bem mais intervencionistas
do que na atual fase de globalização. Os antiglobalizadores não hesitam em atribuir à
integração dos mercados as tendências – não provadas – à concentração de renda e ao
crescimento das desigualdades entre os países e dentro dos países. As origens dos
processos paralelos e contraditórios de convergência e de divergência na economia
mundial – e, portanto, entre as economias nacionais, se esse conceito ainda for
válido - não foram ainda determinadas com precisão pelos economistas e historiadores.
Há certa hesitação quanto às responsabilidades relativas do progresso tecnológico de
base interna, por um lado, e da disseminação, por outro lado, das inovações industriais,
de modo geral, a partir, justamente, do comércio internacional.
A construção normativa do sistema multilateral de comércio registrou, de certo
modo, uma evolução paradoxal. De um lado, houve o reforço dos princípios tradicionais
de nação-mais favorecida, de tratamento nacional, de reciprocidade, de transparência e
de igualdade de direitos e de obrigações, este último temperado parcialmente pelo
tratamento diferencial e mais favorável para as partes contratantes menos
desenvolvidas. De outro, ocorreu o aprofundamento e a disseminação dos esquemas
minilateralistas e dos arranjos geograficamente restritos, ofendendo a primeira dessas
cláusulas, a de NMF.
Parte da convergência observada entre os mais ativos participantes do sistema
econômico mundial – na renda, nos modelos de política econômica, nos mecanismos de
atuação do Estado - pode ser atribuída à homogeneização progressiva e à coordenação
tentativa, mas real, das políticas macroeconômicas nacionais. Esse modelo poderia ser
catalogado como sendo “OECD-like”, sendo também disseminado em foros como os do
G-7, das instituições de Bretton Woods, no vilipendiado “Consenso de Washington”, ou
em encontros do World Economic Forum, em Davos. Quanto dessa prosperidade é
devido à existência e à ampliação progressiva do tradicional sistema multilateral de
comércio pode ser atestado pelos níveis incomparavelmente mais altos de bem-estar
registrados nos países ativamente participantes do sistema do que naqueles que se
mantiveram à margem de suas regras e princípios. Quanto das iniqüidades e das
195
desigualdades persistentes na distribuição de renda e riqueza em escala mundial pode
ser atribuído às próprias regras do sistema, como gostam de apregoar os
antiglobalizadores, ainda é matéria sujeita a debate entre os especialistas. Mesmo os
melhores economistas ainda divergem a esse respeito, mas as evidências empíricas
acumuladas nessa área militam em favor das tendências essencialmente integradoras da
globalização, voltadas, portanto, para a homogeneização, a largo prazo, dos sistemas
econômicos nacionais.4
O que é certo – e poucos disputarão as evidências – é que o comércio traz
consigo prosperidade, e quanto mais comércio ocorrer, as possibilidades de bem-estar
são ainda melhores e maiores. Isso pode ser matematicamente aferido mediante uma
simples tabela comparativa que coloque em contraste, lado a lado, o PIB per capita de
países selecionados e seus respectivos coeficientes de abertura externa, isto é, a
proporção do comércio exterior na formação do produto.5 Com algumas poucas
exceções, explicáveis pela importância excepcional do mercado interno na composição
do produto bruto, há uma correspondência imediata entre renda per capita e abertura
comercial externa (para não mencionar a abertura aos investimentos e ao intercâmbio de
idéias).
Não deveria, normalmente, ocorrer mais qualquer tipo de disputa em torno
dessas questões, pelo menos não desde que Adam Smith golpeou decisivamente os
bastiões intelectuais do mercantilismo e do protecionismo comercial, ou seja, quase 230
anos atrás. O mercantilismo, ou seja, a doutrina que visava a encorajar a exportação, a
desestimular a importação e a transacionar em moeda forte –isso se fazia, antigamente,
pela acumulação de ouro e de metais preciosos – encarava o comércio exterior como um
instrumento de poder – em prejuízo das demais nações – e em benefício dos segmentos
4 Remeto ao trabalho de Xavier Sala-i-Martin, “The disturbing ‘rise’ of global income
inequality”, National Bureau of Economic Research, Working Paper w8904, abril de 2002,
disponível no link: http://www.nber.org/papers/w8904 (acesso em 11.02.04), e ao livro de Surjit
Bhalla, Imagine There’s No Country: Poverty, Inequality and Growth in the Era of
Globalization. Washington: Institute for International Economics, 2002, ambos comentados em
meu artigo A globalização e o desenvolvimento: vantagens e desvantagens de um processo
indomável”, in Roberto Di Sena Júnior e Mônica Teresa Costa Cherem (orgs.), Comércio
Internacional e Desenvolvimento: uma perspectiva brasileira. São Paulo: Saraiva, 2004,
disponível no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1205GlobalizDesenv.pdf.
5 Efetuei uma análise desse tipo no artigo “O Brasil como sócio menor da globalização:
insuficiente interdependência econômica e pequena participação comercial”, Revista de
Economia e de Relações Internacionais, vol. 1, nº 2, janeiro-junho 2003, p. 5-17; link:
http://www.faap-mba.br/revista_faap/rel_internacionais/socio.htm.
196
ligados à exportação, aliás, o único setor que liberava recursos reais, sob a forma de
impostos, para a autoridade política.
3. Protecionismo na prática: industrialização à la List
O mercantilismo já se foi, mas ele deixou vários órfãos inconsoláveis e algumas
viúvas não convencidas. A despeito das lições de Smith e de David Ricardo, muitos
ainda apelam para doutrinas protecionistas e mercantilistas, seguindo no caso os
ensinamentos de Friedrich List, que publicou sua obra principal, O Sistema Nacional de
Economia Política, em meados do século XIX. Para testemunhar sobre a permanência
das idéias de List e sua teoria a respeito da proteção da indústria infante basta referir-se
ao sucesso intelectual, em pleno século XXI, do livro de Ha-Joon Chang, Chutando a
Escada,6 que reproduz, aliás, em seu título, uma frase do citado economista alemão.
List era, no plano teórico, um defensor moderado do protecionismo comercial,
que ele via como transitório, parcial e estritamente limitado às necessidades de
industrialização de um país atrasado como a Alemanha do início do século XIX. O
jovem Marx, o mesmo do Manifesto Comunista, que nada mais constitui senão um hino
em louvor da globalização, era um defensor pragmático do livre-comércio, que
considerava uma poderosa alavanca para a disseminação do modo capitalista de
produção nos reinos bárbaros do Oriente e no mundo todo, o que poderia apressar o
advento do socialismo.
Desde meados do século XIX, quando List e Marx começaram a escrever, o
livre-comércio fez progressos inquestionáveis, mesmo se os seus fundamentos teóricos
e as suas bases empíricas continuaram a ser atacados continuamente, tanto por
economistas teóricos como por políticos pragmáticos. No primeiro grupo podemos
colocar o romeno da primeira metade do século XX Mihail Manoïlescu, cuja Teoria do
Protecionismo7 foi traduzida no Brasil nos anos 1930 e muito lida e apreciada pelos
industriais paulistas. Entre os políticos, são poucos os que proclamam sinceramente as
virtudes superiores da liberalização comercial unilateral, como poderia fazer qualquer
economista ricardiano.
6 Cf. Ha-Joon Chang, Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva
histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
7 Cf. Mihail Manoïlescu, Théorie du Protectionnisme et de l’Échange International. Paris: M.
Giard, 1929.
197
Os desenvolvimentos posteriores não foram muito gratificantes: depois da ativa
política industrial praticada pela Alemanha bismarckiana, a Grã-Bretanha voltou a
recorrer ao protecionismo assim que se sentiu ameaçada pela concorrência de potências
comerciais mais poderosas. A França e outras nações seguiram o mesmo caminho, para
desespero dos economistas liberais. O desastre se completou com a adoção da Tarifa
Smoot-Hawley dos EUA, em 1930, e a política seguida naquele país de acordos
bilaterais com tarifas seletivas e estritamente bilateralizadas.
Depois dos desastres comerciais, cambiais e monetários dos anos 1930, as bases
do sistema multilateral de comércio foram estabelecidas de modo mais ou menos sólido
no imediato pós-Segunda Guerra, graças à liderança demonstrada pelos Estados Unidos
na elaboração das regras que presidiram ao GATT durante mais de meio século e que
foram paulatinamente sendo “absorvidas” por outros acordos gerais ou parciais de
comércio – como o GATS, por exemplo –, até serem incorporadas no edifício da OMC
a partir de 1995. Na verdade, o sistema convive, desde sua origem, com a derrogação
minilateralista, consagrada no artigo 24 e consubstanciada no único modelo que existia
então de bloco comercial, o do Benelux.8 Ele foi acompanhado, a partir dos anos 1950,
pelo processo de integração europeu, e pelas diversas tentativas feitas nesse sentido na
América Latina, mas estas últimas nunca tiveram, como o exemplo mais robusto da
Europa, condições de afetar significativamente o sistema multilateral de comércio, que
começou a ser erodido parcialmente pelos próprios países desenvolvidos nos setores de
têxteis e agricultura desde muito cedo.
Depois de muitas rodadas liberalizantes de comércio, a maior parte dos países
desenvolvidos ostenta hoje uma baixa proteção tarifária, mas que é compensada com
um sistema restritivo e subvencionista na área agrícola (quotas de importação, altas
tarifas e sistema extensivo de apoio interno e subvenções às exportações) e algumas
restrições setoriais, como em tecidos e vestuário. O setor têxtil libertou-se, depois de
quase meio século, das práticas mercantilistas adotadas no regime Multifibras desde os
anos 1960, mas demandas por salvaguardas continuam a frequentar os círculos
8 Criado pelo Tratado de Londres de 1947 e implementado pelo Protocolo da Haia de 1947, a
união aduaneira reunindo a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo foi o modelo prático que
serviu de apoio para a redação do artigo 24 do GATT, explicando-se assim a impossibilidade
“constitucional” de se ter, na América Latina de final dos anos 1950, um simples acordo de
preferências tarifárias, como seria mais recomendável, tendo de se passar diretamente ao
esquema da zona de livre-comércio que criou, mediante o primeiro Tratado de Montevidéu
(1960), a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (depois substituída pela Aladi, em
1980, esta sim, um mera zona de preferências tarifárias).
198
decisórios em todos os países importadores de tecidos e roupas. O recurso abusivo a
sistemas antidumping e outras medidas de defesa comercial colocam obstáculos
continuados à liberalização ampliada do comércio, da mesma forma como a alegação
indevida de outras formas de concorrência desleal, como nos casos do custo da mão-de-
obra ou o respeito inadequado ao meio ambiente.
4. O minilateralismo entra em cena: regionalização e globalização na atualidade
O movimento “minilateralista”, iniciado em sua versão moderna a partir dos
progressos da integração europeia, em meados dos anos 1980, foi paradoxalmente
impulsionado pelas tendências globalizadoras da década seguinte, o que não deixa de
colocar novos desafios, tanto do ponto de vista teórico, em especial para os “liberais
institucionalistas”, como no plano das práticas econômicas, em função das supostas
virtudes “multilateralizantes” da globalização.9 Esse movimento pode dar-se, em parte,
como resultados dos núcleos duros de proteção setorial, em especial na área agrícola,
nos próprios países desenvolvidos, motivando a busca de aberturas seletivas com
preservação de áreas fechadas e impermeáveis à liberalização. Ele pode ser explicado,
também, como o produto tardio das novas facilidades criadas pela chamada “cláusula de
habilitação” da Rodada Tóquio (1979), bem como das tendências renitentes às políticas
de substituição de importações praticadas pelos países em desenvolvimento. O fato de
que as políticas nacionais tratando dos investimentos diretos estrangeiros não tenham
sido liberalizadas tanto quanto as políticas comerciais dos países participantes do
sistema multilateral de comércio pode também explicar algo desse movimento em favor
do minilateralismo. Não custa lembrar que os fluxos de investimentos diretos
adquiriram, ao lado do intercâmbio comercial, o papel de alavanca principal do
processo de globalização não-financeira.
Muitos analistas argumentam, entretanto, que o fator mais importante que
poderia explicar essas novas tendências do sistema comercial multilateral tem a ver com
o problema da “liderança”, isto é, do exemplo dado pelo “hegemon” (os EUA), ou pelos
“hegemons” (incluindo, portanto, a UE e o Japão), no estabelecimento de um novo
ambiente, favorável a esses arranjos restritos, em detrimento do sistema como um
9 Cf. Diane Tussie e Ngaire Woods, “Trade, Regionalism and the Threat to Multilateralism”,
Red Latinoamericana de Comércio (LATN), 2000, link: www.latn.org.ar/pdfs/tussie_woods.pdf
(acesso em 18.11.05).
199
todo.10 Nos EUA, em particular, os interesses econômicos refletidos no Congresso
evoluíram do “novo protecionismo” dos anos 1970, para o unilateralismo agressivo dos
anos 1980 e para o minilateralismo declarado da década seguinte, como revelado nas
iniciativas no plano hemisférico e mais além.11 O próprio crescimento do GATT, das
poucas dezenas de partes contratantes nos anos 1960, para uma centena e meia de
membros da OMC no período atual deve ter acarretado, por sua dinâmica de
diversificação dos interesses, uma pressão maior em favor dos arranjos geograficamente
restritos. O acesso a mercados é sempre mais fácil de ser negociado em bases restritas
do que no plano mais amplo do multilateralismo tradicional.
Na prática, apenas os grandes atores comerciais internacionais, em primeiro
lugar os EUA e a UE, têm condições de atuar em todos os planos possíveis das
interações comerciais, adotando, de forma alternada ou sucessiva, estratégias ditas
unilateralistas, bilateralistas, minilateralistas ou, enfim, multilaterais, segundo as
conveniências de cada momento12. Quando interesses comerciais de curto prazo
estiveram ameaçados nos anos 1980 (na área automobilística, com a ameaça japonesa,
por exemplo), esses países não hesitaram em recorrer a práticas mercantilistas, mesmo
as mais abusivas. O mesmo ocorreu, na década seguinte, na agricultura, com o uso
crescente de medidas de apoio interno e de subvenções às exportações em escala jamais
vista no comércio mundial. A liberalização competitiva só acontece de fato em acordos
bilaterais ou sub-regionais.
Atores de segundo plano, como o Brasil ou a Índia, preferem adotar abordagens
diferenciadas em política comercial, privilegiando uma ou outra estratégia segundo seus
recursos de poder e modos específicos de inserção econômica regional ou internacional.
Desde meados dos anos 1980, o Brasil tem demonstrado nítida opção pela abertura lenta
e gradual em escala regional, modulando o ritmo e a amplitude da liberalização
comercial em função da preferência pelo Mercosul e pela América do Sul. Outros países
da região, como México e Chile, têm impulsionado uma estratégia de liberalização mais
ampla, voltada para os mais diferentes parceiros comerciais. No caso do Chile, por
10 Cf. Tussie e Woods, op. cit., p. 15.
11 Cf. Jeffrey Frankel, Regional Trading Blocs in the World Economic System. Washington:
Institute for International Economics, 1998.
12 Para uma abordagem teórica dessas estratégias, ver Vinod K. Aggarwal, “The Dynamics of
Trade Liberalization”, Berkeley APEC Study Center, University of California at Berkeley (3
fevereiro 2005), link: http://ist-
socrates.berkeley.edu/~basc/pdf/articles/Dynamics%20of%20Trade%20Liberalization.pdf
(acesso em 18.11.05).
200
exemplo, parece evidente a preferência pelo multilateralismo unilateral, materializada
em uma política aberturista como opção comercial básica e uma estratégia, não limitada
à América Latina, tendente a negociar tantos acordos de livre-comércio quanto possível
com o maior número de parceiros, sem discriminação geográfica ou política.13
5. Minilateralismo regional: estratégias diferenciadas de liberalização comercial
A América Latina, precisamente, é uma das regiões de maior intensidade e
volume de acordos minilateralistas hoje registrados, contraídos tanto dentro, quanto fora
da região. De fato, desde a primeira conferência internacional americana de
Washington, em 1889 até a recente experiência (até aqui frustrada) da Alca, o
hemisfério como um todo tem sido recorrente nas tentativas de unificação comercial,
sem que tais esforços tenham sido materializados, até aqui, em esquemas suscetíveis de
enquadrar os fluxos existentes nas poucas regras básicas do que veio a ser conhecido
como “regionalismo aberto” (que permanece um conceito praticamente vazio). A noção
de regionalismo aberto implicaria a interpenetração dos vários arranjos bi- ou
plurilaterais feitos pelos países da região, na ausência de tendências excludentes ou
regras exclusivas. O que se tem observado, na prática, é o chamado “prato de
espaguete” de Jagdish Bhagwati (the spaghetti bowl problem)14, com diferentes
formatos de acordos preferenciais sendo servidos com molhos (regras de origem) de
diferentes sabores.
No caso que nos interessa mais de perto, o do Brasil e do Mercosul, a pergunta
recorrente é a de saber se esse esquema minilateralista tem servido para, como afirmado
no preâmbulo ao Tratado de Assunção, “lograr uma adequada inserção internacional
para os países membros” ou se, ao contrário, ele tem permitido mais desvio do que
criação de comércio. O argumento negativo foi oferecido mais de dez anos atrás por
Sebastian Edwards, em estudo que utilizou o exemplo da indústria automobilística para
confirmar os efeitos potencialmente distorcivos do comércio “induzido” no bloco sub-
13 Cf. Vinod K. Aggarwal e Ralph H. Espach, “Diverging Trade Strategies in Latin America: An
Analytical Framework”, Center for Latin American Studies, CLAS Working Papers, University
of California at Berkeley (paper 2, 2003), link:
http://repositories.cdlib.org/cgi/viewcontent.cgi?article=1010&context=clas (acesso em
18.11.2005).
14 Cf. Jagdish Bhagwati. “The Singapore and Chile Free Trade Agreement”, Depoimento no
comitê de Assuntos Financeiros da Câmara de Representantes do Congresso dos EUA (1º de
abril de 2003), link: http://www.columbia.edu/~jb38/testimony.pdf (acesso em 18.11.05).
201
regional.15 Na época, a dinâmica do crescimento geral de comércio, dentro e fora do
Mercosul, superava a tendência ao enclausuramento minilateralista, o que permitiu
rejeitar as alegações de Edwards, sob pretexto de que os efeitos criacionistas seriam
superiores aos desviantes. Todavia, os conflitos recorrentes em matéria de bens
industriais no comércio bilateral Brasil-Argentina, bem como a recondução continuada
do comércio administrado no setor automobilístico oferecem, justamente, a
comprovação dos problemas potenciais trazidos pelos acordos minilateralistas quando
baseados estritamente nos ganhos recíprocos de mercado, num relativo isolamento das
pressões competitivas globais.
Desde o surgimento desse debate, em meados dos anos 1990, o Mercosul não
teve sucesso no estabelecimento do prometido mercado comum e sequer chegou a
completar a sua união aduaneira, havendo ainda diversas lacunas em sua zona de livre-
comércio. As crises econômico-financeiras respectivas nos seus dois principais
membros demonstram, igualmente, que Brasil e Argentina estão dispostos a utilizar o
Mercosul para ganhos mercantilistas de comércio ou enquanto plataforma comercial
para o exterior, desde que ele não obrigue cada um deles a empreender reformas muito
amplas em suas políticas industrial, tributária e mesmo comercial. Dada a menor
dependência do Brasil do comércio intrarregional e a maior competitividade de sua
indústria, relativamente à modesta capacitação e modernização produtiva da Argentina,
o protecionismo moderado do Brasil oferece um menor potencial de risco do ponto de
vista das regras multilaterais de comércio, o que não parece ser o caso, atualmente, da
Argentina, engajada num sério esforço de reindustrialização.
Ambos os países, no entanto, convergem, na presente conjuntura, para uma
recusa decidida da proposta de uma Alca, segundo o modelo apresentado pelos EUA, ao
mesmo tempo em que se empenham em multiplicar os arranjos preferenciais de
comércio contraídos na própria região, ao abrigo da Aladi. Paradoxalmente, essa
estratégia tem sido adotada, com maior sucesso relativo, pelos EUA que, desde o início
da terceira fase da Alca – depois da cúpula de Québec, em abril de 2001 -, também
seguiram a estratégia minilateralista, fracionando suas ofertas para a futura (e agora
hipotética) Alca segundo a natureza dos parceiros. Ao Mercosul ficaram reservadas as
ofertas mais delongadas e, previsivelmente, as maiores exceções (setorialmente
concentradas nas áreas de maior competitividade sistêmica da Argentina e do Brasil).
15 Cf. Sebastian Edwards, “Latin American Economic Integration: A New Perspective on an Old
Dream”, The World Economy, 16(3), Maio 1993, p. 317-338.
202
Paralelamente, os EUA passaram a negociar bilateralmente (plurilateralmente no
caso dos países andinos, com a exceção da Venezuela de Chávez) acordos comerciais
que eles chamam de “liberalização competitiva”, dizendo que sua propagação levará, no
futuro, à liberalização multilateral. Coincidentemente, nesses acordos bilaterais – com o
Chile, com o Marrocos, com a Jordânia e Cingapura, ademais da Cafta, ou seja países
da América Central mais República Dominicana –, os EUA logram introduzir a
panóplia de temas paralelos que eles têm dificuldades em impulsionar no plano regional
e no quadro multilateral: propriedade intelectual, liberalização dos movimentos de
capitais, regras laborais e ambientais. Como os pequenos países não têm poder de
barganha, essas conquistas que podem ser classificadas propriamente de “imperiais”
cumprem seu papel “diversionista” em vários sentidos: elas repercutem bem,
politicamente, no Congresso e fazem avançar a causa americana no âmbito das
negociações comerciais mais amplas.
O minilateralismo brasileiro, a exemplo do americano e do europeu, também é
politicamente motivado, mas, além de defensivo, ele tem conotações geopolíticas ainda
mais marcadas do que as dos EUA e da UE na presente conjuntura. De fato, a estratégia
minilateralista seguida pelos EUA parece ser bem mais preventiva – visando garantir
antecipadamente ganhos potenciais que depois serão incorporados em esquemas
multilaterais – do que defensiva, seguida pelo Brasil e seus parceiros do Mercosul como
uma espécie de compensação, ou de seguro, pelas dificuldades, reais ou percebidas, em
concluir acordos comerciais ditos de terceira geração.16
Diversamente dos acordos que tanto o México como o Chile fizeram com seus
principais parceiros – que, exatamente como no nosso caso, são os EUA e a UE -, o
Brasil persegue metodicamente, tanto por vias próprias como através do Mercosul, uma
política de atração de países em desenvolvimento, na América do Sul, na África, no
Oriente Médio e na Ásia. Esses objetivos políticos, parte da estratégia de
relacionamento “Sul-Sul”, têm adquirido preeminência especial em face dos
requerimentos estritamente comerciais que acordos desse tipo deveriam ostentar,
podendo inclusive afetar de modo negativo a estratégia microeconômica das empresas
exportadoras, forçadas a buscarem elas mesmas os mercados e os parceiros que o
governo não lhes tem sabido garantir.
16 Cf. Jennifer Pédussel Wu, “Trade Agreements as Self-Protection”, Review of International
Economics, vol. 13, nr. 3, disponível em: www.zei.de/download/zei_wp/B02-29B.pdf (acesso
em 18.10.05).
203
6. Conclusões: o futuro do minilateralismo
A geopolítica político-comercial do Mercosul, tal como impulsionada pelo
Brasil, tem sido complementada pelo projeto de integração sul-americana,
consubstanciada na Comunidade Sul-Americana de Nações, outra estratégia
minilateralista que deveria, em princípio, fechar o arcabouço de acordos comerciais
desse tipo na região. As preferências até aqui trocadas entre os países membros da CAN
e do Mercosul não têm acrescentado ganhos substanciais em relação aos tradicionais
acordos aladianos – universo ao qual eles pertencem, diga-se de passagem -,
contribuindo ainda mais para a conformação de um cenário tipicamente “prato de
espaguete”, tão temido por partidários do livre-comércio como Jagdish Bhagwati.
O ingresso da Venezuela no Mercosul, no final de 2005, pode contribuir para
agregar outros elementos de “anomia comercial” ao quadro de relativo abandono dos
objetivos iniciais, essencialmente comerciais, do bloco do Cone Sul. De resto, a ênfase
política na aproximação, mais do que na liberalização econômica, bem como a
aceitação de regras específicas e prazos mais delongados, com um forte viés de
introversão comercial, parecem atualmente caracterizar esses projetos ou esquemas
voltados para a própria região, contradizendo o espírito mais universalista que animava
antigamente o conceito de “regionalismo aberto”.
Esses exemplos americanos, ao lado da estratégia assistencialista desenvolvida
pela UE em direção da clientela periférica dos países de menor desenvolvimento
relativo – os PMDRs, do chamado grupo ACP -, configuram, portanto, a confirmação
cabal de que o multilateralismo atual tem de conviver com um regionalismo disforme,
oportunista e basicamente disfuncional em relação aos princípios do sistema econômico
multilateral definido no imediato pós-Segunda Guerra.
O sistema econômico multilateral terá, provavelmente, de enfrentar uma longa
travessia do deserto antes de reencontrar terreno mais favorável para seu florescimento
e expansão.
204
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29B.pdf (acesso em 18.10.05).
205
1499. “Acordos minilaterais de integração e de liberalização do comércio: Uma ameaça
potencial ao sistema multilateral de comércio”, Brasília, 24 nov. 2005, 12 p. Ensaio
sobre a proliferação de acordos regionais e seu impacto no sistema regido pela OMC,
para livro organizado por Sidney Guerra (org.), Globalização: desafios e implicações
para o direito internacional contemporâneo (Ijuí: Ed. Unijuí, 2006; ISBN: 85-7429-
522-1, 458 p.), p. 187-203. Serviu de base para palestra em seminário sobre negociações
comerciais da AmCham-SP, em 28/11/2005 (Disponível no site pessoal:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/1499Minilateralismo.pdf). Publicado sob o título
“Acordos minilaterais de integração e de liberalização do comércio: o caso da América
Latina” no Cebri Artigos (Rio de Janeiro, v. 3, a. 1, jul./set. 2006, 16 p.). Republicado
sob o título de “Os acordos regionais e o sistema multilateral de comércio: o caso da
América Latina” em Meridiano 47 (n. 75, outubro 2006, p. 6-14; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_75.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados
n. 706.
206
19. Contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da
integração
1. O contexto geopolítico da América do Sul na visão brasileira
O continente sul-americano constitui a segunda grande prioridade da política
externa brasileira, sendo a primeira, obviamente, o Mercosul. O direcionamento do
Brasil para a área geográfico-econômica da América do Sul e seu desdobramento na
dimensão político-institucional da Comunidade Sul-Americana de Nações, conformada
em dezembro de 2004, constituem, na verdade, o prolongamento econômico natural e a
complementação lógica dos esforços integracionistas empreendidos pelo Brasil no nível
sub-regional do Cone Sul desde o início da década passada.
A América do Sul é o espaço natural de atuação do Brasil, enquanto economia
industrial mais avançada da região e enquanto país geograficamente situado em duas
das três principais vertentes do continente, a amazônica e a platina (cuja junção se faz
na região do Pantanal) e vizinho direto, igualmente, de quase todos os países andinos, à
exceção do Chile e do Equador. A economia brasileira constitui, pela dimensão do seu
mercado, pela ampla base agrícola já integrada aos mercados mundiais e pelo avanço de
seu parque industrial, bastante competitivo em nível regional, a base de um amplo
espaço econômico integrado no continente.
Independentemente da natural posição de liderança regional que exerce por seus
atributos físicos e econômicos, tema de extrema sensibilidade nesse âmbito, interessa ao
Brasil consolidar esse espaço econômico e político como uma área de normalidade
democrática, inserida na economia internacional e dotada dos requisitos de progresso
tecnológico e de desenvolvimento social que até agora limitaram a presença e a
afirmação internacional da região, hoje caracterizada por agudas desigualdades sociais.
As principais questões estratégicas que enquadram o itinerário do continente sul-
americano, na visão geopolítica brasileira, são, respectivamente, os de sua consolidação
enquanto espaço político plenamente democrático, enquanto evolução para economias
desenvolvidas e integradas à interdependência global e enquanto sistemas sociais
caracterizados por graus os mais reduzidos possíveis de desigualdades sociais, marcas
ainda características de seu desenvolvimento socioeconômico nos últimos séculos, aliás,
desde a formação dos Estados nacionais. A América do Sul é uma região excêntrica aos
grandes eixos de poder e encontra-se, felizmente, ao abrigo de possíveis cenários de
207
conflito, mas ela possui potenciais – naturais, demográficos e econômicos – para
inserir-se de modo mais ativo nas grandes correntes de intercâmbios dos mais diversos
tipos que caracterizam o mundo contemporâneo.
A América do Sul enfrenta, desde a descoberta, obstáculos físicos de grande
amplitude à sua plena integração, o que acarretou, justamente, um baixo grau de
interdependência entre as economias nacionais, ainda hoje marcadas por grande
extroversão econômica (fluxos financeiros e intercâmbios comerciais prioritariamente
vindos ou dirigidos à América do Norte e à Europa, e, crescentemente, à Ásia-Pacífico).
Trata-se igualmente de região marcada por grande instabilidade política e social e pela
volatilidade e baixa sustentabilidade de seu processo de crescimento, derivados do
quadro de desigualdades agudas que marcam o seu desenvolvimento.
O grande desafio da região, em relação ao qual o Brasil possui uma
responsabilidade especial, é justamente a superação dos obstáculos físicos, econômicos,
tecnológicos, políticos e sociais à plena inserção da região sul-americana na
interdependência global, de maneira a colocá-la no mesmo compasso de outras regiões,
notadamente a Ásia, que têm desempenhado papel de destaque no novo ordenamento
global pós-Guerra Fria. Uma das alavancas definidas como essenciais a esse processo
de inserção competitiva da região no mundo é o processo de integração econômico-
comercial, que tem apresentado progressos no período recente.
Esse processo de integração em nível sul-americano não deveria, em princípio,
contrapor-se a outros projetos de conformação de um espaço comercial integrado no
nível hemisférico, contando inclusive com a participação dos Estados Unidos (embora
as opiniões a este respeito, não apenas no Brasil, sejam fortemente divergentes). Mas,
para o Brasil, consolidar uma identidade própria numa região da qual ele é naturalmente
uma espécie de pivô geopolítico constitui um empreendimento de grande significado
diplomático, em sua dimensão própria, e dotado de relativo impacto internacional. Esse
empreendimento possui evidentes implicações econômico-financeiras, político-
diplomáticas, culturais e mesmo estratégico-militares, para as quais o Brasil tem de
preparar-se adequadamente nos próximos anos.
2. A importância estratégica da América do Sul
A América do Sul apresenta-se como uma imponente massa física de âmbito
continental, fragmentada, dispersa e mesmo dividida em sub-regiões dotadas de
características ecológicas muito diversas, desde a independência politicamente dividida
208
em nações independentes e autônomas entre si, inclusive do ponto de vista de suas
principais relações econômicas e políticas intra e extra-região, mas que guardam, na
diversidade dos meios físicos e humanos que as caracterizam, certa identidade cultural,
religiosa e social. Esforços de integração existiram desde a época da liberação do jugo
espanhol, consubstanciados, por exemplo, no projeto bolivariano de uma federação de
países dotados de instituições similares e animados do mesmo desejo de assegurar a
independência em face das ameaças externas de dominação econômica ou política.
Essas tentativas sempre sucumbiram às dificuldades naturais existentes ou à
trajetória errática da vida política em cada um dos países, marcados de maneira
recorrente pela instabilidade institucional derivada de regimes de tipo caudilhista ou
incapazes de incorporar social e politicamente grandes massas de cidadãos desprovidos
em sua maior parte de educação política e de condições adequadas de subsistência. As
desigualdades sociais, a baixa institucionalidade política e a instabilidade econômica
animaram golpes militares e mudanças bruscas de regime, até um período ainda recente
da história do continente. O processo de redemocratização iniciado em meados dos anos
1980 parece ter se consolidado definitivamente nos países do Cone Sul, mas ainda
enfrenta algumas dificuldades na zona andina, agitada de forma ocasional por
experimentos populistas e crises econômicas.
Trata-se, em todo caso, de região rica em recursos naturais, sobretudo
energéticos (gás, petróleo e outros minerais), amplos espaços agricultáveis e de criação
(sobretudo nos pampas sulinos e no cerrado central, este predominantemente brasileiro)
e com vastíssimos recursos de biodiversidade, fonte potencial de obtenções úteis às
agriculturas e às indústrias da região. A capacitação em recursos humanos e sobretudo
os níveis de renda são, ainda, notoriamente insuficientes para mobilizar de maneira
adequada todo esse vasto potencial natural e as estruturas produtivas, inclusive
industriais, construídas ao longo das últimas décadas de industrialização. Este último
processo se deu pela via da substituição de importações o que, se permitiu instalar uma
base relativamente pujante para aproveitamento pelo mercado interno, também isolou a
região da competição internacional, diminuindo sua participação nos grandes fluxos de
comércio mundial.
Os esforços de integração física e de liberalização comercial recíproca têm por
objetivo, justamente, romper o isolamento relativo em que viviam os países da região
em relação aos vizinhos e aprofundar os laços de interdependência recíproca, base de
sua afirmação autônoma no cenário internacional. Desde que o Brasil propôs uma área
209
de livre-comércio sul-americana (Alcsa) no início dos anos 1990, alguns progressos
foram feitos, notadamente em termos de associação de países ao Mercosul (Chile e
Bolívia em 1996, Peru em 2003) e de acordos entre grupos de países (Mercosul-CAN
em 2004). Novas iniciativas em direção dos países do Caribe devem completar a rede de
acordos comerciais de liberalização dos intercâmbios e de ampliação da cooperação
regional, como instituído na Comunidade Sul-Americana de Nações (dezembro de
2004).
Em que pese a forte dose de retórica integracionista em praticamente todos os
países da região e os escassos resultados efetivos, o comércio intrarregional cresceu
significativamente ao abrigo dos acordos aladianos durante o final dos anos 1980 e
início dos 90. Para isso também contribuiu o arcabouço de blocos sub-regionais, como o
próprio Mercosul, a CAN e outros esquemas plurilaterais ou bilaterais mais flexíveis,
muitos dos quais protagonizados pelo Chile. Em consequência, não só o volume global,
como a parte do comércio regional no conjunto dos intercâmbios externos tendeu a
crescer, a despeito mesmo de um certo decréscimo durante a fase mais aguda das crises
financeiras, que também atingiram alguns países da região. Como sabido, grande parte
dos fluxos comerciais são concentrados no Cone Sul, com destaque para o Brasil e a
Argentina e, no que diz respeito ao comércio bilateral, nota-se a grande dependência dos
três vizinhos menores dos mercados desses dois grandes parceiros.
As instituições de fomento, dentre as quais o Fonplata que financia o Cone Sul,
não são muito eficientes, com exceção da CAF, pertencente à CAN, mas da qual o
Brasil também é membro e que tem financiado algumas obras de infraestrutura com
países vizinhos (como a Venezuela, por exemplo). Para apoiar sua política de integração
sul-americana, o Brasil sentiu-se motivado a utilizar mais intensamente a capacidade
financeira do BNDES, mas restrições de caráter estatutário tem obstaculizado um
engajamento mais intenso desse banco brasileiro de desenvolvimento nos projetos sul-
americanos de integração física ou de infraestrutura nacional. A Iniciativa de Integração
Regional Sul-Americana (IIRSA), criada como resultado da primeira reunião de
presidentes da América do Sul, iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso em
2000, sofreu de descontinuidade a partir de 2003, mas seu papel deve, em princípio ser
recuperado pela nova Comunidade Sul-Americana de Nações, impulsionada de modo
decisivo pelo governo do presidente Lula.
O Mercosul e, dentro dele, o Brasil constituem os eixos fundamentais da
estratégia de constituição de um espaço econômico integrado e democrático na região
210
sul-americana. Tendo em vista, porém, tanto as debilidades relativas do bloco do Cone
Sul, como as limitações financeiras do próprio Brasil, esses esforços de integração têm
avançado em ritmo mais lento do que o desejável. Seria preciso, nos próximos anos,
reforçar os mecanismos de financiamento para grandes projetos de desenvolvimento da
infra-estrutura suscetíveis de consolidar os vínculos de comércio e investimentos que já
estão sendo feitos a partir da própria região.
Não obstante, a maior parte dos países sul-americanos manifesta atração pelo
mercado e pelos investimentos dos Estados Unidos, desejos que vem sendo atendidos,
depois da paralização das negociações da Alca, parcialmente de modo bilateral, por
acordos negociados diretamente com o grande país do Norte, que conseguiu estabelecer,
assim, sua própria rede de acordos na região (notadamente com os países centro-
americanos e caribenhos e, na América do Sul, com Chile, Colômbia e Peru). Outros
aspectos dessa presença são dados pela presença militar dos Estados Unidos em países
andinos (Equador e Colômbia, ademais de esquemas especiais de cooperação e
assistência com o Peru e a Bolívia), fundamentada no combate ao narcotráfico e na
contenção de grupos guerrilheiros ligados igualmente ao comércio ilegal e à lavagem de
dinheiro.
3. Conjuntura atual e retrospectiva da evolução da integração sul-americana
Não existia, a propriamente dizer, um bloco sul-americano no alvorecer do
século XXI, mas ele encontra-se em formação preliminar, graças em grande medida aos
esforços da diplomacia brasileira. Depois de anos, ou mesmo décadas, de adesão ao
conceito politicamente vago, mas politicamente aceito, de “América Latina”, noção
essencialmente cultural antes de converter-se em referência obrigatória na agenda
multilateral, a diplomacia brasileira começou a trabalhar, desde o início dos anos 90,
com o conceito de América do Sul, cuja realidade antecede de fato à sua formalização
prática.
Com efeito, datam do Império, os primeiros esforços de intensificação das
relações do Brasil com os países vizinhos, projetos dificultados pelas dificuldades do
relevo natural e pela baixa densidade dos intercâmbios locais, à exceção da região
platina, onde os vínculos sempre foram mais estreitos, legais e ilegais. A penetração dos
territórios brasileiros do interior, aliás, era necessariamente feita pelas vias aquáticas, a
partir dos dois grandes rios que conectam, a partir do Atlântico, as regiões do hinterland
brasileiro, ao sul pelo Prata, ao norte pelo Amazonas, com a diferença do controle
211
fundamental exercido pelo próprio Brasil neste segundo caso e da dependência, no
primeiro, da existência de poderes amigos nas duas margens. Daí as diferenças de
posicionamento no que tange à navegabilidade dos rios internacionais contíguos ou
sucessivos que a diplomacia imperial entreteve numa fase de fronteiras ainda incertas.
Toda a primeira diplomacia brasileira, no que tange ao relacionamento com os
vizinhos, foi assim ocupada pela fixação e a demarcação das fronteiras, deixadas em
grande medida imprecisas depois dos tratados de Madri, de Santo Ildefonso e de El
Pardo. Essa obra culminou, no essencial, na gestão do Barão do Rio Branco como
chanceler, ao início do século XX. Desde então, o Brasil consolidou seu sistema de
segurança regional e de cooperação política com os vizinhos sul-americanos mediante
dois grandes tratados-marco que definem a cooperação regional com as duas grandes
regiões do continente: o tratado da Bacia do Prata (1974) e o tratado de Cooperação
Amazônica (1978).
Essa obra de “pacificação” e de consolidação de fronteiras, basicamente política
em suas motivações e inclinações, vem sendo complementada pelos acordos de
integração regional e de cooperação que foram em grande medida impulsionados pelo
Brasil desde os anos 1950: primeiro tratado de Montevidéu (1960), criando a
Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (Alalc), segundo tratado de
Montevidéu (1980), substituindo a Alalc pela a Associação Latino-Americana de
Integração (Aladi) e, a partir de meados dessa década, o itinerário político-econômico
da integração bilateral Brasil-Argentina, que desdobrou-se no Mercosul, no início dos
anos 1990, e novamente num projeto sul-americano, desde essa fase impulsionado pelos
acordos entre os países do Mercosul e os da Comunidade Andina de Nações (CAN), em
2003 e 2004. Este último processo, por sua vez, culminou na constituição, em dezembro
de 2004, da Comunidade Sul-Americana de Nações (uma declaração presidencial que se
fez acompanhar de um série de acordos aladianos), cujas características organizacionais
e mandato preciso, em grande medida voltados para a consecução dos processos de
integração física e comercial, ainda devem receber configuração institucional mais
precisa nos próximos anos.
Problemas fronteiriços residuais ainda existem em pontos localizados do
continente sul-americano, que de outra forma não mais apresenta potencial significativo
de guerras inter-estatais ou de conflitos internos, à exceção da longa guerra civil na
Colômbia. Este conflito passou por diversas fases, desde os antigos intentos
guerrilheiros de inspiração socialista até sua identificação com o próprio narcotráfico e
212
o crime organizado no período mais recente. Ele se insere, contudo, numa longa
tradição de problemas políticos e de tensões sociais, que assistiu, nos últimos anos, ao
recrudescimento das tensões institucionais em vários países, com demissão forçada de
presidentes, fuga de outros e casos de impeachments.
De forma geral, a região é marcada por problemas sociais persistentes, a
começar pelos baixos níveis de educação formal e por agudas desigualdades
distributivas, que demorarão vários anos para serem superados. A corrupção e o mau
funcionamento da justiça são fenômenos endêmicos na maior parte dos países da região,
que, à exceção do Chile, também vêm apresentando baixo dinamismo econômico e,
consequentemente, baixas taxas de crescimento per capita. O relativo descrédito do
sistema político tem, por vezes, alcançado o próprio regime democrático, cuja
preservação mereceu cláusula democrática aprovada especialmente pela OEA,
confirmando temores remanescentes em relação à sua solidez.
Desequilíbrios fiscais, déficits orçamentários e recurso ao endividamento
excessivo ainda atormentam vários países da região, que tem apresentado indicadores
bastante inferiores aos da maior parte dos países asiáticos em termos de poupança
doméstica, competitividade externa e atratividade aos investimentos estrangeiros
diretos. A participação nos fluxos mais dinâmicos de comércio internacional ainda é
irrisória para a maior parte dos países, a despeito mesmo da boa base industrial
consolidada em vários deles, como o Brasil – que tem uma pujante indústria aeronáutica
– e o México, este mais vinculado aos ciclos e perfil do comércio exterior dos EUA.
4. Uma visão prospectiva sobre a América do Sul
Uma visão prospectiva da evolução do continente sul-americano não pode tomar
como garantida a constituição de um bloco político-econômico restrito à região, a
despeito mesmo do forte engajamento político, diplomático e econômico do Brasil
nesse empreendimento. São muitas as variáveis que deverão influenciar essa evolução, a
começar por fatores externos, ou internacionais, representados pelas políticas de
abertura a novos acordos comerciais por parte da grande potência hemisférica (e
mundial). A possibilidade de acesso a seu próprio mercado, bem como a promessa de
investimentos diretos nos países recipiendários, tornam os EUA especialmente atrativos
para quase todos os países da América do Sul. Outros fatores internos, como a baixa
dinâmica de crescimento econômico ou a alternância de forças políticas de inclinação
oposta podem gerar descontinuidades num projeto voltado exclusivamente para a
213
América do Sul, cuja intensidade de comércio recíproco talvez não seja o suficiente
para alavancar um bloco relativamente homogêneo num continente ainda caracterizado
pelo distanciamento físico, por desigualdades sociais e por assimetrias estruturais.
Dentre os eventos ou processos que podem influenciar o destino de qualquer
projeto “aliancista” na América do Sul, os seguintes poderiam ser ressaltados:
1) Diferenciais de crescimento entre os vários países da região, o que pode aumentar a
distância entre eles e as dificuldades de qualquer projeto integracionista uniforme,
cujos membros apresentem grandes assimetrias entre si, como já demonstrado pela
experiência dos países do Cone Sul. Nesse particular, o Brasil, por ter a mais forte
economia industrial da região e uma capacidade ainda limitada de prestar
cooperação ou ajuda financeira, pode ressentir-se do baixo interesse dos vizinhos
em aprofundar esquemas que tenham por base a igualdade de direitos e obrigações.
2) Amplitude e extensão de uma futura rede de acordos comerciais (em substituição à
Alca), patrocinada pelos Estados Unidos, que tenderá a atrair, quando existir, países
fortemente dependentes da relação econômica com o gigante do norte. O mesmo
efeito pode ser produzido desde já, pelos acordos bilaterais de comércio já
concluídos entre os EUA e países da América do Sul, a exemplo dos já realizados
com o Chile, Colômbia e Peru, e dos que eventualmente forem negociados.
3) Tensões ou mesmo conflitos entre países vizinhos por razões de ordem histórica
(como nos casos do Chile e a Bolívia e o Peru, ou ainda Colômbia e Venezuela, ou
Venezuela e Guiana) ou pelo surgimento de pendências ligadas aos eventuais
efeitos externos de instabilidades internas (no caso da Colômbia, por exemplo), o
que pode ser igualmente vinculado aos deslocamentos de populações, acesso a
recursos estratégicos (água, fontes de energia etc.).
4) Capacidade brasileira de conceder acesso não recíproco a seu mercado, prestar
cooperação em escala ampliada, mediar conflitos entre os países da região ou
mesmo ter capacidade para alguma projeção de tipo militar.
5) Disponibilidade de fontes de financiamento para viabilizar a integração da
infraestrutura física e energética da América do Sul, entre elas o próprio Brasil.
6) Fortalecimento e consolidação do Mercosul, que deve ser necessariamente a base de
qualquer projeto integracionista mais amplo na região.
7) Ampliação da capacidade de exportação de capitais por parte do Brasil, em especial
via multinacionalização de suas grandes empresas.
Um esforço de planejamento estratégico envolvendo os diversos processos
regionais ou plurilaterais de integração, como no caso da Comunidade Sul-Americana
de Nações, não é facilmente administrável pelos países envolvidos, uma vez que a
negociação de regras multilaterais sempre apresenta dificuldades operacionais de uma
certa complexidade, a fortiori quando o processo decisório comporta a adoção de
definições ou a tomada de decisão com base na unanimidade. As mesmas razões de
ordem prática militam contra o estabelecimento de soluções de ruptura, sendo
normalmente esperado que os parceiros implementem, “naturalmente”, soluções
214
tendenciais, que costumam, igualmente, tardar mais longamente do que soluções
bilaterais ou as que mobilizam número restrito de parceiros.
O Brasil “adotou” uma descontinuidade em sua política externa, desde o início
dos anos 1990, no sentido de privilegiar o conceito e a realidade da América do Sul no
quadro de sua diplomacia regional, em lugar da antiga noção de América Latina.
Caberia agora primar pela continuidade, no sentido de confirmar essa escolha
fundamental – não tão estratégica, talvez, ou absolutamente indispensável, do que a
seguida no caso do Mercosul, mas igualmente relevante – e continuar a trabalhar essa
nova realidade diplomática pelos anos e décadas à frente, independentemente das
dificuldades conjunturais ou obstáculos estruturais (consagrados, uma vez mais, nas
famosas assimetrias econômicas, industriais e sociais,s no plano regional).
Mais ainda do que no projeto do Mercosul, deve-se falar, no caso da América do
Sul, de “regionalismo aberto”, ou seja, perseguir a real abertura econômica – ainda que
de forma não-recíproca – com todos e cada um dos países da região, situação a ser
complementada, obviamente, pela continuidade da abertura comercial com os parceiros
da América do Norte e da Europa. É nesse âmbito sul-americano que o Brasil poderá
mobilizar, em toda a sua extensão possível, suas enormes vantagens comparativas
dinâmicas e o potencial oferecido pelo seu território conectado a quase todos os países
da região. É também nesse âmbito que o Brasil aparece como “gigante natural” e,
portanto, como provedor de acesso ao seu próprio mercado e como ofertante
competitivo na maior parte dos ramos industriais e de serviços.
Esse cenário é ainda mais válido, justamente por força das dificuldades de
financiamento dos projetos e sua implementação no terreno, no caso das iniciativas de
integração física que foram traçadas a partir da conferência de cúpula da América do
Sul, realizada em Brasília em setembro de 2000, e que vêm sendo implementadas no
quadro da IIRSA e agora da Comunidade Sul-Americana de Nações. A implementação
de projetos nas áreas de transportes, energia e comunicações só pode ser tendencial,
uma vez que concepção, desenho e efetivação de cada um desses projetos envolve não
apenas a obra de engenharia em si, mas igualmente uma complexa arquitetura
financeira.
A parte física da integração poderia, em princípio, caminhar até mais rápido do
que a parte comercial, pois não existem no primeiro caso as limitações de tipo
institucional e os constrangimentos da posição em bloco que são de rigor na segunda
modalidade de integração, que existe o formato “4+1” ou os esquemas bloco a bloco.
215
5. O objetivo geoestratégico básico do Brasil na América do Sul
O objetivo básico da integração em escala continental, na visão brasileira, é a
conformação de um imenso espaço integrado nos planos econômico-comercial e físico-
logístico, bases indispensáveis de exercícios mais ambiciosos nos terrenos da integração
cultural, na “permeabilidade” social e financeira, e até em direção de objetivos mais
amplos nos terrenos político e diplomático, com coordenação de posições em matéria de
política externa e de segurança estratégica. Não se trata, em princípio, de constituir um
“bloco” para se contrapor a outros poderes, em especial ao mais poderoso país do
hemisfério, mas tão simplesmente de conformar um espaço integrado para o
desenvolvimento integral dos povos da região.
O Brasil, pela sua dotação favorável de fatores, geografia “estendida” e regime
político aparentemente mais estável do que todos os demais países da região, com a
possível exceção do Chile, tem todas as condições de exercer a liderança nesse
processo, mas essa posição precisa emergir naturalmente, como sendo uma demanda
dos países interessados em nossa capacidade de iniciativa nos mais diversos setores, não
como um oferecimento feito de forma isolada e muito menos como uma imposição
unilateral, o que possivelmente não seria aceito pelos vizinhos regionais.
Dentre as metas e linhas de ação que poderia sustentar esse objetivo estratégico
do Brasil estão: (a) a continuidade do processo de acumulação de pequenos avanços
institucionais no sentido de ampliar a rede de acordos integracionistas no contexto da
América do Sul, completando a cobertura dos acordos econômicos e comerciais, com
sua extensão a novas áreas de interesse social e cultural, e, de modo paralelo e até mais
intenso; (b) avançar decisivamente no terreno da integração física, para de fato dar o
suporte logístico à integração que se pensa promover no campo dos sistemas produtivos
e dos intercâmbios financeiros e tecnológicos. O Brasil não deve proclamar sua vocação
de ser o centro desse espaço integrado, pois isso ocorrerá naturalmente, e qualquer
intenção anunciada pode gerar movimentos contrários que poderão retardar o processo
de conformação desse espaço.
Uma visão estratégica recomendaria ainda dispor da mais ampla flexibilidade
organizacional e política na definição e escolha dos objetivos e instrumentos capazes de
lograr a consolidação do espaço integrado sul-americano, o que significa não
privilegiar, nem descartar, nenhum dos mecanismos existentes e porventura em
formação que facilitem a obra de integração, seja no terreno econômico-comercial, seja
216
no plano logístico e da infra-estrutura, seja ainda na área estratégica e de segurança. Em
algumas tarefas, a cooperação poderá inclusive estender-se a parceiros fora do alcance
geográfico imediato do espaço em formação, como podem ser os países caribenhos, os
centro-americanos, o México e o Canadá, e até mesmo os EUA, que continuarão, no
futuro previsível a ser um grande mercado e provedor de bens e serviços, nas áreas de
mercadorias, financeira, cultural e educacional e sobretudo tecnológica. Um projeto
hemisférico não deveria necessariamente ser visto como contraditório ou oposto a esses
objetivos de integração no âmbito sul-americano, tanto porque a maior parte dos países
vizinhos têm dele uma visão positiva, tanto em termos de acesso ao mercado dos EUA,
como fonte possível de recursos financeiros e de investimentos diretos.
Uma outra modalidade de ação implicaria acelerar de modo decisivo o processo
de integração física, econômica e social no contexto sul-americano, com o Brasil tendo
de assumir os custos iniciais (ou permanentes) desse tipo de investimento, sem que
estejam muito claras as condições políticas e financeiras sob as quais o Brasil teria de
desempenhar esse papel protagônico (de resto, unilateral e portanto sob risco de rejeição
por parte dos vizinhos). A “fuga para a frente”, em todo caso, a supor que ela seja aceita
pelos vizinhos, teria de comportar, igualmente, uma “solução financeira” para os
intercâmbios regionais, com a moeda brasileira desempenhando um papel
complementar ao do dólar nos financiamentos, transferências e créditos dos mais
diversos tipos. Em outros termos, o Brasil precisaria estar disposto e em condições de
passar a assumir um papel de provedor generoso de ajuda técnica e assistência ao
desenvolvimento, de “exportador de capitais” e de “aberturista não-recíproco” aos
produtos e serviços dos países vizinhos.
Acelerar, relativamente, e consolidar, absolutamente, o processo de integração
física e econômica dos países da América do Sul representam grandes empreendimentos
econômicos e diplomáticos do ponto de vista do Brasil. Da mesma forma, implementar
e garantir o funcionamento ampliado de uma rede de acordos políticos, econômicos e de
outra natureza, que diminuam as barreiras existentes entre os países, constituem outros
grandes desafios estratégicos para a sua diplomacia. Um objetivo de mais longo prazo,
para essa diplomacia, seria tornar a América do Sul um ator, se não global, pelo menos
dotado de importância relativa nos cenários hemisférico e nas relações com outros
grandes atores do sistema internacional. Adicionalmente, seria importante, no plano
setorial, institucionalizar uma rede de acordos plurilaterais relativos à integração física,
eventualmente pelo reforço da Comunidade Sul-Americana de Nações (mas não
217
necessariamente através dela, exclusivamente). A diplomacia recomenda, justamente,
conservar um grau relativo de liberdade e de flexibilidade para alcançar metas variadas
e objetivos diversificados nos diversos planos da integração regional. No caso do Brasil,
essa liberdade deve ser confrontada a suas obrigações no âmbito do Mercosul.
6. Conclusão: a estratégia sul-americana do Brasil
A América do Sul é o terreno “natural” de atuação da diplomacia e da economia
do Brasil, tanto quanto o é o Mercosul, ainda que seu processo de consolidação
demande bem mais tempo e maiores esforços do que o projeto de plena conformação do
mercado comum no âmbito sub-regional. Não se deve, no entanto, fixar metas irrealistas
de mercado plenamente unificado no futuro previsível em escala sul-americana, apenas
um cenário de criação de redes comerciais e de esquemas econômicos complementares,
inclusive e principalmente na área financeira, com a utilização de mecanismos e
instrumentos crescentemente mais sofisticados, como podem ser os da Comunidade Sul-
Americana de Nações. O Brasil deve estar consciente de que as principais iniciativas, e
os maiores esforços de cooperação, devem partir dele mesmo, o que demandará,
obviamente, um investimento inicial sem retorno aparente garantido (mas que
fatalmente virá em seu devido tempo). No plano da organização estatal interna, o
objetivo estratégico deveria ser tornar a área “doméstica” da integração sul-americana
não apenas prioritária do ponto de vista diplomático, mas igualmente no que se refere à
ação setorial de todos os demais ministérios, que devem passar a encarar os desafios à
integração sul-americana como uma extensão e parte constitutiva de suas próprias
políticas setoriais.
1709. “O contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração”,
Brasília, 5 janeiro 2007, 12 p. Revisão geral, em forma de artigo, do trabalho 1437
(relativo ao bloco econômico-político da América do Sul, concebido como
proposta de solução estratégica para a dimensão global do projeto Brasil 3
Tempos). Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 76, novembro 2006,
p. 15-23; ISSN: 1518-1219; link: http://meridiano47.info/2006/11/). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de publicados nº 724.
218
20. Mercosul: uma avaliação retrospectiva e uma visão prospectiva
O presente ensaio pretende fazer uma revisão histórica do desenvolvimento do
Mercosul, bem mais no plano conceitual do que em suas manifestações operacionais, e
formular algumas hipóteses quanto a sua evolução futura. A análise será feita no
contexto da integração regional e do sistema multilateral de comércio, tendo em conta
opções estratégicas do ponto de vista brasileiro, sem entrar no detalhamento de
iniciativas ou posições adotadas pela política externa do Brasil.
Após considerações iniciais de caráter geral sobre a relevância estratégica do
Mercosul para o Brasil, será efetuada uma retrospectiva do bloco do cone sul em suas
grandes linhas de desenvolvimento político-comercial. Numa terceira parte serão
apresentados alguns elementos da evolução possível desse bloco, seguidos de
argumentos quanto à sua possível evolução tendencial, sem desconsiderar algumas
hipóteses de aceleração ou de ruptura com as linhas seguidas até o presente momento.
Finalmente, serão discutidos alguns dos desafios com que se defronta o Mercosul na
presente fase de desenvolvimento, sem necessariamente traçar recomendações quanto às
políticas a serem adotadas. O objetivo é bem mais analítico do que propositivo, tendo
em vista importantes indefinições políticas que hoje cercam esse processo de
integração.
1. A relevância estratégica do Mercosul para o Brasil
O objetivo estratégico do Brasil em relação ao bloco político-econômico do
Mercosul tem a ver com a consolidação desse agrupamento político-comercial enquanto
centro de um espaço econômico integrado na América do Sul e sua projeção ulterior
enquanto ator relevante, regional e internacional, nos sistemas político e econômico
mundiais. O Brasil assumiu, desde o início do Mercosul, um papel protagônico nesse
processo, que tem igualmente na Argentina um parceiro de primeiro plano. O Mercosul
também tem sido definido, desde o início dos anos 1990, como um elemento
fundamental da política externa brasileira e como um dos objetivos prioritários da
estratégia brasileira de inserção internacional.
Esse processo, para sua consecução exitosa, deve estar devidamente articulado
com os demais elementos da estratégia nacional de desenvolvimento, notadamente nas
219
suas vertentes de gestão macroeconômica e de políticas setoriais de competitividade
externa, de comércio exterior e de desenvolvimento tecnológico e industrial, aqui
incluído o sistema do agronegócio.
O Mercosul representa um importante vetor de modernização econômica e
tecnológica e de inserção competitiva internacional da economia brasileira, não tanto
pela sua potencialidade stricto sensu, mas pela possibilidade que ele oferece ao Brasil
de consolidar um espaço econômico mais amplo do que o próprio território nacional
para a atuação das empresas nacionais, em primeiro lugar na sua conformação
propriamente platina e do Cone Sul, em segundo lugar no estabelecimento de um
espaço econômico integrado ao conjunto da América do Sul.
A essa dimensão geoeconômica deve ser agregada uma dimensão diplomática ou
mesmo geopolítica, no sentido em que o Mercosul, quando consolidado em seu objetivo
fundamental (artigo 1º do Tratado de Assunção, de 1991) de mercado comum, e
enquanto base principal de uma zona de livre-comércio sul-americana, constituirá um
importante fator de projeção regional e internacional de poder econômico e político,
tendo necessariamente o Brasil, ao lado da Argentina, como um dos atores
fundamentais no jogo estratégico global.
Desde algum tempo e com maior ênfase a partir do final da Guerra Fria, os
processos de globalização e de regionalização têm marcado o itinerário histórico de
países e regiões inteiras. Na fase anterior, os blocos seguiam uma lógica mais político-
militar do que propriamente econômica, a despeito da existência de alguns
experimentos bem sucedidos nessa vertente, como foi o caso do processo de integração
europeia. Deslanchado a partir da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (em
1951), expandido para os objetivos de um mercado comum em 1957 (com os tratados
de Roma) e consolidado ao longo dos anos enquanto mercado verdadeiramente
unificado (1986-1992), o projeto de uma “União Europeia” foi estendido para a
dimensão da união econômica e monetária a partir do Tratado de Maastricht (1991),
com sucessivas ampliações dos países membros, a partir dos seis sócios originais da
Europa ocidental, até atingir, em 2007, 27 países membros, desde o norte da Europa até
o Mediterrâneo e a Europa oriental. Diversos outros países na região postularam suas
candidaturas, sendo o mais importante deles a Turquia.
Essa trajetória bem sucedida de integração, contando inclusive com moeda única
e uma estrutura institucional relativamente homogênea, contrasta com as dificuldades da
integração na América Latina, que conheceu diferentes etapas desde a Associação
220
Latino-Americana de Livre-Comércio (1960) até a atual Associação Latino-Americana
de Integração (1980), com experimentos sub-regionais paralelos, como o Grupo Andino
(1969), hoje Comunidade Andina de Nações (CAN) e o próprio Mercosul (1991),
formado a partir das primeiras experiências bilaterais de integração entre o Brasil e a
Argentina (Programa de Integração e de Cooperação Econômica, de 1986, Tratado de
Integração, de 1988, e Ata de Buenos Aires, de 1990).
O processo de integração bilateral Brasil-Argentina, diferentemente dos
esquemas anteriores da Alalc e da Aladi, que se limitavam a uma zona de livre-
comércio ou mesmo a uma simples área de preferências tarifárias, já estava concebido
como um projeto de mercado comum, e foi assim que ele foi “quadrilateralizado” em
1991 para acolher o Paraguai e o Uruguai que, junto com o Chile, negociaram uma
extensão dos esquemas integracionistas que vinham sendo implementados pelos dois
maiores países do Cone Sul. O Chile não ingressou no Mercosul naquela ocasião, em
virtude da incompatibilidade de sua estrutura tarifária (baseada no conceito de tarifa
única, então centrada numa alíquota de 11%, posteriormente reduzida à metade) com o
projeto de Tarifa Externa Comum do Mercosul, mas tornou-se membro associado, junto
com a Bolívia, em 1996.
Desde essa época, aliás, existiram projetos de uma área de livre comércio sul-
americana, a constituir-se em especial através de esquemas de liberalização comercial
entre o Mercosul e a CAN, objetivo finalmente alcançado, ainda que de forma
imperfeita, entre 2003 e 2004, ao mesmo tempo em que se dava início à Comunidade
Sul-Americana de Nações (lançada no Peru, em dezembro desse ano). Paralelamente
foram assinados acordos de liberalização comercial com a maior parte dos países
integrantes da CAN, sendo que a Venezuela decidiu aderir ao Mercosul em 2006. Um
documento de recomendação ao Conselho, elaborado por um grupo de trabalho que
definiu as regras e os prazos da plena incorporação da Venezuela ao bloco foi
estabelecido no início de 2007. No início desse ano, estavam em curso tratativas para a
incorporação plena da Bolívia – já membro associado desde 1996 – e do Equador, mas
ambos países pretendiam obter regras “especiais” de adesão – possivelmente com a
dispensa de aplicação plena da Tarifa Externa Comum ou de outras obrigações comuns.
Cogitou-se, igualmente, do ingresso de Cuba – que já é membro pleno da Aladi desde
1998 – ao Mercosul, mas este exibe uma “cláusula democrática” – declaração de San
Luís e Protocolo de Ushuaia – que pode inibir essa incorporação enquanto o país
caribenho funcionar com um modelo político à base de partido único.
221
Para que o processo de fortalecimento do Mercosul se consolide de forma
irreversível, o bloco precisaria cumprir os objetivos estabelecidos no artigo 1º do
Tratado de Assunção, quais sejam os de constituir um mercado comum unificado e o
servir de plataforma para a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais dos
países membros, o que implica seu fortalecimento e institucionalização ampliada. As
dificuldades que se têm anteposto a esse objetivo podem ser definidas como sendo de
duas ordens: conjunturais e estruturais.
No plano conjuntural, existem as naturais limitações de processos nacionais de
estabilização macroeconômica não inteiramente consolidados, depois de anos, ou
mesmo décadas, de instabilidades criadas por surtos hiperinflacionários, crises externas
de pagamentos associados ao excessivo endividamento e a volatilidade dos movimentos
de capitais, debilitamento das moedas nacionais e fases de estagnação ou de baixo
crescimento econômico.
No plano estrutural, são evidentes as assimetrias entre os países membros, tanto
em termos de dimensão econômica própria (com o Brasil representando algo como 70%
da “massa” do Mercosul, em matéria de PIB, de comércio intra-regional e externo, de
investimentos estrangeiros etc.), como em razão da estrutura e do nível do processo de
industrialização e de avanço tecnológico (com as disparidades mais fortes acumuladas,
mais uma vez, em favor do Brasil). Daí resultam diferenciais de competitividade e de
atração de investimentos que têm provocado reações nos demais sócios e impedido a
consolidação e avanço do Mercosul para patamares mais avançados de integração e de
inserção internacional.
O mesmo cenário pode se reproduzir em escala ampliada, no âmbito sul-
americano, o que por sua vez representaria limitações para a consolidação do Mercosul
enquanto centro do processo de integração regional. A experiência histórica indica que
avanços reais nos planos institucional e político dependem de uma boa base econômica
e de infraestrutura na região, razão pela qual os países membros deveriam, se desejam
efetivamente consolidar o Mercosul enquanto bloco político-econômico regional,
redobrar os esforços para a superação das dificuldades remanescentes para a
constituição do Mercosul enquanto mercado comum verdadeiramente unificado. O
Brasil tem conduzido esforços para a superação das chamadas “assimetrias” de
desenvolvimento, notadamente mediante a constituição de um “fundo” de correção
desses desequilíbrios, do qual é o principal financiador líquido, mas as dimensões do
222
problema parecem ultrapassar de muito as possibilidades algo limitadas do novo
esquema.
2. Retrospectiva do Mercosul
O Mercosul tem uma história que pode ser remontada aos anos 1950, ou mesmo
antes. Já em 1941, numa fase de perigos mundiais, Brasil e Argentina assinaram um
acordo de constituição de uma união aduaneira, suscetível de ser ampliada a outros
países do Cone Sul, que não pode entretanto constituir-se em virtude da ampliação da
Segunda Guerra Mundial e das opções distintas que os dois países adotaram pelo
restante do período bélico. No pós-Segunda Guerra alguns esforços de aproximação
política e de cooperação econômica foram conduzidos, em especial durante os governos
Perón e Vargas e depois novamente Kubitschek e Frondizi, que não avançaram em
razão das instabilidades internas exacerbadas e também provavelmente em virtude de
desconfianças existentes entre os respectivos establishments militares. Ainda assim, os
dois governos atuaram no sentido de estabelecer um esquema integracionista no Cone
Sul, baseado no conceito de preferências tarifárias, mas que, dadas as circunstâncias da
época, só pode ser concretizado mediante o acordo de uma zona latino-americana de
livre-comércio do primeiro tratado de Montevidéu (Alalc, 1960).
Os anos 1960 e 1970 foram dominados por governos autoritários em quase toda
a região, com fases mais ou menos delongadas de regimes militares tanto no Brasil
quanto na Argentina, o que inviabilizou esquemas mais amplos ou ambiciosos de
integração econômica, ademais de exacerbar certas preocupações com a segurança
estratégica em cada um dos países, a ponto inclusive de suscitar projetos paralelos de
capacitação nuclear em ambos. A redemocratização política de meados dos anos 1980
permitiu abrir um espaço real de cooperação e de integração bilateral, cobrindo não
apenas aspectos propriamente comerciais e de complementação produtiva, mas
igualmente protocolos de integração em diferentes áreas da vida nacional, inclusive no
terreno nuclear (energia e equipamentos).
Foi este entendimento fundamental entre a Argentina e o Brasil, nos governos
Raul Alfonsin (1984-1989) e José Sarney (1985-1990), que permitiu o lançamento do
ambicioso projeto de integração bilateral com o objetivo de instituir um mercado
comum em dez anos (Tratado de Integração de 1988). Este esquema, fortemente
embasado numa visão gradualista e flexível, dispondo como instrumentos fundamentais
dos protocolos setoriais de complementação econômica, foi posteriormente modificado
223
– nos governos Carlos Saul Menem e Fernando Collor de Mello – pelo esquema livre-
cambista de integração plena, com a redução à metade do prazo para a formação de um
mercado comum (Ata de Buenos Aires, de julho de 1990). A Ata de Buenos Aires deu o
quadro institucional e os mecanismos de desgravação comercial para o esquema
negociado do Mercosul, então ampliado aos dois outros sócios da vertente platina,
Paraguai e Uruguai, e consolidado no Tratado de Assunção, de março de 1991.
Baseado num esquema intergovernamental – e não comunitário – de formação
de uma união aduaneira e de um mercado comum, o Mercosul conseguiu cumprir,
durante a fase de transição (1991-1994), vários dos seus objetivos preliminares, quais
sejam, a desgravação comercial recíproca, a adoção de diversos instrumentos
constitutivos da união aduaneira – como a definição de uma tarifa externa comum e de
um mecanismo de solução de controvérsias –, mas não logrou a constituição do
mercado comum anunciado no tratado fundacional. Foram preservadas algumas
exceções à zona de livre-comércio – das quais as mais importantes foram o setor
automobilístico e o açúcar – e mantidas diversas exceções nacionais à sua Tarifa
Externa Comum – com desvios para cima ou para baixo em relação ao que seria a tarifa
normal, notadamente em setores como eletroeletrônico e bens de capital. Não foi
possível, por outro lado, atingir-se o objetivo de coordenação das políticas
macroeconômicas e setoriais, sobretudo em razão de uma defasagem fundamental entre
os regimes cambiais da Argentina – então funcionando à base de um regime de
convertibilidade que previa a paridade absoluta entre o peso e o dólar – e o do Brasil –
que numa primeira fase ainda se encontrava sob um regime de minidesvalorizações,
substituído, a partir do Plano Real, por uma âncora cambial, modificada por sua vez por
um regime de bandas cambiais a partir da fase de crises financeiras da segunda metade
dos anos 1990, até a desvalorização de janeiro de 1999 e a adoção ulterior de um regime
de flutuação.
O Mercosul foi fortemente atingido por todas as instabilidades nacionais,
regionais e internacionais que marcaram a fase de crises financeiras dos anos 1990,
mesmo se, numa primeira etapa, o comércio intrarregional e mesmo o comércio dos
países membros com o mundo tenha conhecido uma real expansão e não tenha
enfrentado desvios notáveis em função da formação da união aduaneira. Desde o
período de transição (1991-1994) e mesmo na etapa seguinte, depois da consolidação do
esquema intergovernamental do Mercosul mediante o Protocolo de Ouro Preto
(dezembro de 1994), o comércio intra e extra-Mercosul cresceu significativamente, para
224
o que também contribuíram as reformas econômicas e as políticas de abertura comercial
adotadas no início dos anos 90.
O Mercosul atuou, igualmente, no sentido de distender as relações estratégicas
entre seus dois grandes parceiros, uma vez que a Argentina e o Brasil tinham
historicamente adotado, desde muito tempo, senão o caminho da animosidade ou da
hostilidade recíproca, pelo menos uma certa prevenção de princípio contra supostas
intenções hegemônicas em cada uma das margens do Prata, postura materializada em
táticas eventuais de oposição bélica em possíveis cenários de conflito, chegando
inclusive à competição nuclear, ainda que inconfessada. Os programas de cooperação
bilateral na área nuclear, desde os anos 80, a aceitação, por ambos os países, de
salvaguardas extensivas nesse terreno no início dos anos 90, culminando com a adesão
ao TNP, bem como o início de um efetivo programa de consulta e de intercâmbio entre
unidades militares dos dois países, contribuíram para uma real distensão no campo
estratégico e o início da cooperação entre seus establishments militares, base de uma
futura integração doutrinal e operacional.
Paralelamente, ao adotar uma concepção de “regionalismo aberto”, o Mercosul
abriu-se a negociações com outros parceiros regionais e mesmo de fora da região: a
associação do Chile e da Bolívia ao Mercosul deu-se desde 1996, enquanto esforços
eram feitos em direção da CAN, finalmente concretizados pela associação do Peru ao
Mercosul, em 2003, e mediante acordos com os demais membros da CAN no decorrer
de 2004. A Venezuela aderiu mediante protocolo assinado em 2006, mas o esquema
negociado delonga durante vários anos – até 2014, praticamente – sua incorporação
plena ao regime interno de livre comércio e sua plena aceitação da Tarifa Externa
Comum. Bolívia e Equador são dois outros possíveis candidatos.
A União Europeia declarou-se parceira do Mercosul desde o início de sua
criação, oferecendo programas de cooperação técnica e dispondo-se, desde o acordo de
Madri (dezembro de 1995), a negociar um esquema de liberalização comercial entre os
dois esquemas de integração, processo deslanchado a partir de 1999 e ainda não
terminado. As dificuldades maiores se situam na liberalização agrícola, do lado
europeu, e a abertura aos produtos industriais e serviços, do lado do Mercosul.
No plano hemisférico, também foram notórios os esforços dos Estados Unidos
para lograr uma zona de livre-comércio englobando toda a região (à exceção de Cuba).
Esse processo teve início ainda em 1990, através da Iniciativa para as Américas,
proposta pelo presidente George Bush (pai) e desdobrou-se em dezembro de 1994 na
225
chamada Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), proposta pelo presidente
William Clinton durante uma cúpula presidencial realizada em Miami. Depois de
intenso processo preparatório, no qual o Mercosul conseguiu defender uma concepção
que preservasse o seu próprio bloco de integração – contrariamente à visão dos EUA,
que pretendiam uma simples adesão dos demais países ao esquema do Nafta, o acordo
de livre-comércio da América do Norte –, as negociações para a formação da Alca
foram praticamente paralisadas a partir do final de 2003, em função de
desentendimentos entre seus principais protagonistas – isto é, EUA e Brasil – a
propósito da amplitude do acesso a mercados (em especial de bens agrícolas) e da
extensão a ser dada ao tratamento de alguns temas ditos “sistêmicos” – entre eles,
subsídios, antidumping, investimentos, propriedade intelectual, compras
governamentais – que os países entendem seriam mais bem discutidos no âmbito
multilateral das negociações comerciais da OMC. Uma tentativa de reinício do processo
negociador fracassou na cúpula realizada em Mar del Plata em novembro de 2005 e a
Alca parece ter saído da agenda americana, tendo Washington colocado em seu lugar o
objetivo de concluir uma série de acordos bilaterais dos quais espera retirar concessões
mais generosas dos países interessados em seu vasto mercado.
A crise na Argentina desdobrou-se, a partir de 1999 e em especial no final de
2001, numa forte recessão e numa aguda crise política, na suspensão do seu regime de
convertibilidade cambial e na decretação da moratória dos pagamentos de sua dívida
externa, o que, junto com a instabilidade manifestada em outros países da região, entre
eles o Brasil, provocou um forte decréscimo nos níveis de comércio recíproco no
Mercosul. A despeito de um processo gradual de recuperação do crescimento nos países
membros e de uma retomada do comércio e dos investimentos na região, o Mercosul
ainda ostenta diversas fragilidades econômicas e comerciais, com a manifestação
frequente de impulsos protecionistas em setores fragilizados das economias nacionais
dos países membros, como por exemplo a ameaças de imposição de salvaguardas
unilaterais contra produtos concorrentes brasileiros por parte de alguns ramos da
indústria argentina. Essas práticas argentina de restrição ao comércio bilateral com o
Brasil acabaram sendo consolidadas num “Mecanismo de Adaptação Competitiva”, que
pode ter diminuído o ímpeto unilateralista do país vizinho.
A despeito das dificuldades de ordem econômico-comercial, o Mercosul logrou
avançar em diversos outros terrenos de cooperação bilateral e mesmo multilateral no
Cone Sul, com a adoção de diversos instrumentos nos terrenos industrial e tecnológico,
226
educacional, previdenciário, de ajuda mútua e de integração nas áreas da justiça e
judiciária e em setores de infraestrutura como transportes, energia e comunicações.
Também foram dados passos para a cooperação cultural e social, com a multiplicação
de mecanismos de coordenação e de cooperação envolvendo não apenas os governos e
as instituições públicas dos países membros e associados, mas também representantes
da sociedade civil, a começar pelos sindicatos e organizações culturais. Um Parlamento
do Mercosul foi criado em 2006, contando com representação paritária dos países
membros, a despeito mesmo da enorme diferença de dimensões e de população entre
eles.
Por fim, e não menos importante, as reuniões ministeriais e encontros
presidenciais a cada seis meses pelos menos, mas na prática em ritmo mais intenso,
inclusive e principalmente no plano bilateral, têm permitido uma intensa troca de
opiniões e a coordenação de posições entre os países membros, seja em relação aos
temas propriamente integracionistas, seja no âmbito das negociações hemisféricas e
extra-zona, seja ainda no que se refere a diferentes pontos da agenda política e
econômica internacional. A superação da crise econômica e a consolidação dos
processos de estabilização nos países membros deveria permitir, nos próximos anos, a
realização, em princípio, dos objetivos fundamentais do Tratado de Assunção,
nomeadamente a constituição do mercado comum pretendido.
3. Um visão de futuro para o Mercosul
Uma visão prospectiva do Mercosul, no seu âmbito próprio e no seu contexto
regional e internacional, deve levar em conta situações conjunturais, internas e externas,
desafios presentes e futuros, bem como processos estruturais ligados às suas
características de desenvolvimento. Essas dinâmicas estão por vezes fortemente
entrelaçadas, tendo em vista inclusive o fato de ser a região relativamente extrovertida,
isto é, dependente de fluxos externos de capitais, know-how e tecnologia e de
intercâmbios que se processam em grande medida com parceiros externos, mais até do
que na própria região.
Diferentes processos ou eventos influenciarão o itinerário futuro do Mercosul,
em sua dimensão própria e nos contextos externos, entre os quais podem ser destacados:
1. A evolução propriamente interna, política, institucional e econômica, dos países
membros, sem ruptura dos regimes democráticos e pluralistas;
227
2. A disposição de suas lideranças políticas em continuar impulsionando o processo de
integração, a despeito de custos setoriais que são inevitáveis;
3. O estabelecimento de uma agenda realista, preferencialmente de forma coordenada,
para a superação, no curto prazo, das dificuldades conjunturais e, no médio prazo,
das limitações e obstáculos estruturais à plena integração dos mercados;
4. A manutenção do crescimento econômico e da competitividade externa dos países
membros, de maneira a continuar a atratividade de capitais externos e mesmo os
investimentos recíprocos nos países membros;
5. A continuidade das reformas macroeconômicas e setoriais, com a adoção de uma
perspectiva integracionista nas diferentes vertentes desse processo de reformas nos
países membros, notadamente nas área tributária, de normas e regulamentos
técnicos, de coordenação de legislações setoriais e de integração das políticas
regulatórias;
6. A preservação da estabilidade econômica, política e social na região, pelos reflexos
desse quadro nas relações externas do Mercosul, em especial no que se refere à
consolidação dos acordos com os países membros da CAN e a continuidade dos
demais esquemas de integração física e política em âmbito continental, como pode
ser a Comunidade Sul-Americana de Nações;
7. A continuidade e eventual conclusão das negociações no âmbito da Rodada Doha, da
OMC, fortemente dependentes de êxitos a serem alcançados nos capítulos agrícola e
industrial, ademais de serviços e propriedade intelectual;
8. A extensão e profundidade dos acordos de liberalização comercial que vêm sendo
negociados pelos Estados Unidos com diversos parceiros da região, o que representa
um dupla ameaça para o Mercosul, tanto no plano propriamente regional como no
acesso ao mercado americano;
9. A retomada e conclusão de um acordo de liberalização comercial entre o Mercosul e
a União Europeia, igualmente dependente das negociações multilaterais da OMC e
dos ganhos a serem eventualmente obtidos pelos EUA no plano hemisférico.
Não há uma única trajetória futura, ou alternativas antinômicas, para o bloco
político-econômico do Mercosul, uma vez que se trata de processo fortemente
dependente da vontade política dos países membros. Respondendo a uma dinâmica
político-diplomática bem mais forte do que a própria realidade econômica regional, seu
processo de desenvolvimento dependerá, assim, das definições de políticas nacionais
228
suscetíveis de serem adotadas pelos diferentes governos dos países membros e
associados. Ainda assim, passados quinze anos de sua fundação e implementação, é de
se supor que as novas realidades criadas e consolidadas ao longo desse período atuem
como forte fator dissuasor de quaisquer retrocessos que possam ser aventados como
resultado das dificuldades conjunturais e das limitações estruturais que enfrentam ou
enfrentarão, no futuro, os países membros.
Elemento importante na sua dinâmica de desenvolvimento institucional refere-se
à sua característica básica, qual seja, a de o Mercosul continuar sendo um processo
“apenas” intergovernamental, e não comunitário ou supranacional – sem perspectiva de
que essa realidade seja mudada no futuro previsível –, com o que esse bloco continuará
fortemente dependente das políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, que adotem
os governos dos países membros nos anos à frente. De toda maneira, se o objetivo
básico, tal como identificado na maior parte dos establishments políticos nacionais, é o
da consolidação, ampliação e extensão do Mercosul, então algumas problemas têm de
ser enfrentados por esses governos com vistas ao atingimento dos objetivos
estabelecidos em 1991 no Tratado de Assunção (e ainda não cumpridos em sua maior
parte).
Consoante uma metodologia que pode ser adotada para a problemática do
Mercosul, as soluções estratégicas a esse problema podem ser agrupadas em dois
grupos: tendenciais e de ruptura. As soluções estratégicas tendenciais aplicam-se a
situações que necessitam de aperfeiçoamentos e de adaptações para lograr-se o
atingimento dos objetivos pretendidos. As soluções de ruptura são teoricamente
aplicadas em temas que implicam em mudanças estruturais que levem à conquista de
alguns dos objetivos pretendidos dentro de prazos que devem ser pactuados entre os
países membros.
Em relação a essa segunda categoria, soluções de ruptura, deve-se levar em
conta que num processo negociado multilateralmente, como é o caso do Mercosul, elas
só logram realizar-se quando existe acordo prévio e completo entre todos os parceiros
do processo de integração, não cabendo aqui a manifestação da vontade exclusiva de
um ou dois dos países membros. Por outro lado, soluções de ruptura nessa temática só
podem ser concebidas em dois sentidos antinômicos: ou com uma forte disposição dos
países membros e associados em acelerar e fortalecer de modo claro o processo de
integração, avançando para etapas ainda mais ambiciosas do que aquelas estabelecidas
no Tratado de Assunção – que já se refere a um mercado comum acabado, que deveria
229
estar implementado pelo menos desde 1º de janeiro de 1995 –; ou então, no sentido
inverso, uma decisão consciente de reverter ou mesmo abandonar aqueles objetivos,
seja retrocedendo o Mercosul à situação de uma mera zona de livre-comércio – que
seria, talvez, o estatuto comercial da Comunidade Sul- Americana de Nações, caso esta
se realize plenamente em sua vertente comercial –, seja ainda, de maneira dramática, o
desmantelamento de qualquer objetivo integracionista no Cone Sul, voltando cada país
a recobrar sua autonomia em matéria de políticas setoriais, em especial a comercial e de
cooperação econômica regional em escala ampliada.
Acrescente-se que, num processo complexo como é o do Mercosul, também
dependente de desenvolvimentos externos, seja na própria região (como é o caso dos
acordos que estão sendo negociados pelos EUA, em substituição à Alca), seja em outros
contextos (avanços ou recuos dos processos multilaterais de liberalização comercial e de
abertura econômica), nem todas as dinâmicas são controladas pelos países membros,
nem dependem exclusivamente da vontade política de seus governos. Mesmo quando
dependessem, a dinâmica da economia internacional e os ciclos de inserção e
competitividade externa dos países da região podem vir a influenciar as políticas
econômicas e setoriais que serão adotadas pelos países membros nos anos à frente,
inclusive levando em conta processos diplomáticos específicos – alianças regionais ou
externas privilegiadas ou mudanças no contexto internacional, como o sistema da ONU,
por exemplo –, tanto quanto mudanças de orientação política internas aos países
membros. Nesse último caso, não é inconcebível, teoricamente, uma orientação política
de governo que tenda a ver nas soluções integracionistas geograficamente restritas uma
manifestação daquela situação de bem-estar que os economistas chamam de “second-
best solution”, ou seja, um processo de liberalização ou de abertura econômica não
necessariamente ideal, dado que parcial, protecionista e discriminatório, passando-se
então à rejeição dos esquemas integracionistas e à adoção de uma solução de abertura
unilateral e universal. Trata-se, neste último caso, de uma situação de ruptura literal,
ainda que pouco provável ou suscetível de ocorrer como tendência política, em função
do registro histórico conhecido na região.
4. Possível evolução tendencial do Mercosul
O Mercosul tem a ver, basicamente, com uma realidade comercial e econômica,
mas que é impulsionada politicamente, estendendo-se em segundo e terceiro lugar a
outros terrenos não-econômicos de realização, como podem ser os planos jurídico-
230
institucional, educacional e cultural, sindical e social etc. Nesse sentido, o Mercosul
precisaria consolidar, antes de mais nada, sua zona de livre-comércio e a sua união
aduaneira, o que tem a ver com a livre circulação de todos os bens produzidos
internamente e com o tratamento uniforme e consolidado de todas as mercadorias
transacionadas com terceiros países.
O que se constata, atualmente, é a existência de exceções remanescentes ao
livre-comércio, que talvez não possam ser acomodadas senão ao cabo de um período
adicional de mais de uma dezena de anos: tal pode ser o caso do açúcar da Argentina e o
de sua indústria automobilística, setores não competitivos em relação a seus similares
brasileiros, o que talvez seja difícil de incorporar sem programas custosos de
reconversão setorial. No plano da união aduaneira, as exceções nacionais à TEC
expressam as assimetrias existentes, conjunturais e estruturais, entre os sistemas
produtivos dos países, o que também pareceria requerer prazos adicionais para sua
incorporação ao regime comum da TEC. A inclusão da Venezuela ao Mercosul, por
decisão política antes que econômica, pode dificultar ainda mais a aplicação uniforme
da TEC no âmbito territorial da união aduaneira. Os países menores, por sua vez,
reivindicam derrogação para si de algumas normas comuns – como as regras de origem,
que determinam coeficientes elevados de conteúdo local nos produtos transformados e
exportados ao bloco – que podem também fragilizar o funcionamento comercial do
bloco.
A convergência para uma união aduaneira plena tem enfrentado dificuldades
seguidas, uma vez que ela implica alterações por vezes significativas no custo dos
fatores e insumos de produção – premiados ou penalizados, segundo os casos, por
adicionais ou isenções tarifárias, de acordo com o perfil industrial de cada membro – e
pode inviabilizar ramos inteiros de alguma indústria nacional. O fato é que prazos já
foram concedidos no passado para esse processo de convergência sem que os países
membros fizessem progressos substantivos no sentido da eliminação das exceções mais
importantes. A solução pode estar numa renegociação da TEC, com a adoção de
alíquotas mais realistas numa primeira fase, ainda que diferenciadas (mas legalmente
acordadas), seguida de nova convergência progressiva ao longo de um período adicional
de tempo.
Quanto aos diferenciais de competitividade dentro do próprio bloco, que têm
motivado demandas protecionistas no sentido da adoção de salvaguardas automáticas
nos setores submetidos a forte concorrência, eles tampouco têm soluções imediatas ou
231
de pronta implementação. Mesmo as recomendações em prol da “integração de cadeias
produtivas” entre dois ou mais países, com a adoção concomitante de uma perspectiva
de busca de mercados externos, em lugar da concorrência predatória no plano sub-
regional, essas medidas de “política industrial” não logram sua transmutação na prática,
em tempo hábil, tendo em vista os instrumentos limitados de que dispõem os governos
nos países membros para atuar em estruturas de mercado essencialmente caracterizadas
pela existência de grupos privados respondendo de forma independente a realidades
setoriais ou microeconômicas.
Uma segunda ordem de problemas, que está, aliás, “estruturalmente” ligada à
temática econômico-comercial, tem a ver com a dimensão jurídica do Mercosul, ou
mais exatamente, com a “internalização” de normas em cada um dos países, numa
situação, a do esquema intergovernamental, que depende fortemente da vontade política
nacional para o cumprimento das decisões acordadas multilateralmente. A solução
tendencial envolve, neste caso, a transparência e o monitoramento das decisões
aprovadas e remetidas aos cuidados dos países membros, com talvez a adoção de um
protocolo adicional prevendo prazos estritos para que essa internalização e promulgação
legal se faça em cada um deles. Um começo de “harmonização constitucional” talvez
fosse bem vindo como linha de princípio nessa matéria.
Essa menção “constitucional” remete, por sua vez, ao aperfeiçoamento da
institucionalidade do Mercosul que também pode ser (e ficar) dependente da efetiva
consolidação da integração comercial, uma vez que muitas regras não são cumpridas
não por falta de previsão legal, mas pela inexistência de condições objetivas, isto é,
econômicas ou sociais, para tanto. Não se menciona, neste particular, a adoção de um
outro tipo de processo decisório que não o da unanimidade (ou veto), sem qualquer
qualificação majoritária ou “dimensional”, uma vez que qualquer mudança nessa área
implicaria uma “solução de ruptura”, e não a via tendencial como abordada nesta seção.
Independentemente da consolidação de soluções “constitucionais” ao problema
da internalização de normas, há um amplo espaço para a unificação (ou pelo menos
harmonização) de legislações nacionais setoriais, logrando fazer com que os
establishments legislativos passassem a trabalhar de forma mais integrada e cooperativa.
Isto vale, igualmente, para os aparatos nacionais relativos ao poder judiciário, tanto em
sua dimensão executiva, de cooperação multilateral, como em sua vertente diretamente
judiciária, que pode cooperar ainda mais amplamente do que o realizado até aqui.
232
Uma última ordem de problemas econômicos tem a ver com a chamada questão
das “assimetrias”, encaradas como impedimentos absolutos à plena integração dos
membros. Se é certo que diferenças importantes existem entre os países membros – de
tamanho das economias, de recursos naturais e humanos, de níveis de desenvolvimento
industrial ou de sofisticação tecnológica –, o mais correto seria permitir que as
assimetrias fossem absorvidas pelas forças de mercado, introduzindo-se, aqui e ali,
medidas paliativas ou corretoras de desequilíbrios mais imediatos, sem criar programas
custosos de financiamento de iniciativas supostamente redutoras das carências setoriais.
Parece claro que financiamentos estatais, por mais importantes que sejam, não
apresentam o mesmo impacto “estrutural” que as próprias diferenças reais entre as
especializações de cada um dos países, que aliás constituem a base do comércio
regional e internacional.
O Mercosul “não-econômico”, por sua vez, compreende uma vasta agenda de
objetivos sociais, culturais ou educacionais, e até mesmo estratégicos, cujas
potencialidades são de certa forma infinitas, mas que parecem depender, igualmente, de
avanços na pauta comercial e econômica para sua implementação efetiva. No terreno
das conquistas laborais, por exemplo, a obtenção de ganhos adicionais em termos de
legislação trabalhista ou sindical depende em grande medida de ganhos constantes de
produtividade para que alguma transferência de renda, direta e indireta, se faça como
norma multilateral.
Em vários outros pontos da agenda não-econômica, a tomada de iniciativa pode
depender de fontes externas de financiamento, o que nem sempre é fácil de se lograr em
virtude, precisamente, do caráter intergovernamental do bloco e da inexistência de
personalidade efetiva de “direito internacional”. Uma solução de menor complexidade
pode implicar na boa disposição de um dos países membros em atuar como
“emprestador” ou “financiador de última instância”, ou seja, uma espécie de “garantidor
benevolente” de algumas metas que representem custos efetivos de implementação. Nas
condições atuais, essa personagem teria de ser o Brasil.
Finalmente, no terreno estratégico, as perspectivas podem ser bem mais
positivas do que a própria marcha da integração no campo econômico e comercial, uma
vez que a dinâmica de cooperação já lograda entre as forças armadas dos países
membros, em especial entre as do Brasil e da Argentina, permite augurar o
desenvolvimento de esquemas mais elaborados de integração militar, sem que esse
processo fique dependente de eventuais sucessos alcançados no plano econômico. As
233
instâncias de cooperação política e de coordenação diplomática entre as chancelarias
respectivas, para uma atuação conjunta nos foros internacionais, são ainda embrionárias,
mas os contatos em matéria de assuntos militares e estratégicos, envolvendo
representantes dos estados-maiores dos quatro países membros e sobretudo dos dois
grandes parceiros, têm sido suficientemente intensos para justificar a passagem a fases
mais elaboradas de coordenação e de integração nessa área.
Por certo que parece ainda prematura a possibilidade de algum arranjo mais
elaborado do tipo “aliança militar”, mas uma cooperação mais estreita na área da defesa
pode contribuir decisivamente para racionalizar orçamentos militares (pela
uniformização de determinados equipamentos), diminuir gastos nacionais em P&D
militar (pela cooperação ampliada nesse setor), abrir mercados para produções em
escala crescente (pela especialização industrial) e, mais importante do ponto de vista
militar, ampliar a capacidade de resposta tática e estratégica a ameaças externas (pelo
desenvolvimento de perspectivas autônomas de defesa regional, no quadro de exercícios
militares conjuntos).
Em síntese, seria preciso identificar as causas e as razões da não consolidação do
Mercosul enquanto união aduaneira – o que implica, ainda, uma não insistência no
mercado comum acabado –, apontando soluções para cada um dos problemas
identificados. Tendo em vista os possíveis prazos para a implementação de eventuais
acordos a serem alcançados no plano multilateral ou no âmbito da Alca, sugere-se um
prazo adicional de sete anos para o cumprimento dos objetivos mais importantes do
Tratado de Assunção.
Esses objetivos poderiam ser objeto de uma conferência diplomática, que
consolidaria num novo instrumento de compromissos formais e de ajustes institucionais,
o engajamento dos países membros com os principais objetivos da fase fundacional. No
plano operacional, pode-se cogitar da criação de um grupo de trabalho “estratégico-
institucional”, formado por representantes dos países membros do Mercosul, mais um
participante independente de cada um dos países (geralmente da área acadêmica, mas
podendo ser, igualmente, representante do setor privado ou de meios sociais), com o
objetivo de identificar os obstáculos existentes – estruturais, sistêmicos e conjunturais –
à consolidação da união aduaneira e de propor soluções alternativas e de traçar
estratégias de eliminação desses obstáculos, sempre numa linha de superação tendencial
desses problemas. A pauta de uma conferência diplomática de “refundação” do
Mercosul, por sua vez, seria definida exclusivamente entre os países membros.
234
5. Os desafios que se colocam ao Mercosul
Uma possível ameaça a este curso de ação seria o não comprometimento dos
países membros com o conjunto de soluções estratégicas oferecidas pelo grupo de
trabalho e seu não engajamento numa nova pactuação pela consolidação do Mercosul,
que perderia, assim, sua credibilidade interna e internacional. Pode-se, simplesmente,
não adotar formalmente, as propostas do grupo de trabalho, ainda que trabalhando,
paulatinamente, para sua implementação delongada no tempo, à medida que os próprios
países membros se sentirem preparados para tanto.
Soluções de ruptura são dificilmente implementáveis no Mercosul, uma vez que
dependentes do acordo unânime de todos os países membros. Elas só são concebíveis
no sentido puramente negativo de um país membro decidir adotar unilateralmente
medidas e decisões contrárias ao espírito e à letra do Tratado de Assunção (e seus
principais instrumentos complementares), com o que se configuraria uma situação de
“inadimplência” temporal ou definitiva, acarretando, previsivelmente, a suspensão dos
direitos e obrigações daquele país membro. Mas, isso se daria numa atmosfera de crise
política e de ruptura de compromissos diplomáticos, interna e externamente ao bloco em
questão.
Ainda assim, algumas soluções de ruptura, tendentes a acelerar o curso de
determinados objetivos acordados mas ainda não consolidados, são concebíveis e
implementáveis, como explicitado a seguir. A assunção de obrigações externas, no
quadro hemisférico ou da OMC, por exemplo, pode servir de importante elemento
estimulador dos avanços a serem alcançados no interior do próprio Mercosul, com a
adoção de uma calendário mais curto no plano interno, de maneira a preservar as
preferências de que gozam os países membros em relação a parceiros externos.
Por exemplo, para completar a zona de livre-comércio e consolidar a união
aduaneira em um prazo determinado, seria útil Estabelecer, por meio de grupos de
trabalho setoriais, uma lista consolidada de providências adicionais a estes objetivos e
definir uma metodologia, assim como um calendário para sua implementação ulterior.
Esses objetivos seriam objeto de registro num compromisso formal quanto ao seu
atingimento, a serem ratificados pelos órgãos legislativos nacionais e pelo novo
Parlamento do Mercosul.
Pode-se, também, pensar em fixar um prazo determinado – digamos entre sete e
dez anos – para a criação efetiva do mercado comum estipulado no artigo 1º do Tratado
235
de Assunção. Para que isso se faça, seria preciso propor um prazo (entre seis meses a
um ano, por exemplo) para a apresentação de um programa de ações governamentais e
multilaterais com vistas ao objetivo do mercado comum. Numa etapa ulterior, seria
adotado um novo instrumento político-diplomático estabelecendo calendário e
metodologia para o atingimento gradual do objetivo do mercado comum. Paralelamente,
seria criada uma comissão de alto nível para monitoramento e recomendações tendentes
ao cumprimento daqueles objetivos.
Uma outra solução de ruptura, mas na outra direção, seria fazer o Mercosul
reverter a uma simples zona de livre-comércio, uma vez constatado ser impossível o
objetivo do mercado comum. Para tanto, seria útil analisar, por meio de grupo de
trabalho, todas as implicações decorrentes dessa retrocessão, e medir os custos de
oportunidade advindos da reversão à situação pretendida, com a ressalva de que mesmo
essa situação não pode ser realizada plenamente, em virtude de dificuldades objetivas já
identificadas e plenamente conhecidas. Essa opção implicaria negociar um acordo
diplomático que formalizaria esse objetivo de reversão ao status de simples zona de
livre-comércio, operando a devida comunicação sobre a nova situação à OMC e outras
organizações pertinentes (Aladi, por exemplo).
O Mercosul ainda assim – isto é, no caso de uma “ruptura negativa”, induzida
externamente ou decidida internamente – precisaria decidir o que fazer com o conjunto
de acordos não exclusivamente econômicos assinados ao longo da década e meia de
existência formal. Da mesma forma, os esquemas formais e informais de consulta e
coordenação política, como as reuniões presidenciais que servem a bem mais do que
simplesmente acolher decisões do Conselho do Mercosul cumprem uma função não
estritamente vinculada à forma (“mercado comum”) assumida pelo bloco nesta fase do
esquema integracionista. Assim, mesmo no caso de uma “ruptura negativa” (quanto aos
esquemas integracionistas), seria importante preservar os elementos cooperativos na
interação entre os atuais países membros, na medida em que a “geografia” apresenta
aspectos muito mais “estruturais” do que a simples acomodação ou convivência
resultante da história ou da economia.
A indefinição quanto às linhas de desenvolvimento futuro do Mercosul, tanto
internamente quanto nos contextos regional e multilateral, torna difícil uma previsão do
que seria possível estabelecer como metas consolidadas ou “objetivos estratégicos” de
curto, médio e longo prazo. Essas linhas são em parte dependentes da vontade política
236
dos líderes dos países membros, mas também derivadas das linhas de força que irão se
consolidando ao longo dos próximos anos em função de desenvolvimentos internos e de
negociações ou eventos externos, com a presença de grandes atores – EUA, China, UE
– cujas respectivas capacidades de influência continuarão superiores ao poder próprio
dos países membros do Mercosul.
Em todo caso, parece haver um consenso político, entre os dirigentes e a
sociedade dos países membros, de que o Mercosul deveria, no decorrer dos próximos
anos, ser reforçado e consolidado, de maneira a confirmar seus objetivos de um
mercado comum sub-regional no Cone Sul e de base de um espaço econômico integrado
na América do Sul.
1710. “Mercosul: uma revisão histórica e uma visão de futuro”, Brasília, 22 de janeiro
de 2007; revisão: 30 de março de 2007, 16 p. Revisão geral, em forma de artigo,
do trabalho 1434 (relativo ao bloco do Mercosul, concebido como proposta de
solução estratégica para a dimensão global do projeto Brasil 3 Tempos).
Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47 (n. 77, dezembro 2006, p. 7-17;
ISSN: 1518-1219; link: http://meridiano47.info/2006/12/). Modificado para
apresentação no VII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos (Brasília, 6-
8.11.2007). Republicado In: Rubens A. Barbosa (organizador): Mercosul
revisitado (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2007, 80 p.;
Coleção Cadernos da América Latina; p. 57-75). Ensaio incorporado ao livro:
Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude
(Hartford, 2015). Relação de publicados nº 727.
237
Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas
239
21. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo
A última e definitiva “pá de terra” no caixão do socialismo?
O que aparentemente se apresentou como uma simples medida burocrática de
tipo regulatório – o anúncio realizado no dia 6 de junho de 2002 pelo Departamento do
Comércio dos Estados Unidos, secundado em telefonema dado no mesmo dia pelo
Presidente George W. Bush a seu contraparte da Rússia, Vladimir Putin, tendente a
confirmar o status de “economia de mercado” doravante atribuído ao país formado a
partir do ex-sistema socialista soviético – constitui, na verdade, uma mudança de caráter
histórico e fundamental nas relações internacionais contemporâneas. A partir dessa data,
terminou, de fato e oficialmente, o regime econômico socialista na face do planeta.
Os ainda partidários ou simplesmente saudosistas de uma economia de comando
centralizado, do tipo que existia na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e na
China há cerca de duas décadas, poderão, finalmente, derramar uma lágrima de
crocodilo pela morte, quase sem comemorações, de um regime que, em seus tempos
áureos, cobria dois terços das terras emergidas e igual proporção de seres viventes. A
geração pós-Segunda Guerra deve ainda lembrar-se que o socialismo se apresentava
então como o sucessor natural do capitalismo enquanto organização social de produção
e que, em 1959, sob a liderança do ex-primeiro ministro soviético Nikita Kruschev, ele
prometia enterrar o próprio capitalismo.
Ainda que sem grandes anúncios e funerais, o socialismo, para todos os efeitos
práticos, acaba de morrer, sem discurso e sem coroa. Se fosse o caso de escolher algum
epitáfio tumular, ele poderia levar a seguinte inscrição, para deleite de alguns e o ódio
incontido de vários outros: “Camaradas: o capital venceu”.
De fato, o capital, esse instrumento da exploração do homem pelo homem,
submetido, há um século e meio, ao bisturi intelectual de um cérebro genial como o de
Karl Marx, o vil capital emerge como vitorioso na mais formidável batalha do século
XX: aquela travada numa luta sem tréguas entre opressores e oprimidos, entre
explorados e exploradores, entre burgueses e proletários, entre capitalistas e
assalariados, enfim, entre os portadores do passado e os arautos do futuro. O passado
venceu e o velho e carcomido capital acaba de cravar o último prego no caixão
mortuário do socialismo, sem que disso se tivessem apercebido os velhos comunistas e
os novos socialistas. Marx, que passou toda uma vida percorrendo suas entranhas para
240
desvendar o segredo que explicava a dinâmica do capitalismo – para os não iniciados, o
mistério do capital se encontra no processo de extração da mais-valia –, escreveu o nec
plus ultra desse sistema opressor em 1867, revelando sua mística nesse magnum opus
que é Das Kapital, onde o processo de acumulação é não apenas cientificamente
analisado como devidamente vilipendiado.
A despeito, porém, de sua visão messiânica sobre o fim do capitalismo e sobre a
emergência natural do socialismo no seu seguimento, a morte deste último acaba de ser
anunciada no decreto burocrático desse 6º dia do mês de junho de 2002, exatamente 135
anos depois da primeira edição do Capital. Como e porque isso ocorreu, e que
implicações isso pode ter para a vida econômica moderna e, pessoalmente, para vários
de nós, que ainda acreditamos nas virtudes eventualmente redentoras do socialismo,
essas questões constituem o objeto deste ensaio de análise e de reflexão que de certa
forma se apresenta igualmente como um balanço intelectual e uma extração de lições.
Vejamos, em primeiro lugar e dentro de seu contexto, os fatos singelos que
marcam o que chamei de “fim oficial do socialismo” e que motivam, inclusive num
sentido de “balanço intelectual de uma época”, a análise de cunho marxista que se
pretende oferecer em seguida sobre esse óbito e suas razões profundas.
Uma medida simples, mas altamente simbólica: de volta ao mercado capitalista
No dia 6 de junho de 2002, no mesmo dia em que na Europa – em presença de
vários veteranos americanos – se comemorava mais um aniversário do “dia D”, a data
da invasão da Normandia, em 1944, pelas tropas aliadas ocidentais, desafogando um
pouco a terrível carga militar até então exercida sobre a União Soviética na sua luta de
morte conta a Alemanha nazista, nesse dia simbólico o presidente Bush telefona a seu
colega Putin e anunciava que a partir desse dia os Estados Unidos passavam a
considerar a Rússia como uma “economia de mercado”. Pouco menos de uma semana
antes, a União Europeia tinha tomado atitude similar, respondendo a uma reclamação
legítima das autoridades russas, que viam suas empresas e interesses econômicos serem
tratados de maneira desigual nas disputas e nas concorrências comerciais. O que isto
significava na prática?: medidas antidumping, afastamento de compras governamentais
ou de concorrências públicas, assim como tarifas punitivas ou outras práticas
discriminatórias podiam ser aplicadas contra as empresas russas sem qualquer tipo de
defesa nos foros multilaterais ou mesmo nas instâncias nacionais dos países ocidentais
ou, de forma geral, naqueles membros do GATT-OMC, o Acordo Geral sobre Tarifas
241
Aduaneiras e Comércio, atualmente administrado pela Organização Mundial do
Comércio.
Um exemplo entre outros pode ilustrar o significado prático dessa medida: as
recentes salvaguardas americanas aplicadas de maneira ilegal – do ponto de vista da
legislação pertinente regulada pela OMC – no setor siderúrgico estão penalizando
severamente diversas empresas produtoras de aço da Europa, da Ásia e da América
Latina, inclusive diversas companhias competitivas do Brasil. Ora, a União Européia, a
China, o Japão e a Coréia estão preparando-se para desafiar as salvaguardas dos EUA
na OMC – ao abrigo do acordo pertinente ou no âmbito do sistema de solução de
controvérsias –, podendo mesmo chegar à aplicação de medidas retaliatórias. O Brasil
considera ainda suas opções nessa matéria, algo que a Rússia dificilmente pode fazer
sem o risco de contra-retaliações americanas, uma vez que o país ainda não se tornou
parte contratante do GATT e, como tal, membro da OMC.
A declaração efetuada pelos dois principais atores do sistema multilateral de
comércio abre assim as portas para que a Rússia possa ser aceita na OMC, caminho, é
verdade, mais complicado do que parece para ex-economias socialistas, uma vez que a
China, a outra grande economia socialista convertida ao capitalismo levou pelo menos
14 anos nesse processo, encerrado pouco tempo antes de ser realizada a quinta
conferência ministerial da OMC, em Doha, em novembro de 2001. O que determinou
que a UE e os EUA reconhecessem, dez anos depois do final da Guerra Fria e do
desmantelamento da finada União Soviética, o caráter de “mercado” da atual economia
do velho inimigo socialista? Basicamente o final do controle estatal dos meios de
produção, mas também alguns outros critérios de desempenho considerados market
friendly, como, por exemplo, conversibilidade da moeda russa, a aceitação de
investimentos estrangeiros, práticas salariais compatíveis com uma economia
competitiva e, fundamentalmente, a diminuição do controle governamental nos
negócios. Segundo análise dos organismos multilaterais, o setor privado controla
atualmente cerca de 70% do PIB da Rússia.
O fato de que uma boa parte dessa nova “economia capitalista” na Rússia seja
caracterizada pela corrupção generalizada das práticas empresariais, que o ambiente
legal dos negócios possa ser descrito como “subdesenvolvido” ou que mais da metade
dos dirigentes das empresas privadas seja formada pela antiga nomenklatura do PCUS
reciclada na gestão de ex-empresas estatais vendidas a preços irrisórios, tudo isso não
importa muito do ponto de vista da classificação recém atribuída pela UE e pelos EUA
242
ao sistema econômico da Rússia como um todo: doravante ele será considerado
capitalista, ou pelo menos “de mercado”, e tratado como tal, o que obviamente implica
implica em custos e benefícios igualmente. Por exemplo, haverá, a partir de agora,
menor tolerância dos países ocidentais com medidas governamentais russas que possam
ser assimiladas a subsídios oficiais a empresas privadas, sob risco de suspensão
unilateral do tratamento não discriminatório normalmente abrigado sob a cláusula de
nação-mais-favorecida.
Esclarecido o conteúdo das medidas adotadas nesse início de junho de 2002
pelas principais potências econômicas ocidentais, vamos repetir para que fique bem
claro seu significado histórico: terminou, de fato e oficialmente, o regime econômico
socialista na face do planeta. Ele agora vai resumir-se a um capítulo, se tanto, dos
manuais de história econômica, já que não se poderia utilizar, no caso da Albânia, por
exemplo, o conceito da Unesco de “patrimônio universal” para tentar preservar – como
uma espécie “ameaçada de extinção” – os poucos exemplos remanescentes de
socialismo econômico “real”.
O fato de que duas pequenas economias isoladas – uma numa ilha bem
conhecida no Caribe, a outra num canto recuado da Ásia oriental – continuem a se
proclamar socialistas não apresenta a menor relevância para a economia internacional,
ainda que isso possa ser um elemento político de heterogeneidade no “padrão normal”
do relacionamento entre estados membros da comunidade internacional. Tanto Cuba –
que aliás nunca deixou de ser parte contratante, aliás país fundador, do GATT, tendo
abrigado a famosa conferência econômica sobre comércio e emprego de 1947-48 que
criou uma primeira organização dedicada ao comércio multilateral – como a Coréia do
Norte são absolutamente marginais do ponto de vista das trocas comerciais, dos fluxos
de investimentos e finanças, enfim, do grande intercâmbio capitalista que agora passou
a ser a norma na maior parte do mundo. Mesmo a China ainda formalmente socialista –
de fato ostentando o monopólio político de um partido que insiste em se proclamar
comunista, quando nada mais é senão uma ditadura de oligarcas, herdeiros de um
movimento que restaurou a dignidade do país enquanto nação independente – pratica de
fato um capitalismo de Estado, com imensos setores abertos à economia privada, como
ocorre aliás em muitos outros países integrados ao sistema econômico mundial.
Reduziram-se assim, tremendamente, as últimas terrae incognitae da economia
capitalista internacional, operando-se, na última década, um verdadeiro “fim da
Geografia”, bem mais completo e definitivo, em todo caso, do que o propalado “fim da
243
História” no plano político e social. Em qualquer hipótese, o comunismo, o mais
importante fenômeno da história ideológica contemporânea, terminou por encaminhar-
se ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar, onde
Engels havia também previsto um lugar para o Estado. Que análise marxista de seu
itinerário propriamente econômico pode ser feita a partir daqui?
A longa marcha da Rússia do capitalismo periférico à periferia do capitalismo,
com uma torturada (e tortuosa) transição pelo socialismo
Todos os estudiosos do marxismo-leninismo, mesmo os trotskistas e os
diversos opositores do socialismo de tipo stalinista – mas não necessariamente os
socialistas de inspiração democrata, estilo Segunda Internacional –, tendiam a
compartilhar da ideia de que a ex-União Soviética, até os anos 1960 pelo menos, a
despeito das deformações burocráticas e francamente ditatoriais de seu sistema político
e administrativo, constituía, fundamentalmente, um sistema econômico em transição
para o socialismo, ou até mesmo para o comunismo, como pareciam acreditar, talvez
ingenuamente, os partidários da linha albanesa. O monopólio ideológico das análises do
tipo Terceira Internacional era tão completo, mesmo entre os seus opositores, que
poucos questionavam a natureza desse “socialismo de Estado” e, de fato, poucos
contestavam até mesmo os fundamentos e as premissas conceituais da proposta
bolchevique de um sistema econômico “antimercado”, tal como avançado por Lênin nos
anos tumultuosos de revolução e de guerra civil e por todos considerado como o
sucessor “natural” da economia capitalista.
Este foi, numa análise estritamente marxista, o erro mais grosseiro cometido
por militantes idealistas, forjados nas lutas democráticas em prol da classe operária mas
absolutamente ignorantes na administração econômica da sociedade. Lênin, por
exemplo, era um gênio como líder político, mas um péssimo economista, assim como
Marx podia ter suas qualidades como economista e historiador, mas era francamente
débil enquanto líder político ou administrador de aparatos partidários. O preconceito
contra o mercado simplesmente inviabilizou a primeira economia socialista constituída
sob a liderança formal das idéias marxistas e destruiu por completo as chances de
preservação histórica do “primeiro Estado operário” da humanidade. Como isso foi
possível?
Não creio, pessoalmente, que a responsabilidade principal pelo insucesso
histórico do sistema econômico de tipo soviético esteja com o próprio Marx, ainda que a
244
maior parte das idéias defendidas pelos epígonos remetam a uma ou outra de suas
afirmações contraditórias sobre o funcionamento de um “regime socialista ideal”. O fato
é que foi Lênin, o gênio politico a quem já nos referimos, que conseguiu “inventar”,
num país atrasado como a Rússia czarista, um regime social e político que,
apresentando-se como o “sucessor natural” do capitalismo, passou a servir de exemplo à
Europa e a todo o mundo, na continuidade de uma história ocidental plena de crises
econômicas e de revoluções políticas. A revolução iniciada por ele se congela em
seguida no “socialismo em um único país”, quando Stalin consegue consolidar-se no
poder e apimentar seu leninismo com algumas pitadas de nacionalismo e grandes doses
de brutalidade. Tem assim início a construção de um sistema econômico profundamente
irracional, operando a um enorme custo social e humano, que apenas conseguiu se
manter graças às desventuras econômicas e políticas do próprio capitalismo – crises e
depressões a partir dos anos 20, ascensão dos fascismos, guerras entre impérios – e ao
fascínio intelectual que idéias econômicas estatizantes e a concepção de um Estado
administrador exercia em lideranças importantes do próprio mundo ocidental.
A reconstituição histórica dos setenta anos do itinerário econômico comunista
não deixa de ser, contraditoriamente, uma discussão basicamente política, consistindo
essencialmente numa “história das idéias” (ou das mitologias políticas) do século XX. O
fato é que as idéias políticas – algo que o marxismo reconhece explicitamente – têm
fundamentos essencialmente econômicos. No caso específico do comunismo de tipo
soviético, sua mitologia política – sua “ilusão fundamental”, diria Furet em conhecido
livro de história das idéias socialistas no século XX 17 – foi alimentada não só por sua
promessa de igualdade e de justiça, no plano social, mas sobretudo e principalmente
pela concepção marxista de que um sistema regulado democraticamente pelo conjunto
dos trabalhadores seria mais suscetível do que a “anarquia da produção capitalista” de
afastar crises periódicas e escassez, de aportar abundância material, bem-estar
individual e progresso tecnológico. A premissa básica da mensagem marxiana quanto
ao “fim da história”, dos primeiros escritos da juventude até o Capital, refere-se, antes
de mais nada, à apropriação coletiva dos meios de produção, por iniciativa e sob o
comando da classe operária, transformada em redentora universal: de fato, a abolição da
17 Vide o conhecido livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée
communiste au XXe siècle (Paris: Robert Laffont-Calmann-Lévy, 1995), com edição brasileira.
Minha análise dessa obra está contida na resenha-artigo “A Parábola do Comunismo no Século
XX: a propósito do livro de François Furet: Le Passé d’une Illusion”, publicado na Revista
Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 38, n° 1, janeiro-junho 1995, pp. 125-145).
245
propriedade privada, “mãe de todas as injustiças”, sempre apresentou um formidável
poder de atração para as massas de deserdados de todo o mundo e mesmo para milhões
de proletários de países desenvolvidos.
Não se poderia igualmente esquecer que grande parte das mensagens
simpáticas ao socialismo enquanto sistema de organização social – não apenas
soviético, mas também chinês e “terceiro-mundista”, onde foi o caso – tinha como
fundamento a ideia (falsa, mas isso não importa aqui) de que ele trazia o final das crises
capitalistas de produção e emprego, introduzia um nível de subsistência mínimo para o
conjunto da população e permitiria, progressivamente, liberar excedentes que o fariam
alcançar e em última instância ultrapassar os sistemas capitalistas “realmente
existentes”. As idéias econômicas marxistas sobre uma futura “idade da abundância”,
sobre a racionalidade superior do sistema socialista e em especial as profecias
engelsianas sobre o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um segundo suas
capacidades, a cada um segundo suas necessidades”) alimentaram, em muito, a ilusão
comunista neste século. 18
Essas idéias econômicas, é dispensável dizê-lo, estão escassamente refletidas na
própria obra de Marx, foram insuficientemente desenvolvidas por Engels e alguns
epígonos (como Kautsky, por exemplo) e receberam um tratamento perfunctório, para
não dizer irrisório e irrelevante, no trabalho intelectual de Lênin, todo ele voltado para
as tarefas de organização partidária e de mobilização de vontades em prol de um projeto
supostamente majoritário – bolchevique – mas de fato politicamente minoritário nas
condições revolucionárias da Rússia de 1917. Poucos marxistas gostam de ver na
“grande Revolução de outubro” um mero putsch bolchevique, por acaso bem sucedido
em razão de circunstâncias excepcionais e depois mantido a ferro e a fogo contra seus
inimigos ideológicos e seus opositores práticos.
Em qualquer hipótese, as “idéias econômicas marxistas” não têm nada a ver
com a explicação funcional do “sucesso prático” da idéia comunista no século XX, que
pode ser considerado um fenômeno político totalmente destacado do debate de idéias tal
como ocorrido no Ocidente. Com efeito, desde o final do século XIX, pelo menos, que o
debate em torno das idéias marxistas e socialistas prolongava-se no terreno econômico,
chegando até mesmo a influenciar o curso da economia política “burguesa”. Sem
18 Não é o caso de lembrar aqui que a própria sobrevivência do comunismo, enquanto sistema
viável de organização social da produção, pode apenas ser assegurada, na dicil conjuntura dos
anos 1920-21, por um retorno estratégico às práticas capitalistas de mercado e de apropriação
consagrado na NEP , retorno que Bukarin gostaria de ver consolidado como a única forma
possível de socialismo real.
246
referir-se às primeiras críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John
Stuart Mill ao próprio Marx, caberia lembrar que Vilfredo Pareto dedicou dois alentados
volumes ao estudo dos sistemas socialistas, que Hobson antecipou a análise leninista
sobre a natureza econômica do imperialismo contemporâneo, que Hilferding e Rosa
Luxemburgo terçaram armas em torno do capital financeiro e da acumulação capitalista,
que toda uma “teoria das crises cíclicas” frequentou a produção acadêmica na economia
(de Schumpeter a Keynes, de Joan Robinson e Piero Sraffa a Charles Kindleberg) e que,
ainda no começo dos anos 60, economistas respeitados como John Kenneth Galbraith
ou sociólogos atentos como Raymond Aron pretendiam prever uma certa convergência
entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem ambos os sistemas
chegados a uma etapa industrial avançada.
De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências de planificação sob
a República de Weimar, a própria organização econômica “fascista”, os projetos de
welfare state nos países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações e o
acentuado intervencionismo (com agências estatais dedicadas ao planejamento
indicativo) conduzidos no segundo-pós guerra nos principais países capitalistas
europeus, podem ser considerados como o resultado direto do impacto exercido pelas
idéias econômicas “comunistas” nas sociedades do Ocidente desenvolvido. Da mesma
forma, a industrialização da URSS, a “solução” do problema da fome na China (contra
sua suposta manutenção na Índia “capitalista”), o desenvolvimento “acelerado” dos
países atrasados do Terceiro Mundo, todos esses elementos, reais ou imaginários, da
“grande transformação” da segunda metade do século XX foram, com ou sem razão,
creditados à alavancagem ideológica das idéias econômicas socialistas, ou pelo menos
vinculados à aceitação da inevitabilidade (ou mesmo desejabilidade) de uma maior
intervenção do Estado na economia, em contraposição ao menor poder transformador
ou modernizador das estruturas “capitalistas” de mercado.
Em outras palavras, a legitimação ideológica do comunismo se deu tanto pela
via da economia como da política, em que pese o balanço francamente desfavorável
desse último aspecto na confrontação com o capitalismo (mas, explicável em termos de
guerra civil, de destruições “imperialistas”, de espoliação “colonial” etc), que tanto a
URSS como a China ou outros países menores (Cuba, Vietnã) nunca deixaram de
apresentar, mesmo em comparação com países capitalistas “subdesenvolvidos”. Os
partidos comunistas dos países capitalistas europeus – em especial na Itália e na França
– conseguiram reter uma certa audiência popular mesmo durante os anos de descrédito
247
político do socialismo real com base na antiga crença de que uma “economia
planificada”, ou pelo menos controlada pelo Estado, conseguiria diminuir a sucessão de
“crises capitalistas”, refrear a “exploração capitalista” e introduzir um pouco mais de
igualdade na repartição funcional capital-trabalho. Finalmente, em nosso próprio
continente, a única justificativa – aceita de certo modo pela própria “direita” – para a
ausência completa de liberdades democráticas e até mesmo de certos direitos humanos
na Cuba “socialista” era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais (saúde,
educação, nutrição), continuamente agitados em face das desigualdades e mazelas
sociais existentes nos demais países da região.
Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que aquela derivada da
“paixão revolucionária” que animou gerações inteiras de militantes: a afirmação da
vontade na História, a invenção do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês
(alimentado não tanto por proletários verdadeiros, como por artistas e intelectuais
“burgueses”), a promessa de um novo mundo de justiça social construído pela própria
coletividade redimida pela classe operária, a recusa do individualismo em favor da
liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou um povo particulares como
no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia o “charme universal de Outubro” e que era
considerado como uma herança intelectual e como a realização prática da Revolução
francesa de 1789. O charme muito pouco discreto do socialismo começou aliás a ruir a
partir das revelações de Kruschev no 20º congresso do PCUS, assim como nos
episódios de repressão a movimentos populares na Hungria e na RDA. Quando da
invasão da Tchecoslováquia pelas tropas brejnevistas, em 1968, o pouco de charme que
possuía o socialismo real já tinha se esvanecido na burocracia cinzenta que formava o
núcleo da nomenklatura nos países do leste europeu.
De certo modo, a ilusão econômica do socialismo foi a única a sobreviver à
derrocada do regime político baseado no partido único e na “democracia real” (isto é,
não burguesa, ou formal), este definitivamente enterrado pela superioridade filosófica,
moral e empírica da ideia democrática. Se as idéias movem o mundo, as idéias
econômicas com muito maior razão podem ter a pretensão de continuar a determinar o
curso de nossos destinos individuais e de nossas realizações coletivas. Graças aos
intelectuais marxistas, que sobrevivem em número razoável nos países da periferia
capitalista, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela baseada no papel regulador
e distribuidor do Estado) não parece perto de extinguir-se, mesmo depois de ter sido
bastante maltratada por várias décadas de planejamento centralizado e de “socialismo
248
real”. Em todo caso, para as principais potências econômicas ocidentais, o socialismo
está morto e enterrado, mesmo se a ideia permanece viva nas academias e agrupamentos
políticos de oposição ao “capitalismo real”.
Por que isso se dá, ainda hoje, entre nós, por exemplo? Talvez porque o grande
objetivo do projeto comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto agente social –
objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas de Outubro e seus êmulos em
outras partes – quanto construir um sistema socialista de organização social da produção
em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia eliminar da face da terra. 19
O jacobinismo bolchevique se dirigia, obviamente, contra o “Estado burguês”, mas a
coletivização total dos meios de produção era o elemento essencial da construção da
nova ordem socialista. Era essa a promessa contida no Manifesto Comunista, reafirmada
no programa leninista e ainda confirmada pelo revisionismo krusheviano. 20
Gorbatchev, por sua vez, até o final de sua administração, quando já tinha consentido
em introduzir elementos de mercado no funcionamento econômico do socialismo,
também preservou sua confiança num futuro comunista, isto é, não capitalista, para a
URSS. De certa forma, mesmo o ideólogo do “fim da História” não acreditava que a
derrota política e filosófica do socialismo real significasse automaticamente a derrocada
do modo estatal de produção e menos ainda a erosão do principal Estado socialista na
história da humanidade.
Um historiador marxista como Hobsbawm não deixou porém de considerar,
praticamente em igualdade de condições, os elementos econômicos e políticos do
mundo do “socialismo realmente existente”. A primeira coisa a ser observada a respeito
da região socialista do globo, diz ele em um dos capítulo de sua história do século XX,
“é que durante a maior parte de sua existência ela formou um sub-universo separado e
largamente autossuficiente tanto economicamente como politicamente. Suas relações
com o resto da economia mundial, capitalista ou dominada pelo capitalismo dos países
desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas. Mesmo durante a fase alta do
grande boom do comércio internacional nos Anos Dourados, apenas algo em torno de
4% das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam para as ‘economias
19 Incidentalmente, caberia observar o fato de o comunismo ter vencido apenas em países
atrasados do ponto de vista capitalista, o que em princípio não deveria contribuir para o
“sucesso” ideológico e politico desse regime.
20 Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Krushev prometia ultrapassar a produção
per capita dos Estados Unidos por volta de 1970 e construir uma “sociedade comunista
acabada” em torno de 1980.
249
centralmente planificadas’ e, em torno dos anos 80, a parte das exportações do Terceiro
Mundo dirigidas a elas não era muito maior”. 21
Hobsbawm reconhece que a razão fundamental da separação entre os dois
campos era, sem dúvida alguma política, mas ele desenvolve em seguida uma brilhante
análise da “economia política” do socialismo real, ainda que ele tenda a acreditar,
mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo estalinista, que
“evidenciariam” um crescimento superior ao das economias capitalistas nos anos 30
(“acumulação primitiva socialista”) e durante uma certa fase do pós-guerra. Igualmente,
ele dedica toda a primeira parte de seu capítulo sobre o “fim do socialismo” a uma
análise do “subdesenvolvimento econômico” (a expressão não é dele) desse regime,
mesmo se, mais adiante, ele reconhece, acertadamente, que é a “política, tanto a grande
como a pequena, [que] deveria acarretar o colapso Euro-soviético de 1989-1991”. 22
O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho econômico efetivo dos
socialismos realmente existentes – que poderia ser objeto de uma história econômica do
socialismo – mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das idéias econômicas
na formação e manutenção da “ilusão comunista”. Uma análise de cunho marxista –
ainda que sumária – da crise prolongada e da morte do socialismo não pode, porém,
deixar ao largo os elementos relativamente objetivos da estagnação econômica e da
inviabilidade estrutural do sistema. Mesmo se admitirmos que o socialismo foi vencido
no terreno das “idéias”, deve-se ressaltar que, ainda assim e especificamente neste caso,
as idéias econômicas deveriam ser consideradas como parte integrante da “ilusão
comunista”, como elemento indissociável da mitologia política do socialismo de tipo
soviético.
Análise marxista da ascensão e queda do socialismo
Sem pretender fazer ironias com a História, caberia observar que a crise e a
débâcle do socialismo podem ser interpretadas inteiramente em termos das idéias
marxistas, a fortiori para um adepto da doutrina como o que escreve este ensaio. Com
efeito, ninguém melhor do que Marx – cujos escritos sobre os processos revolucionários
constituem ainda hoje autoridade histórica – sabia colocar com clareza, ainda que de
forma profética, o inexorável desenrolar do processo histórico e social. Como ele
escreveu no Prefácio à Crítica da Economia Política (1859), “numa certa etapa de seu
21 Cf Eric Hobsbawm, Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991 (Londres:
Michael Joseph, 1994), p. 374; o livro possui edição brasileira.
22 Idem, p. 475.
250
desenvolvimento, as forças produtivas de uma sociedade entram em contradição com as
relações de produção existentes, ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade no seio das quais elas se tinham desenvolvidos até então. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações [de produção] se
tornam seus próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução social. A
transformação na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme
superestrutura”. 23
Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo de tipo soviético a
partir do final dos anos 70, muito embora suas sementes existissem desde muito tempo
antes. As razões dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada em termos
“marxistas”, foram as mesmas que, no passado, levaram ao declínio do feudalismo
como “modo de produção”: as relações “socialistas” de produção se tinham
inegavelmente convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das forças
produtivas e ao avanço das condições econômicas de produção. Qualquer marxista não
comprometido com os esquemas de poder existentes na área soviética poderia
reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava, em nível estrutural,
um enorme obstáculo ao avanço contínuo do processo de produção social. 24
De fato, as relações socialistas de produção sempre foram uma forma
contraditória de organização social da produção, uma vez que, segundo a própria
teleologia marxista, a sociedade burguesa não poderia desaparecer – e assim dar lugar
ao socialismo sem que ela pudesse antes desenvolver todas as suas potencialidades
intrínsecas em termos de forças produtivas. Mas, uma vez implementadas essas relações
socialistas de produção – de maneira mais ou menos improvisada no seguimento da
revolução bolchevista –, elas sempre representaram (no vocabulário do próprio Marx)
23 Tradução livre a partir da edição francesa; vide “Contribution à la Critique de l’Économie
Politique” in Karl Marx, Oeuvres, Économie I (Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1965), p. 273.
24 Massimo Salvadori, cuja obra vim a ler apenas depois de elaborada esta reflexão, fez o
mesmo tipo de análise “marxista” sobre a contradição fundamental do comunismo soviético:
“Aplicando ao caso soviético as categorias marxianas, se pode dizer que na União Soviética, a
superestrutura sufocava dali em diante [anos 80] as condições de desenvolvimento da
sociedade, criando uma situação de crise orgânica do sistema. Tornava-se mais e mais
evidente, de fato, que a rigidez planificadora burocrático-centralista, que tinha podido obter
substanciais sucessos no âmbito da modernização tardia baseada na indústria pesada, na cadeia
de montagem, no contrôle autoritário da mão-de-obra, na compressão do consumo em proveito
dos investimentos nos setores considerados estratégicos, em primeiro lugar militares, não
estava estruturalmente em condições de realizar o salto qualitativo indispensável para conduzir
o sistema à era da telemática disseminada e de produções sujeitas à rápida obsolescência e,
portanto, adaptá-lo à necessidade de rápidas reconversões, implementadas por uma pluralidade
de centros de decisão sensíveis às exigências da inovação permanente”; cf. La Parabola del
Comunismo (Bari: Laterza, 1995), p. 56.
251
“uma forma antagônica do processo de produção social, não no sentido de um
antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de
existência dos indivíduos”. 25
Segundo os próprios termos da análise histórica marxista, seria portanto
inevitável esperar o deslanchar de uma etapa revolucionária no desenvolvimento do
socialismo, uma vez que a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde
o final da estagnação “brejnevista”, estava conduzindo a um impasse, ele mesmo
anunciador de uma mudança radical em toda a superestrutura jurídica e política da
sociedade socialista. Era assim muito provável que, ao iniciar seu período de
“reformismo esclarecido”, Gorbachev tenha chegado à conclusão que a base técnica do
sistema socialista, enquanto forma de organização social da produção, fosse
essencialmente conservadora, uma vez que, ao contrário do sistema capitalista, não
possuía em si mesma os impulsos para uma contínua transformação das condições de
produção.
Gorbachev, aparentemente em bom marxista, admitiu-o abertamente: antes
mesmo de assumir a liderança do PCUS, em dezembro de 1984, ele advertia que a
injustificada preservação de “elementos obsoletos nas relações de produção pode
ocasionar uma deterioração da situação econômica e social”. Em junho de 1985, já
como Secretário-Geral do PCUS, ele declarava que “a aceleração do progresso
científico e técnico requeria insistentemente uma profunda reorganização do sistema de
planejamento e de administração do mecanismo econômico em sua totalidade”. 26 O que
Gorbachev pretendia implementar era uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem
mais complicado, deve-se reconhecer, que as banalidades conceituais em torno do
modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o “socialismo mais a
eletricidade”.
Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer aquele socialismo tomar
o ”carro da História” a partir das relações de produção existentes: não só a “base
técnica” do socialismo estatal, nos termos de Marx, era essencialmente conservadora,
como também sua base social e política era profundamente reacionária. A União
Soviética parecia representar para Gorbachev o que a Alemanha guilhermina
representava para Marx no século passado: um país atrasado e dividido que tinha
25 Cf. “Contribution à la Critique de l’Économie Politique”, op. cit., p. 274.
26 Citado por Francis Fukuyama, “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol. 64, n°
4, Spring 1986, pp. 715-731).
252
necessariamente de passar por uma revolução política radical para quebrar os grilhões
que impediam sua modernização econômica e social.
Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se-ia dizer que as relações
socialistas de produção e a classe burocrática associada ao Partido Comunista
representavam, na maior parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o
sistema corporativo e a classe aristocrática desempenhavam no ancien régime de tipo
feudal: um obstáculo intransponível ao desenvolvimento das forças produtivas materiais
e um entrave formidável ao progresso político da sociedade. Como afirmaram Marx e
Engels no Manifesto Comunista: “numa certa etapa do desenvolvimento dos meios de
produção e de troca... as relações feudais de propriedade deixaram de corresponder às
forças produtivas em pleno crescimento. Elas entravavam a produção em lugar de fazê-
la avançar. Elas se transformaram em grilhões. Esses grilhões tinham de ser quebrados:
eles foram quebrados”. 27
No que concerne as relações socialistas de propriedade, esses grilhões foram
efetivamente rompidos nos países da antiga área soviética, muito embora o processo de
construção da nova ordem foi lento a ser implementado, em especial na própria pátria
do socialismo real. Em suas manifestações e desenvolvimento, o processo de ruptura
com o ancien régime foi, evidentemente, político, e não poderia deixar de ser
exclusivamente político, como observaram acertadamente Furet e Hobsbawm. 28 Mas,
as razões profundas da crise e derrocada do sistema foram essencialmente marxistas,
isto é, econômicas.
O ponto de não retorno, escreve ironicamente Hobsbawm, foi atingido na
segunda metade de 1989, bicentenário do deslanchar da Revolução francesa, “cuja não
existência ou irrelevância para a política do século XX, os historiadores franceses
‘revisionistas’ estavam ocupados em tentar demonstrar naquele momento. A ruptura
27 Tradução livre a partir da edição da Pléiade; vide “Le Manifeste Communiste” in Karl Marx,
Oeuvres I: Économie, op. cit., p. 166. Realizei uma releitura moderna do “velho” Manifesto de
1848 em ensaio feito exatamente 150 anos de sua publicação, elaborado a partir de uma
“revisão marxista” desse texto ainda profundamente atual, como se o próprio Marx tivesse
reescrito o Manifesto nesta era de globalização. Ambos os textos figuram em meu livro: Velhos
e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 1999).
28 Hobsbawm, por sua parte, combina elementos políticos e econômicos em sua análise sobre a
queda final do comunismo: “O que levou a União Soviética em marcha acelerada em direção
ao precipício foi a combinação da glasnost, que significava a desintegração da autoridade, com
a perestroika, que resultou na destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia
funcionar, sem prever nenhuma alternativa; e consequentemente o colapso crescentemente
dramático do padrão de vida dos cidadãos”; “A desintegração econômica ajudou o progresso da
desintegração política e foi alimentada por ela”; op. cit., pp. 483 e 485.
253
política seguiu-se (como na França do século XVIII) à convocação de novas
assembleias democráticas, ou passavelmente democráticas, no verão daquele ano. A
ruptura econômica tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses cruciais
entre outubro de 1989 e maio de 1990”. 29
Assim, se a crise política era evidente nos antigos países do socialismo real,
foram razões estruturais de natureza essencialmente, senão inteiramente, econômica que
levaram à crise fundamental, à sua fratura irremediável e à queda final do sistema. Um
pouco de materialismo histórico, por uma vez, não pode fazer mal à causa do
socialismo, ou pelo menos à da análise histórica de sua derrocada final.
A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de um modo de
produção a um outro. Para chegar a um verdadeiro sistema econômico de mercado, na
antiga zona soviética, só faltava atravessar o que Marx chamava de purgatório
capitalista. Esse purgatório foi atravessado num longo ciclo de depressão econômica ao
longo da última década do século XX, o que foi reconhecido no decreto burocrático do
dia 6 de junho de 2002. O comunismo chegou efetivamente ao final de sua longa
parábola histórica: ele terá constituído, finalmente, uma longa etapa de transição que
levou do capitalismo ao... capitalismo.
Post scriptum: Após o término deste ensaio, ocorreu a reunião do G-7/G-8 em
Kananaskis, no Canadá, durante a qual Rússia foi contemplada com um assento
permanente no que passa agora – até a próxima incorporação – a ser conhecido
simplesmente como G-8, o que confirma, de certo modo, a plena integração da
ex-economia socialista no pelotão de “países normais”, no caso membro do
“diretório mundial dos mais iguais”. Parece óbvio, também, que a Rússia, ainda
incapaz de participar dos esquemas de sustentação financeira promovidos pelo
Grupo e beneficiária ela mesma de ajuda maciça desses países (para liberar-se de
estoques de armas de destruição em massa, por exemplo) ainda tem de
demonstrar várias outras transformações econômicas e políticas para se
credenciar plenamente como país avançado de “economia de mercado” e
democrático – como a aceitação na OMC e na OCDE – mas a decisão tomada
29 Hobsbawm, op. cit., p. 486. Salvadori também faz uma análise similar: “O sistema [já sob a
direção de Gorbachev] demonstrou não ser renovável por causa de sua rigidez; e o movimento
de reforma, que investiu a economia e as instituições políticas, teve efeitos destabilizadores, de
tal forma a romper a máquina existente e provocar um verdadeiro processo de ‘descolamento’.
O primeiro resultado foi o precipitar da crise econômica, que em 1990 assume o caráter de
catástrofe”. “O sistema... desagregou-se sob o peso de dois elementos fundamentais, um ligado
ao outro. O primeiro foi a incapacidade estrutural de um sistema centralístico-burocrático-
totalitário (...) em responder aos desafios colocados pela economia complexa do mundo
capitalista entrado na era pós-industrial. O segundo foi a incapacidade final do sistema de
poder comunista em controlar, seja pelo consenso, seja pela coerção, a sociedade, colocada sob
um domínio brutal...”; cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., pp. 57 e 91.
254
pelo G-7 em Kananaskis apenas confirma o caráter finalmente capitalista da
primeira potência europeia (e asiática).
907. “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Washington, 12 de junho de
2002, 16 p. Ensaio sobre a crise e a derrocada do modo de produção socialista, a
partir de decisão tomada em 06/06/2002, por EUA e UE, de reconhecer na Rússia
uma “economia de mercado”. Revisto em 01/07/2002, para agregar nota sobre
aceitação plena da Rússia no G-8. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. II,
n. 14, jul. 2002; http://www.espacoacademico.com.br/014/14pra.htm) e no
boletim Meridiano 47 (Brasília: n. 25, ago. 2002, p. 1-11; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_25.pdf). Incorporado ao livro A Grande Mudança:
consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex
Editora, 2003). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47:
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de
Publicados n. 341, 344, 355 e 401.
255
22. A China e seus interesses nacionais: reflexões histórico-sociológicas
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de qualquer outro
tipo. A China é, para todos os efeitos, o seu próprio e único parceiro; ela quer continuar
assim e acha que se basta a si mesma. Talvez ela tenha razão.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos contextos
regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento
econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de homens e
de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores sem controle de
ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente. Esse processo continua e deve
continuar a ocorrer do mesmo jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que
ela pode “mobilizar” recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias, teve um
mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia weberiana” e se tornou a
maior economia planetária com base numa espécie de entropia míope. Mas até o século
18, pelo menos, ela continuou a ser a maior economia planetária, não tanto pelas
interações (que eram poucas), mas pela sua própria “massa atômica”. Quanto ela deixou
de ter idéias, ou quando as idéias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas
em canhoneiras, ela foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a
autoestima e o orgulho nacionais dos chineses.
Os chineses conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que
contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China), reverter a
decadência e tomar novamente seu destino em mãos. Não tem a mínima importância
histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha sido feita sob o domínio do
comunismo, um modo de produção absolutamente “passageiro” na história milenar da
China. Com comunismo ou com o socialismo de mercado, o novo mandarinato de
burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino
secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e ditar
suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica no
planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais imperadores e
mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso isoladamente, como
ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram. A China assumiu
256
plenamente o conceito de interdependência econômica global, mas como ocorre com o
famoso moto orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais
interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é, acomodando-se a
regras às quais ela não mais pode se furtar, mas interpretando-as à sua maneira, e
distorcendo-as para seu melhor conforto e segurança. Isto se aplica em quase todos os
terrenos de interesse substantivo, mas especialmente às regras de comércio internacional
e de investimentos estrangeiros. A China não pretende à dominação do mundo, mas ela
não pretende mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais.
Isso não vai ocorrer e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não
quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas
superpotências, mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses é
assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que podem,
à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência, perturbar a paz no
Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos atuais dirigentes. Etapa
importante nesse processo é transformar a China na principal fábrica planetária, aliás a
única maneira de acomodar algo como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de
emprego (e que não os terão nem na agricultura nem nos serviços).
Como ela pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo
manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China “precisa”
destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de sobrevivência de
algumas dezenas, talvez centenas de milhões desses chineses “flutuantes”. Por
coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi assignada, atualmente, pela
globalização capitalista, um processo impessoal, não controlado por nenhum país ou
conjunto de corporações, mas que corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação
de investimentos e de organização espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital (com
alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência
básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição
de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou
seja, pela próximo meio século). A China está ascendendo rapidamente na escala de
agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas,
mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa,
257
tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais
impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá nada
comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os centros da
economia mundial: organizando sua própria periferia de “abastecimento”, que ela
espera poder controlar da forma como fazem os imperialismos modernos: não pela via
extrativista, mas por redes de negócios centrados em circuitos financeiros próprios,
chineses. A China vê o Brasil como o abastecedor prioritário de produtos alimentícios e
de outras commodities para sua gigantesca máquina industrial. Ela também pretende
inundar o Brasil (e já o está fazendo) de produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria tradicional, isto
é, aquela da segunda revolução industrial: ele será fragorosamente batido, como estão
sendo todas as demais potências industriais. As indústrias brasileiras, se desejarem
sobreviver no mundo manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras:
avançar na concepção e desenho e mandar fabricar na China. Só assim elas conseguirão
sobreviver enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os
operários e sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto
melhor para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista
chinês.
Alguma renda extra será possível obter nos projetos conjuntos de fornecimento
energético alternativo e nos produtos intensivos em recursos naturais, como corresponde
às vocações ricardianas do Brasil. Países como o Brasil não devem alimentar grandes
“planos estratégicos” em relação à China: a China fará aquilo que ela pretende fazer,
segundo o seu interesse nacional, e não se deixará demover por nenhuma promessa de
“aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente
simétricos. Melhor fazer o que corresponde ao interesse nacional, sem esperar resposta
ou gestos correspondentes de parceiros como a China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve
alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela atrapalha os
desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência
setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua um exercício útil do
ponto de vista do cenário serial killer que virá mais adiante, quando a China for
plenamente integrada ao regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015). A concessão
desse status representou apenas uma antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no
258
terreno econômico. Ela obriga as empresas brasileiras a correrem um pouco mais
rápido, o que talvez não seja mau, pois elas estavam se acostumando com muita
proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.
1443. “A China e seus interesses nacionais: algumas reflexões histórico-sociológicas”,
Brasília, 20 de junho de 2005, 4 p. Reelaboração do trabalho 1430. Publicado no
Colunas de Relnet (Brasília: Relnet, n. 11, jan./jun. 2005); no Meridiano 47
(Brasília: IBRI, n. 59, jun. 2005, p. 10-12; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_59.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 568 e 573.
259
23. Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial
Uma pequena, mas necessária, introdução
Vou propor algumas teses simples e diretas sobre o papel dos EUA no atual
cenário da segurança internacional. Antes, contudo, preciso adiantar que parto de uma
premissa fundamental para a discussão dessa questão e para meus propósitos
explicativos: a segurança estratégica de um país tão “aroniano” e tão “westfaliano”
como os EUA, não pode ser diferenciada ou separada das demais condições econômicas
e ambientais que se traduzem em segurança para os negócios e para a vida dos seus
cidadãos, o que significa a manutenção de um ambiente competitivo, externa e
internamente, aberto aos méritos privados e às capacidades individuais, o que
corresponde, exatamente, ao que são, em sua essência fundamental, os EUA.
Para resumir o sentido geral dos argumentos contidos neste texto, eu diria,
retomando o subtítulo deste ensaio, que os EUA configuram, no contexto internacional
atual, duas características básicas: um poder aroniano e um Estado westfaliano. A noção
aroniana remete, obviamente, às raízes do pensamento do grande cientista social
francês, Raymond Aron, em especial a seus estudos sobre a guerra e a paz. Já o adjetivo
histórico westfaliano se refere aos esquemas de reconhecimento recíproco da soberania
exclusiva e excludente dos Estados-nações partícipes de um sistema de relações
internacionais.
De uma parte, os EUA são um poder aroniano por excelência, ou seja, um
Estado que soube, melhor do que qualquer outro, no concerto de nações, conjugar e
combinar os dois vetores essenciais de qualquer capacidade de projeção internacional.
Esses vetores são constituídos, de um lado, por uma presença dilatada e ativa nos mais
diversos foros e cenários abertos à sua diplomacia e, de outro, por uma poderosa
ferramenta de afirmação do seu poder primário, isto é, sua força militar, que permanece
incontrastável desde um século aproximadamente. O diplomata e o soldado, ainda que o
primeiro apareça como bem menos eficiente do que o segundo, são os instrumentos
sempre presentes da afirmação internacional ímpar desse hegemon relutante, desse
decisor incontornável, de última instância, nos assuntos de segurança internacional e
desse árbitro unilateral, por vezes arrogante, das questões de segurança de outros países,
incapazes, por sua própria vontade e poder, de dirimir certas contendas ou de afastar
certas ameaças.
260
De outra parte, os EUA constituem também um Estado radicalmente
westfaliano, no sentido em que eles serão, provavelmente, a última nação do planeta
disposta a ceder soberania a qualquer entidade intergovernamental, internacional ou
supranacional que possa ser chamada a exercer, pela evolução natural ou dirigida do
direito internacional, competências reguladoras ou decisoras infringindo o mandato
original conferido ao seu congresso, vale dizer, ao povo dos EUA. Contrastando com
outras nações, da Ásia do Sul à América Latina, passando sobretudo pela Europa, mas
também pelo Oriente Médio e pela África, que consentem em renunciar, por vezes
alegremente, à sua soberania – em políticas macro e setoriais, em questões monetárias e
até em matéria de defesa –, os EUA não são sequer relutantes quanto a isso: eles
simplesmente não cogitam em colocar qualquer aspecto de sua soberania exclusiva,
política, econômica e a fortiori militar, nas mãos de qualquer outro poder político que
não seja o seu próprio Congresso e, em última instância, o seu povo. A China talvez
possa ser um Estado tão “westfaliano” quanto os EUA, mas ela é muito pouco aroniana
em sua natureza profunda e em seu modo de ser.
Em suma, estamos falando, no caso dos EUA, de uma democracia irredutível e
indivisível, isto é, não solúvel nas águas do direito internacional e não fracionável em
partes menores. Dito isto, vejamos, em primeiro lugar, quais seriam as minhas poucas
teses, simples, sobre a natureza essencial do poder dos EUA, para depois examinar,
numa segunda etapa, seu papel na segurança internacional.
As entranhas do monstro imperial (nem tão monstro, nem tão imperial assim)
1) Os EUA não são um império, no sentido formal da palavra.
Um império é, basicamente, um sistema extrator de recursos por meio da
coerção, o que não ocorre no caso dos EUA, que estão comprometidos com valores e
princípios condizentes com a liberdade de mercados e as franquias políticas
democráticas. Qualquer afirmação em contrário teria de comprovar que as ditaduras que
os EUA apoiaram em várias partes do mundo, na era da Guerra Fria, foram obras
construídas consciente e deliberadamente pelos EUA para assegurar um tipo qualquer
de extração de recursos por via da coerção militar.
2) Mesmo que os EUA se conformassem ao (e se aproximassem do) modelo histórico
dos impérios, eles constituiriam um império de novo tipo, não diretamente
261
interessados na construção de um poder hegemônico incontrastável e incontestável,
como os impérios “extratores” do passado.
Eles estão, sim, interessados em garantir, em primeiro lugar e quase que
exclusivamente, a sua própria segurança e, em segundo lugar, em criar as condições
para que essa segurança se expresse, não em termos diretamente militares, mas sim em
termos econômicos, comerciais e financeiros, ou até em bens intangíveis, como são os
valores da democracia, da livre iniciativa e da liberdade individual.
3) A única hegemonia na qual os EUA estão legitimamente interessados é a hegemonia
do livre-comércio.
Em outros termos, os EUA estão interessados em um sistema de portas abertas
no qual não subsistam restrições, ou que elas sejam muito poucas e não-
discriminatórias, à atuação de suas empresas nas diversas frentes dos intercâmbios
humanos e sociais que possam, de fato, estar (e ficar) abertos à criatividade de suas
empresas e cidadãos.
4) Nesse sistema de portas abertas, a única “ditadura” suscetível de ser criada pela
hegemonia dos EUA é aquela que destrói todas as ditaduras.
Estas são as bases indiscutíveis do “império” americano: a livre circulação de
fatores de produção e de produtos da inteligência e da criatividade humanas. Esse é um
sistema destruidor de todas as hegemonias conhecidas historicamente. Mas quem
destrói todas as velhas hegemonias não é o poder comercial ou econômico dos EUA, e
sim a força das suas idéias, idéias tão simples como as que venho expondo aqui.
5) Nos últimos dois séculos de sua existência enquanto nação independente, os EUA
exerceram, inquestionavelmente, um papel eminentemente positivo na história da
humanidade.
Isto se deu tanto em termos de liberdade econômica como no terreno das
franquias democráticas e dos direitos humanos, não necessariamente porque os
americanos são mais virtuosos do que outros povos, mas pela configuração específica
de sua “civilização”. Seus valores básicos confundem-se com os do racionalismo
iluminista, embora eles sejam extremamente confusos e contraditórios na hora de
aplicá-los na prática, fruto de um regime de extrema liberdade individual, o que redunda
eventualmente em disfunções localizadas.
262
6) Os EUA são uma nação westfaliana, no sentido clássico da palavra, mas de âmbito
universalista.
Em outros termos, eles acreditam na soberania nacional, que no seu sistema
nacional se confunde com a soberania popular, e não estão – e não estarão nunca –
dispostos a renunciar a essa soberania em nome de qualquer sistema que se proponha
administrar coletivamente a liberdade. Os EUA acreditam que a liberdade não precisa
de administração centralizada, aliás, ela não necessita sequer de administração: a
liberdade é, ou existe, ponto. Seu universalismo consiste em propor que todos os países
vivam nas mesmas bases de soberania igualitária, que é a soberania da convivência
pacífica tendo como única postura “agressiva” a competição comercial, ou seja, a
conquista pelos méritos do que cada um tem ou pode oferecer de melhor.
7) O westfalianismo americano não se coaduna com nenhum projeto integracionista,
apenas com acordos de livre comércio, de implementação dos direitos de
propriedade e com garantias de promoção e proteção de investimentos.
Trata-se de uma integração “light”, compatível, filosoficamente, com o exercício
das liberdades individuais nos demais planos da vida social. Os Estados Unidos são,
ademais de westfalianos e aronianos, schumpeterianos, isto é, a favor da “destruição
criativa”, o que significa uma constante remise en cause, ou contestação, das condições
estabelecidas. Seu sistema econômico e social funciona com base no mérito, o que
implica uma constante luta pelo sucesso, sobretudo de tipo econômico. É o que os
economistas chamam de “market contestability”, aquilo que pode ser testado e
contestado num sistema que funcione sem barreiras à entrada. Daí a desconfiança de
princípio, histórica, dos EUA pelos esquemas preferenciais, tendência apenas revertida
nas últimas duas décadas em favor de um minilateralismo de ocasião, em face das
tendências regionalistas e da relutância dos muitos membros da OMC em se engajar
num desmantelamento comercial verdadeiramente multilateral.
8) Os valores essenciais da vida política, econômica e social americana – democracia,
liberdade, representação, império da lei, iniciativa individual e recompensa pelos
méritos – não são exportáveis.
Não obstante, grande parte dos americanos, provavelmente a maioria, acredita
sinceramente que os EUA são o farol da liberdade e que, como tal, deveriam levar esses
263
valores a outros povos e nações. Daí um inevitável pêndulo entre duas posturas
recorrentes, o isolacionismo e o envolvimento, que agitam de forma ambígua a história
internacional dos EUA no último século e meio, aproximadamente.
Aceitas, ou pelo menos propostas, estas simples teses sobre a posição dos EUA
no plano mundial, venho agora à questão do seu papel na segurança internacional.
Disponho, igualmente, de algumas outras breves teses sobre essa questão, que não
pretendo elaborar substantivamente ou discorrer longamente sobre elas, basicamente
por razões de espaço, mas acredito que elas sejam suficientemente explícitas para se
justificarem a si mesmas. Vejamos, portanto, minhas “teses” sobre o papel dos EUA na
segurança internacional.
Nem Ialta, nem Tordesilhas; apenas Westfália (e um pouco de Viena e Versalhes)
9) Os EUA não se ocupam, nem pretenderiam se ocupar, da segurança mundial: eles se
ocupam de sua própria segurança nacional e a de seus cidadãos e empresas, ponto.
A despeito do fato que alguns intelectuais apreciem racionalizar os impulsos de
política internacional dos EUA como divididos ambiguamente, entre, de um lado, um
idealismo de tipo wilsoniano, e portanto engajados nos assuntos do mundo, e de outro,
um realismo de extração bem jacksoniana, e portanto determinados a atender única e
exclusivamente o seu próprio interesse nacional, a verdade é que os EUA não
pretendem, por vontade própria, se imiscuir nos assuntos dos demais países, nem
desejariam se ligar a outros países em esquemas permanentes de coordenação ou aliança
militar.
Os EUA acreditam que se bastam a si próprios e pretenderiam manter-se nessa
situação, não fosse pelos apelos que lhes são feitos ou pelas demandas de ação externa
que emergem inevitavelmente de um mundo complexo e constantemente agitado por
ameaças latentes e recorrentes à segurança nacional americana. Os europeus, que
viveram décadas sob a proteção do guarda-chuva nuclear americano, e deixaram de
investir em sua própria segurança (e nem têm o desejo de fazê-lo), são os primeiros a
chamar os EUA to the rescue quando eles têm de enfrentar alguns problemas em seu
próprio jardim (como nos Bálcãs, por exemplo).
10) Os EUA não estão interessados em impulsionar nenhum esquema multilateral de
segurança estratégica, de tipo onusiano ou outro, que consistiria em armar forças de
264
intervenção que possam, de alguma forma, interferir com os seus próprios esquemas
domésticos de segurança e de defesa nacional. Nisso, eles são westfalianos radicais.
Não há nenhuma chance, no futuro previsível, que os EUA venham a concordar
com a implementação prática do que está estipulado no artigo 47 da Carta da ONU,
relativo ao estabelecimento de um Comitê de Estado Maior para assessorar e assistir o
Conselho de Segurança em todas as questões relativas às necessidades militares do
CSNU, inclusive quanto ao emprego e comando de forças colocadas à disposição desse
Comitê. Os EUA nunca permitirão que tropas americanas, ou quaisquer forças suas,
sirvam sob comando alheio, ainda que este seja formalmente da ONU, em situações que
digam diretamente respeito à segurança e à defesa dos interesses dos EUA.
11) Os EUA podem, eventualmente, vir a integrar-se a, de preferência liderando,
esforços multilaterais que digam respeito à segurança de outros países – e,
indiretamente, à sua própria – desde que percebam eventuais ameaças como
suficientemente credíveis e suscetíveis de afetar, no plano colateral, a segurança de
seus cidadãos e empresas em territórios estrangeiros.
Em outros termos: forças americanas não são solúveis em qualquer “líquido” ou
recipiente estranho à própria vontade do povo dos EUA, materializado em seu
Congresso e na autoridade executiva, na pessoa do presidente. Não há hipótese de
soldados americanos servirem sob qualquer outro comando que não os de seu próprio
país. Não se trata aqui de isolacionismo; trata-se, simplesmente, de exercício de
soberania plena, ou seja, irrenunciável.
12) Os EUA mantêm, como regra de princípio, a decisão política de antepor-se e
mesmo de sobrepor-se a qualquer outro poder, no plano da dissuasão e do balanço
de forças, e de antecipar qualquer desafio estratégico, tendo estabelecido, para si
mesmos, a postura de conservar uma supremacia estratégica clara e certa sobre
qualquer outro poder exterior, amigo ou desafiante, sendo totalmente indiferentes
quanto à natureza política ou ideológica desse suposto contendor.
Isto significa que, independentemente do fato de disporem de supostos aliados
estratégicos no âmbito da OTAN, ou indiferentes à situação de que contendores possam
emergir de países hostis ao modo de vida americano – quer seja a antiga União
Soviética ou a China atual –, os EUA sempre estarão dois ou três passos, pelo menos, à
frente de possíveis poderes desafiantes. Esta atitude de dissuasão total e absoluta se
265
aplica a todo e qualquer tipo de cenário estratégico e a toda a panóplia das ferramentas
militares. Desse ponto de vista, a velha Europa da OTAN reduzida – a da Alemanha
ocupada dos tempos da Guerra Fria – não se distinguia em absoluto da União Soviética
inimiga: ambas tinhas de ser mantidas em estado de inferioridade estratégica, o que
implicava, obviamente, um crescimento contínuo da capacidade ofensiva dos EUA. O
mesmo pode ser dito dos dias atuais, aplicando esses princípios à OTAN ampliada, à
nova Rússia, à velha China ou a qualquer outro Estado, vilão ou amigo. Não se trata,
cabe deixar claro, de uma atitude belicista, mas tão simplesmente, de um seguro militar
preventivo. A preeminência estratégica é a própria alma do sistema de segurança
nacional americano.
13) A segurança nacional americana não é concebida em termos exclusivamente ou
mesmo essencialmente militares e nisso os EUA são perfeitamente aronianos. Eles
integram, mais do que o soldado e o diplomata, também o cientista e o empresário
em seus cálculos de preeminência estratégica.
Na base desse sistema integrado de defesa nacional, que vai da concepção
original à implementação prática dos princípios de segurança estratégica, encontra-se
um conceito de organização social da produção que é propriamente marxista ou
marxiano, pelo menos alegoricamente, em seu desenho e expressão: os EUA
conceberam e desenvolveram um “modo inventivo de produção” que não encontra
paralelo na história econômica mundial. Trata-se da mais perfeita máquina de produzir
inovações, de qualquer tipo, inclusive as militares, que se conhece no sistema
planetário. Se houvesse um “prêmio Nobel” para a defesa, ou para a guerra, os EUA
também se situariam entre os primeiros contemplados, como ocorre, aliás, nos demais
campos, com a possível exceção (ainda) das humanidades, ou seja, da literatura. Não se
trata de uma máquina exclusivamente americana, pois ela integra cérebros de todas as
partes do mundo, se trata apenas de uma máquina “made in USA”, como ocorre, aliás,
nos prêmios Nobel da área científica.
14) Os EUA não parecem dispostos a colocar todo o seu potencial à disposição do
resto do mundo e provavelmente nunca o farão.
Eles se contentam em fazer com que o resto do mundo seja um lugar não
suficientemente ameaçador do ponto de vista dos interesses nacionais americanos. Ao
garantir essa situação, os EUA estão contribuindo, de forma indireta, para a segurança
266
do planeta, ao impedir a emergência de forças contestadoras da supremacia militar e
estratégica americana.
Se os EUA são “the world’s cop”, isto é, os policiais do mundo, eles têm de agir
e se comportar, efetivamente, como o “porrete de última instância”, ou seja, como
aquele poder acima do qual nenhum outro prevalece ou se mantém. Não se trata de uma
atitude arrogante, imperial ou unilateral, como pensam muitos; apenas de um
comportamento que é a própria essência do ser americano: não há poderes acima do
xerife da aldeia.
15) Os EUA não precisam de aliados ou parceiros militares, eles apenas desejam
países que paguem a conta das operações militares ou de manutenção da paz que
não sejam aquelas estritamente vinculadas à defesa do território americano ou da
segurança de suas empresas e cidadãos.
O conceito de “burden sharing”, no plano da ONU e das operações onusianas de
imposição e de manutenção da paz, aplica-se exclusivamente no plano político e a
esferas externas à segurança nacional americana. Ou seja, o compartilhamento de
tarefas no plano da defesa e da segurança internacionais se referem a cenários
estratégicos que se situam todos fora do território americano, apenas interagindo com
esquemas nacionais de defesa na medida em que cenários estratégicos situados em
outras latitudes e longitudes tenham ou exerçam algum tipo de impacto na segurança
nacional americana.
Foi exclusivamente em função do “burden sharing” que os EUA patrocinaram,
numa primeira fase, as candidaturas da Alemanha e do Japão a uma cadeira permanente
no Conselho de Segurança da ONU, isso ainda nos anos 1980. Com o passar dos anos,
com o emasculamento da Rússia e a diluição da grande Alemanha no conjunto
puramente hedonista da União Européia, os EUA deixaram de patrocinar o ingresso da
Alemanha nesse foro restrito dos “mais iguais”, preferindo, por razões puramente
estratégicas – e não mais de ordem orçamentária, como era o caso na fase de
keynesianismo militar da era Reagan –, promover a ascensão do Japão e da Índia em tal
foro.
16) O conceito, a construção e a operacionalização prática da OTAN de forma
nenhuma implicam em qualquer tipo de multilateralismo securitário ou estratégico
da parte dos EUA.
267
A OTAN é simplesmente um braço armado dos EUA para determinadas tarefas
e funções específicas, uma das muitas ferramentas utilizadas, ao longo do seu processo
de afirmação imperial, para ampliar sua capacidade de projeção externa, no plano
militar e diplomático, e para contribuir à manutenção de uma mesma concepção
civilizatória geral, no plano dos valores e dos princípios de organização econômica e
social.
A OTAN não deve ser vista apenas como uma aliança militar dotada de um
conceito puramente defensivo – a proteção do Ocidente contra a ameaça militar
soviética, de acordo com a doutrina do containment, inspirada por George Kennan –
mas também como uma esfera de liberdade política e econômica, não necessariamente
no sentido mais puro da palavra, como os exemplos de Portugal salazarista e da Turquia
semi-capitalista podem comprovar. Com esses flancos garantidos, a Espanha franquista
era dispensável, mas se ela, por acaso, fosse estrategicamente relevante, também teria
sido integrada ao baluarte da democracia.
17) A OTAN não foi vitoriosamente militarmente: ela apenas cumpriu uma função
defensiva, dissuasiva, de treinamento e de enquadramento dos países subordinados,
sem mencionar o lado da demanda por equipamentos militares, que também faz
parte do supply-side economics da indústria americana.
A URSS manteve, na maior parte do tempo, uma capacidade ofensiva superior
em forças de terreno, e talvez mesmo no terreno dos dispositivos nucleares. Ela
tampouco foi “esgotada” pela competição armamentista, mas estiolou-se a si mesma. A
URSS perdeu a competição em meias de nylon, não em equipamentos militares, ela
implodiu, por sua própria incapacidade produtiva, por manter um sistema que não podia
simplesmente funcionar. Mas isso já estava previsto desde 1919 pelo economista
austríaco Ludwig Von Mises, que demonstrou logicamente a impossibilidade de cálculo
econômico e, portanto, de funcionamento do processo produtivo, numa economia
socialista.
18) A OTAN assumiu, desde a derrocada (não derrota) do socialismo, funções bem
mais abrangentes do que eram as suas no período da Guerra Fria. Isso não tem
muita importância do ponto de vista americano, uma vez que ela é acessória à sua
própria segurança nacional.
268
A OTAN cumpre funções subsidiárias nos esquemas americanos de defesa,
ainda que ela seja, hoje, algo bem mais amplo do que a coordenação de esquemas
militares, uma espécie de ferramenta polivalente, numa palavra, um canivete suíço com
administrador europeu e manipulador americano. Seu novo mandato lhe dá poderes para
intervir praticamente em todos os assuntos, da luta contra as agressões ao meio
ambiente e as violações aos direitos humanos à defesa da democracia e da paz, num
cenário que há muito extravasou o Atlântico Norte, alcançando praticamente todo o
mundo (com a exceção do universo, isto é, do espaço exterior, que permanece
“americano”).
19) A OTAN e, de certa forma, também os EUA não parecem estar preparados para as
novas ameaças, mais difusas do que claramente identificadas, ainda que o inimigo
tenha contornos muito nítidos: trata-se do fundamentalismo islâmico.
A OTAN estava teoricamente preparada para combater um inimigo claramente
identificado, com divisões e instâncias de comando apoiadas em coisas tangíveis:
tanques e canhões, navios e aviões, quartéis e linhas de comunicação, enfim, ferro, aço,
cimento, um pouco de cobre. Hoje, isso não se aplica, pois o “inimigo” vive no próprio
território e confunde-se com a população em geral ou com imigrantes honestos. A
globalização, neste caso, traz um processo de declínio civilizacional – que é o do Islã
em crise social e econômica e capturado por minorias ativistas – para dentro do
Ocidente desenvolvido.
Trata-se de uma ameaça que não assume contornos militares muito claros, e que
não tem, provavelmente, nenhum perfil tático-militar preciso, mas poderosas
implicações estratégicas, situadas mais no terreno da sociedade, como um todo, do que
no campo dos quartéis-generais. Aliás, a arte da guerra, hoje, apresenta, bem mais,
elementos de Sun Tzu do que aspectos de Clausewitz, mas pede, sobretudo, mais ações
de inteligência do que operações de força bruta. Não se trata apenas do terrorismo
islâmico, que é uma mera manifestação material de algo bem mais insidioso, o
fundamentalismo islâmico. Este deriva do islamismo “normal”, constitui uma recusa
direta da modernidade “ocidental” e se apresenta, materialmente, como uma
mobilização de forças para destruir, material e humanamente, a diversidade ocidental e
seus valores associados.
A OTAN pode até estender um pouco mais seus cenários de atuação, mas não se
trata de um terreno no qual seus pensadores e estrategistas tenham algo de relevante a
269
trazer para o equacionamento do problema. A batalha é mais de idéias e de conceitos, de
corações e mentes, do que propriamente um combate de trincheiras, aliás impossíveis a
definir, ainda que essa nova guerra tenha alguns cenários privilegiados de atuação.
Todos eles se situam no arco civilizacional do islamismo, que engloba mesmo os países
que tinham feito opção por sua versão light, ou laica, em todo caso, separada do Estado.
Nessa luta, a ignorância popular sustenta o obscurantismo político, num cenário no qual
a democracia tem de enfrentar com transparência e bons modos um inimigo que se
utiliza da mentira e da deception.
20) A proliferação nuclear não constitui, de verdade, um problema militar, nem no
plano dos Estados, nem ao nível dos grupos terroristas. Trata-se de um problema
político e como tal deveria ser enfrentado.
Durante a Guerra Fria, o mundo foi dividido a partir de Ialta, que é uma espécie
de tratado de Tordesilhas da era contemporânea (ambos acordos falhos e incompletos).
No mundo pós-Guerra Fria, o cenário é bem mais do tipo Congresso de Viena ou
tratado de Versalhes, sem que os grandes atores consigam se entender sobre uma
agenda comum que combine segurança com oportunidade para todos, como foi o caso
em Bretton Woods. Uma das razões é, precisamente, o gênio que saiu da garrafa, a
capacitação nuclear, difícil de engarrafar outra vez. Não há uma solução militar ao
problema dos novos proliferadores e não há suficiente consenso entre os “donos” do
gênio para domá-lo de maneira credível, o que implicaria em esforços credíveis para o
desarmamento nuclear. A situação de impasse político deve persistir e mesmo uma
nação poderosa como os EUA não conseguem controlá-la, em parte devido a um grande
déficit de liderança política. Este é, provavelmente, o único terreno nas relações
internacionais contemporâneas no qual os EUA não conseguem obter resultados
isoladamente ou por iniciativas unilaterais e necessitam da cooperação de outros
Estados, não necessariamente no plano multilateral. Um exemplo dessa necessidade está
expressa na iniciativa tendente a controlar os fluxos civis de materiais nucleares, mais
um clube restrito ao estilo do finado Cocom (hoje Wassenaer), dos grupos de Londres e
do MTCR.
21) O “fator China” não é propriamente um desafio militar aos EUA ou ao Ocidente, e
sim uma recomposição dos dados do jogo econômico, uma “nova geografia”.
270
A despeito de muitas especulações sobre o desafio militar ou estratégico chinês
ao poderio incomensurável dos EUA, o que há é uma reestruturação dos fluxos de bens
tangíveis e intangíveis no hemisfério norte (para esses efeitos, tanto China quanto Índia
pertencem ao Norte, não ao Sul). A “nova geografia do mundo”, que alguns pretendem
fundar a partir de intercâmbios concentrados no sul, na verdade já existe, e ela não é
apenas comercial, mas sobretudo econômica e tecnológica, mas também financeira e de
cérebros (eventualmente materializados em P&D e propriedade intelectual).
Essa “nova geografia” se manifesta na incorporação de novos grandes
emergentes ao conjunto de países desenvolvidos, basicamente um clube constituído pela
OCDE mais emergentes dinâmicos, que seriam os RICs, com grande ênfase na China e
na Índia. A nova geografia econômica, que é também uma divisão mundial do trabalho,
faz o mundo convergir pela primeira vez em dois séculos, a despeito mesmo da grande
divergência nas rendas individuais. Os EUA já se adaptaram a ela, inclusive no terreno
estratégico, de que é prova a parceria nuclear com a Índia. No terreno comercial,
financeiro e tecnológico o que existe é uma simbiose cada vez maior entre os EUA e os
emergentes asiáticos: tanto os chineses são dependentes da avidez de consumo dos
americanos quanto estes são hoje dependentes da boa disposição dos asiáticos em
continuarem financiando seus déficits.
A América Latina não está a priori excluída da nova geografia, mas ela se exclui
a si mesma quando recusa concluir acordos comerciais, estender garantias ao
investimento direto estrangeiro, oferecer maior abertura em serviços ou outras rubricas.
Ela se exclui, igualmente, quando se contenta em explorar suas vantagens ricardianas
em recursos naturais, mas não avança na qualificação educacional da sua população,
não investe o suficiente em ciência e tecnologia, mantém a desigualdade social em
níveis inaceitáveis e apresenta um péssimo ambiente micro e macro para o mundo dos
negócios.
22) As ameaças aos EUA provindas da América Latina não são derivadas de qualquer
desafio estratégico, mas emergem de fatores negativos internos (tanto aos EUA
como à América Latina), ligados à economia da droga, basicamente. A oferta
contínua de imigrantes, por outro lado, é um fator positivo, para ambos os lados,
mas pode estar associado a outras fontes de criminalidade.
Com uma demanda irrefreável dos EUA por drogas duras, não há dúvida de que
qualquer plano de contenção atuando no “supply-side” econômico, apenas – como é o
271
caso do Plano Colômbia – tende a não produzir resultados significativos, ainda que
possa trazer benefícios residuais do ponto de vista do combate à narcoguerrilha. O
problema da droga não será resolvido enquanto não for equacionado o lado da demanda.
Mas, trata-se de um problema para os dois lados, pois ele tende a gerar, no território dos
produtores e dos países de trânsito – o que é obviamente o caso do Brasil –, uma
corrupção ativa dos agentes públicos, que atinge basicamente o sistema político e o
aparato policial.
No que se refere à oferta do fator humano, ela atende, igualmente, aos dois lados
da equação, mas com desequilíbrios sociais e econômicos, pois os países exportadores
retiram vantagens que eles não estão dispostos a renunciar, diminuindo, por outro lado,
a pressão política para que os dirigentes políticos reformem suas instituições
esclerosadas, ofereçam novas oportunidades de emprego local, qualifiquem
educacionalmente suas populações e atuem decisivamente no plano das desigualdades
distributivas. Os EUA retiram vantagens desse fluxo importador, mas eles se preparam
para gastar inutilmente US$ 6 bilhões com um muro de fronteira rigorosamente inútil e
ineficiente.
E o Brasil nisso tudo?
O Brasil, no plano estritamente militar, é um país rigorosamente marginal,
alheio aos grandes cenários estratégicos internacionais, como de resto a maior parte da
América Latina. Tem certa importância no plano comercial, para algumas commodities
e produtos de sobremesa, e pode tornar-se um ator relevante na nova matriz energética
mundial, que emergirá paralelamente ao lento declínio da velha (150 anos) civilização
do petróleo (aqui mais do lado dos combustíveis do que no plano industrial e
tecnológico). Ainda não estamos prontos para a quarta revolução industrial, mas temos
competências potenciais (científicas, pelo menos) para acompanhá-la.
A rigor, não apresentamos nenhuma ameaça à segurança dos EUA, mas existem
os que acreditam que os EUA representam uma ameaça à soberania brasileira. Como
esse tipo de suposição se presta a alguma confusão mental, talvez fosse o caso de
terminar este pequeno ensaio por algumas novas teses, breves, em relação à posição do
Brasil no atual cenário de segurança internacional.
23) O Brasil não tem um grande papel a cumprir, positivo ou negativo, no atual
cenário estratégico internacional. Seu papel é residual e talvez seja mais relevante
272
no caso de operações conduzidas no quadro das Nações Unidas, que a rigor não
servem de parâmetro para nada, apenas para a manutenção do status quo. Se o
Brasil tiver de assumir algum papel mais importante nessa vertente, a questão da
cooperação militar com os EUA torna-se inevitável (e politicamente complicada).
O Brasil é, como se sabe, um país soberanista, em todo caso bem mais do que
outros na América Latina e na Europa, dispostos eventualmente a ceder soberania em
troca de alguns benefícios materiais. O Brasil também aspira – e isso é histórico, mas se
trata de uma reivindicação puramente elitista – fazer parte dos “mais iguais”, embora
disponha de poucos atributos para tanto. As elites militares e diplomáticas – deixando
de lado as elites políticas, extremamente fluídas para merecerem atenção – possuem
essa inclinação oligárquica que visa colocar o país no inner circle da política mundial,
agenda que nunca ganhou crédito entre as elites econômicas – também cambiantes e,
sobretudo, desprovidas de visão internacional – para que elas sustentassem essa
pretensão.
O fato é que, com o Brasil dentro ou fora do Conselho, o cenário estratégico não
mudará rigorosamente nada, nem para o Conselho, nem para o Brasil, e tampouco para
o mundo, ocorrendo apenas e tão somente maiores despesas orçamentárias para o país,
num engajamento que jamais foi discutido a fundo com a sociedade brasileira ou com
seus representantes proclamados. A participação apresentaria, obviamente, maior
impacto para as Forças Armadas, que teriam de revisar suas concepções estratégicas –
mas essa é uma função talvez mais política do que militar – e sobretudo revisar toda a
panóplia na qual se apóiam atualmente, com adaptação conseqüente de suas ferramentas
de atuação.
Grande parte da corporação militar parece preparada e estaria disposta a
enfrentar esse esforço de revisão, mas esse cenário não depende da vontade dos
militares, sequer dos políticos e das elites econômicas, e sim da capacitação da
economia nacional como um todo. Trata-se de um processo lento e duvidoso, pois
significa colocar o país num outro patamar de desenvolvimento que o atualmente
seguido, que se apresenta bem mais como um lento arrastar de pés em direção da
modernidade.
24) O Brasil não tem ameaças credíveis vindas do imediato entorno regional (embora
alguns atores se esforcem por criar artificialmente uma custosa, inútil e totalmente
indesejada corrida armamentista). O nível de dissuasão requerido parece justificar,
273
portanto, o baixo investimento efetuado nos instrumentos, ainda que isso não
devesse refletir-se na capacitação e treinamento, sempre necessários.
Não existe mais hipótese, sequer no plano teórico, de conflitos inter-estatais que
possam envolver o Brasil em torno de disputas regionais, como ocorreu no passado em
torno do Prata. Os conflitos são menores e residuais e tendem a ser equacionados por
via diplomática, embora a prudência histórica recomende que um “grande porrete”
esteja sempre pronto para oferecer a dissuasão necessária.
Outras ameaças – como a narcoguerrilha, o crime organizado, eventualmente os
neobolcheviques que insistem numa agenda de expropriação direta de terras – terão de
ter um equacionamento basicamente policial, mas a inteligência militar e algum
respaldo material das FFAA podem contribuir decisivamente para o afastamento de
quaisquer riscos de transbordamento, inclusive fronteiriço. Nesse particular, a
cooperação com os EUA é inevitável e desejável, embora condicionada a aspectos
operacionais nem sempre bem-vindos do ponto de vista brasileiro.
25) Não parece haver nenhuma ameaça à soberania brasileira na vertente amazônica,
embora interesse a diversos atores, tanto à direita quanto à esquerda, agitar esse
espectro, por razões peculiares a cada setor. A Amazônia será naturalmente
integrada ao mainstream da economia brasileira – e internacional – à medida que
seu imenso potencial venha a ser adequadamente identificado e explorado (e isso
implica algum grau de desgaste em relação ao patrimônio existente).
A Amazônia tem vários inimigos, mas os principais não são aqueles
supostamente interessados em sua “internacionalização”, em princípio ecologistas
ingênuos que podem estar a serviço de interesses externos (segundo rezam algumas
lendas made in Brazil). Existem muitas paranoias e teorias conspiratórias em torno
dessa questão, fabricadas por uma anacrônica esquerda anti-imperialista e pela extrema
direita nacionalista – geralmente composta de militares da reserva –, nenhuma delas
justificada por dados credíveis da realidade. Lendas e fabulações não merecem,
obviamente, ser objeto de quaisquer teses.
No plano estritamente militar, o espectro pode servir para uma maior alocação
de recursos, embora seja indesejável uma misallocation em função de esquemas
dissuasórios que nunca serão testados na prática. A responsabilidade das autoridades
militares é aqui enorme, pois uma eventual indução ao erro na elaboração orçamentária
setorial redundará em investimentos custosos, desviando recursos de investimentos
274
econômicos e sociais que são necessários para, não propriamente afastar temores
totalmente infundados, mas para construir as bases do desenvolvimento sustentável
naquela região.
Os problemas da defesa amazônica parecem ter o mesmo teor das ameaças já
aludidas anteriormente, derivadas da narcoguerrilha e do crime organizado, o que
recomendaria uma adaptação do ferramental militar e policial a essas circunstâncias.
Isso implica, igualmente, um maior grau de cooperação com os EUA, o que pode
suscitar resistências em certas áreas, mas que me induzem, experimentalmente, a
elaborar uma última tese sobre o papel do Brasil no cenário estratégico internacional.
26) Se o Brasil não é um ator relevante para os cenários estratégicos internacionais,
ele o é, contudo, no âmbito regional, naval, do Atlântico Sul, e no do imenso
hinterland sul-americano. Tanto quanto para sua integração a esquemas militares
onusianos ou plurilaterais mais amplos – isto é, numa base de like-minded countries
–, um papel mais ativo na própria região se beneficiaria de maior cooperação com
os EUA, algo extremamente complicado para nossos padrões políticos e
diplomáticos.
O Brasil é um país introvertido, quase avestruz economicamente, embora
tentando graus crescentes de abertura numa fase em que a globalização é, não apenas
inevitável, como uma quase fatalidade. O establishment diplomático-militar guarda
relutâncias em relação a uma maior cooperação com os EUA em virtude dos choques no
passado – no caso da agenda nuclear, por exemplo – e das assimetrias do presente, para
nada dizer da arrogância imperial que não vai diminuir tão cedo. Em termos claros,
cooperação com os EUA, mormente no terreno militar, significa subalternidade e
integração a esquemas já fixados, em posições acessórias e desprovidas de real
capacidade decisória.
O próprio establishment militar, com algumas exceções, não parece arredio a
uma maior cooperação técnica com a superpotência, embora sejam manifestas as
reações contrárias e as resistências a tal intento. Alguns acreditam que o caminho da
afirmação do Brasil no cenário mundial passa não apenas ao largo como se situa
contrariamente às iniciativas e interesses das grandes potências, cabendo sempre a
singularização negativa da hiperpotência. Nessa visão, as articulações geopolíticas do
Brasil devem passar, prioritariamente, pela periferia do sistema, o que explica, aliás,
muitas das escolhas do presente. Não parece haver justificativas econômicas ou
275
tecnológicas a esse tipo de visão excludente, mas deve-se reconhecer que a cooperação
com gigantes sempre é complexa e duvidosa, em qualquer hipótese.
Os obstáculos, assim, parecem ser mais de natureza política, ou ideológica, do
que propriamente estratégica ou econômica, mas se é verdade que são as idéias que
dominam o mundo, então os primeiros fatores são muito mais poderosos do que os
segundos. O Brasil é um país que caminha muito lentamente no cenário doméstico e
internacional: é bastante provável, assim, que ele acabe confirmando sua natureza
essencial.
1679. “Os Estados Unidos no seu terceiro século: um poder aroniano e o último Estado
westfaliano das relações internacionais (com algumas breves alusões ao Brasil)”,
Brasília, 29 outubro 2006, 18 p. Contribuição ao VI ENEE: Encontro Nacional de
Estudos Estratégicos; Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro: de 8 a 10/11/2006;
Painel: “O papel dos EUA no atual cenário de segurança internacional”: dia 09.11,
de 08:30 às 10:15hs. Publicada na revista Asteriskos, Journal of Internacional and
Peace Studies; Revista de Estudos Internacionais e da Paz (ISSN 1886-5860; ISSN
1887-1712 (on-line) (Galiza, España; n. 5-6, 2008, p. 73-88; ISSN: 1886-5860;
ISSN on-line: 1887-1712; web: http://academiagalega.org/revista-
*asteriskos/asteriskos-revista-de-estudos-internacionais-e-da-paz-no-5-6-
2008.html). Reelaborado para publicação no Brasil, sob o título de “Teses sobre o
novo império e o cenário político-estratégico mundial: Os Estados Unidos e o Brasil
nas relações internacionais”, para Meridiano 47 (n. 93, abril de 2008, p. 5-14; link:
http://mundorama.net/2008/04/30/boletim-meridiano-47-no-93-abril2008/) e Revista
Acadêmica Espaço da Sophia (Tomazina, PR, ISSN: 1981-318X, ano II, n. 14, maio
de 2008, p. 89-119). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47:
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados
n. 829.
276
24. O legado de Henry Kissinger
Não, o velho adepto da Realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado
85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança
Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus
obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos
nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de
suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou
menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno
para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo
das idéias aplicadas às relações de poder).
Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que
alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger querem
ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas
o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos
humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas
de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e
da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador
relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente
Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou
francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente
desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que
realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa.
Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática
e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma
vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de
“vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia
simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de
par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena
(1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda
assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.
O legado de Henry Kissinger é multifacetado e não pode ser julgado apenas
pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como
277
Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve
profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta
anticomunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da
política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas
atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio
nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction –, como
consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriormente
a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações
internacionais.
A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações
internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa
época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da
derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e
ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e
Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na
história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos
velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista
dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas
novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível
aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e
militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro
poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a
destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer
tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros
lançamentos.
Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se
da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através
dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação
nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o
lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que
afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de
poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se
socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal,
em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais
278
comprometidos com a causa anti-comunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e
todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos
seus olhos.
Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora
este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de
Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de
Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele
deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem
estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos
homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que
ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos
humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder
comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto.
O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista”
– como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de
juízes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à
“causa democrática” no mundo –, tem de ser necessariamente diferente do julgamento
daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de
julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de
terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes
potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente
táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”.
Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os
demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu En-
lai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um
lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e
grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.
Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet
– que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que
ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver
que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA
tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública
doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não
“acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham
279
cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.
Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática
mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela
graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em
geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no
sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos
homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem
de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação –
qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo
incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto
quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.
Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante
da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano,
tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes
estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e
mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles
que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve
sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma
marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do
mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de
suas ações e pensamento.
Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes
mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder
soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos.
Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma
paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma
ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império
que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado
de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio
das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por
Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente
alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser
o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser
apenas o seu intérprete tardio. Nada mau, afinal de contas, para alguém que foi, acima
280
de tudo, um intelectual...
1894. “O legado de Henry Kissinger”, Brasília, 1 junho 2008, 5 p. Comentários sobre a
obra prática e intelectual do estadista americano. Publicado em Mundorama.Net
(Brasília, 31/05/2008): http://mundorama.net/2008/05/31/o-legado-de-henry-
kissinger-por-paulo-roberto-de-almeida/; em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p.
29-31; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689).
Reproduzido em Via Política (08.06.2008). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos
com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 838.
281
25. Pequena lição de Realpolitik
Seria totalmente justificado o mau (pré)conceito que carrega a Realpolitik no
plano das atitudes possíveis de serem adotadas pelos estadistas e outros responsáveis
pelas relações internacionais dos Estados modernos? Leva ela, necessariamente, a um
comportamento egoísta no confronto com alternativas menos estado-cêntricas e mais
voltadas para o bem comum da comunidade internacional? Mas será que existe, de fato,
uma coisa chamada “comunidade internacional”? Estadistas responsáveis podem adotar
outra postura que não a pragmática, focada no interesse nacional, quando se trata de
administrar as relações exteriores de seus países? Vejamos o que seria possível
argumentar em torno desse conceito numa espécie de curso concentrado.
Realpolitik é mais um método do que uma doutrina, completa e acabada. Ela
pode ser vista como uma escola de pensamento que não é boa, ou má, em si, e sim que
pode, ou não, servir os interesses daqueles que presumidamente se guiam por seus
“princípios”, algo vagos, de análise e de ação. O que ela quer dizer, finalmente? A rigor,
trata-se de um simples cálculo utilitário, baseado nos interesses primários de um país,
um Estado, um indivíduo. Ela tende a considerar os dados do problema e não se deixa
guiar por motivações idealistas, generosas ou “humanitárias” de tal decisão ou ação,
mas apenas e exclusivamente pelo retorno esperado de um determinado curso de ação,
que deve corresponder à maior utilidade ou retornos possíveis para o seu proponente ou
condutor da ação.
Como tal, ela responde a objetivos estritamente pragmáticos e “racionais”, num
sentido estrito, de uma determinada interação humana, social ou estatal. Ela parte de um
pressuposto básico, na vida ou na sociedade: indivíduos e grupos sociais guiam-se,
basicamente, por seus instintos de sobrevivência ou por seus interesses imediatos de
conforto, bem-estar, segurança, maximização de satisfação, de prazer ou de riqueza e
poder, no caso de sociedades mais complexas. Não se pode negar que, nessa
perspectiva, ela corresponde, aparentemente, à natureza humana, ou pelo menos a certa
concepção da natureza humana, tal como vista pelos filósofos utilitaristas ou
individualistas.
O que oferece, em seu lugar, aquela que seria, presumivelmente, sua
contrapartida teórica, ou até prática, a Idealpolitik? Esta, supostamente, se deixaria guiar
por nobres ideais, altruística em seus princípios e motivações, generosa nas suas
282
interações e ações, voltada para o bem comum, a solidariedade, a elevação moral da
humanidade e a promoção de valores vinculados aos direitos humanos, à democracia, ao
primado do direito sobre a força, à construção de uma institucionalidade que supere,
justamente, o interesse egoísta de indivíduos e Estados. Ainda que se possa conceber a
existência, e mesmo a atuação, de indivíduos, instituições e Estados que se deixem guiar
por tal conjunto de princípios e valores, não tenho certeza de que eles são seguidos na
prática quando se trata do interesse maior de indivíduos e sociedades organizadas, que
são os da sua segurança e da sua sobrevivência física.
Em qualquer hipótese, algumas distinções são possíveis, e passíveis, de serem
feitas e elas têm a ver com a organização geral das ações do Estado no plano exterior.
Teoricamente, a “doutrina” idealista seria mais comprometida com a cooperação
internacional – no plano bilateral ou multilateral – e com a promoção de instituições
comprometidas com tal finalidade, atualmente representadas pela ONU (mesmo com
toda a corrupção e desvios comprovados), ao passo que a “doutrina” realista teria
unicamente como base o interesse egoísta dos Estados, fechados, portanto, a esforços de
cooperação ampliada, assistência a necessitados ou promoção de interesses comuns da
humanidade. Tal dicotomia é dificilmente encontrável na prática, pois todos os Estados,
e indivíduos, acabam cooperando na prática, ainda que tratando de cuidar,
primariamente, de seu interesse próprio.
Finalmente, pode-se conceber uma Realpolitik “esclarecida” que,
voluntariamente ou não, busca, de forma ativa ou secundária, a promoção de valores
“altruísticos”, uma vez que eles poderiam ser funcionais, em última instância, para a
promoção e a manutenção do interesse próprio do Estado ou do indivíduo em questão.
Ou seja, a busca do “bem” redundaria em maior bem primeiramente para o seu
promotor.
Estas considerações, necessariamente de cunho generalizante ou conceitual,
não têm muito a ver com realizações práticas, ou correntes, de alguma Realpolitik em
ação, “esclarecida” ou não. Normalmente se tende a identificar o exercício desse tipo de
política com manifestações práticas de “diplomacia blindada” de alguma grande
potência, na suposição de que apenas potências dominantes têm condições de cuidar de
seu interesse próprio de maneira egoísta ou arrogante, o que é um entendimento
enviesado, ou capcioso, do que seja Realpolitik. Por certo, pequenos Estados ou
indivíduos desprovidos de poder próprio não têm condições de impor sua vontade aos
demais, daí a identificação da Realpolitik com a política de poder. A rigor, qualquer
283
indivíduo ou Estado pode tentar exercer seu quantum de Realpolitik, embora dentro de
limites próprios à sua liberdade de ação (ou de reação).
Para tocar num exemplo sempre invocado de doutrina “realista” do interesse
nacional, num sentido estreitamente egoísta e unilateral, referência é feita à chamada
“doutrina Bush” de ação preventiva, com vistas a antecipar a qualquer iniciativa por
parte de Estados inimigos ou grupos terroristas de atacar os EUA, o que justificaria, aos
olhos de seus dirigentes, um ataque preventivo contra esses supostos inimigos. Ao
mesmo tempo, caberia lembrar que essa doutrina vem sendo apresentada ou vem
“envelopada” num conjunto de argumentos justificadores da ação americana,
condizentes, supostamente, com uma visão mais “altruística” das relações
internacionais, posto que identificada com a promoção da democracia, a defesa dos
direitos humanos – em especial da mulher –, a capacidade de iniciativa individual no
plano econômico, a liberdade religiosa e vários outros elementos de natureza
supostamente “iluminista”.
Que isto esteja sendo feito por bombas e ocupação militar, e não por
professores e missionários, poderia ser visto como secundário do ponto de vista da
escola “realista”, embora não o seja para os “destinatários” da ação: afinal de contas,
parece difícil implementar a democracia na ponta dos fuzis, ou mediante canhões e
mísseis. Desse ponto de vista, a visão e a ação de Kissinger pareciam sinceras, ainda
cinicamente realistas: ele não pretendia “melhorar” o mundo, apenas torná-lo suportável
no plano dos interesses nacionais americanos, o que já lhe parecia um programa
realisticamente enorme (em face dos perigos percebidos, reais ou ilusórios).
A Realpolitik, portanto, recomendaria deixar cada povo cuidar dos seus
afazeres, sem interferência dos demais, até o limite dos efeitos indiretos sobre a
segurança de outros da soberania exclusiva assim exercida (ou seja, eventuais spill-
overs da potestade interna exercida de maneira excludente). Atualmente se invoca, ao
lado do “dever de ingerência” – que seria a intervenção direta nos assuntos internos de
outros Estados em caso de graves atentados aos direitos humanos – o chamado princípio
da “não-indiferença”, que seria uma motivação altruística para exercer a cooperação
ativa em prol do bem estar de povos menos bem aquinhoados pela natureza ou pela sua
organização estatal ou social. A diferença entre um e outro estaria em que, no primeiro
caso, a intervenção se daria contrariamente aos desejos ou capacidade de reação do
Estado em questão, ao passo que no segundo, em total concordância e em cooperação
com seus dirigentes.
284
Num primeiro caso, teríamos, então, a Realpolitik bem intencionada, no
segundo a Idealpolitik explícita e aberta. O que se deve julgar, na verdade, é a eficiência
das ações empreendidas com relação a objetivos bem determinados: no primeiro caso, o
possível resultado é o salvamento de pessoas que de alguma forma pereceriam na
ausência de intervenção, o que significa, simplesmente, a diferença entre a vida e a
morte. No segundo caso, as ações altruísticas empreendidas podem ser rigorosamente
inócuas, caso a não indiferença se exerça em direção de objetivos secundários ou
totalmente marginais em relação aos verdadeiros problemas do país ou sociedade assim
beneficiados com tal ação humanitária.
Não há, como se vê, um critério uniforme para se julgar princípios de ação, ou
suas motivações teóricas: o que existem são situações objetivas e resultados tangíveis,
em função dos quais julgar da efetividade de iniciativas e empreendimentos tomados
por estadistas. O realismo e o idealismo podem ser invocados em circunstância diversas,
e produzirem resultados totalmente contraditórios, em função dos objetivos pretendidos
e dos meios mobilizados.
O que teria Kissinger a ver com isto, finalmente? Provavelmente nada, a não
ser a perspectiva da história profunda e o sentido da razão, sempre bons conselheiros em
matéria de políticas de Estado, em qualquer área que se pretenda atuar. Com todo o seu
realismo cínico, Kissinger foi provavelmente um estadista altamente eficiente do ponto
de vista dos interesses egoístas – portanto realistas – dos EUA. Teria sido ele tão
eficiente assim caso tivesse sido, hipoteticamente, guindado à frente das Nações Unidas,
num papel de cunho profundamente altruístico e humanitário? Provavelmente não, pois
lhe faltaria a alavanca necessária para ser bom (ou mau, com os ditadores), segundo as
circunstâncias: o poder de ordenar e de ser obedecido.
Não é segredo para ninguém que a ONU, com todos os seus bons princípios – e
a despeito de uma maquinaria emperrada, por vezes corrupta – não é sequer capaz de
fazer cumprir seus objetivos prioritários, e ela não o será pelo futuro previsível. Isto
talvez seja uma demonstração cabal de que o realismo prático, com todos os seus
supostos defeitos congenitais, ainda constitui uma boa alavanca para a ação.
Talvez, então, a melhor combinação possível, se as escolhas nos são dadas,
fosse armar-se de uma doutrina inspirada nos bons princípios da Idealpolitik, ao mesmo
tempo em que, no terreno da ação prática (e efetiva), buscaríamos guiar-nos pelos
velhos e surrados princípios da Realpolitik. Acredito que mesmo um cínico como
Kissinger não desgostaria desta combinação. Provavelmente é mais fácil propor do que
285
implementar tal tipo de mini-max, ou seja, uma mistura de boas intenções com uma mão
de ferro na sua consecução: poucos seriam capazes de fazê-lo, talvez apenas os
“realistas-idealistas”. Ou serão os “idealistas- realistas”? Grande questão...
1895. “Pequena lição de Realpolitik”, Brasília, 2 junho 2008, 5 p. Digressões rápidas
sobre esse conceito e o seu oposto, a Idealpolitik. Publicado em Mundorama.Net:
http://mundorama.net/2008/06/05/pequena-licao-de-realpolitik-por-paulo-roberto-
de-almeida/; em Meridiano 47 (Brasília: nr. 95, junho 2008, p. 2-4; ISSN: 1518-
1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584); Via
Política (7.07.2008). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47:
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados
n. 842.
286
26. Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes
A Estratégia Nacional de Defesa (END), divulgada pelo governo brasileiro
(https://www.defesa.gov.br/eventos_temporarios/2008/estrategia_defesa_nacional.pdf)
em 18 de dezembro de 2008, mereceu, de imediato, comentários diversos de
observadores e especialistas, e algumas avaliações superficiais na imprensa. A maior
parte dos comentários apresentou um tom positivo, por se tratar de uma iniciativa no
sentido da transparência e da abertura de um debate com a sociedade, em geral, e com
os estudiosos da área em particular. Sem pretender me colocar entre estes últimos,
desejo oferecer, igualmente, alguns comentários preliminares sobre o documento em
questão, baseados inteiramente em minhas primeiras impressões de leitura, sem que eu
tenha tido a oportunidade, até este momento (11 de fevereiro de 2009), de conhecer
opiniões ou análises mais fundamentadas sobre tal documento, ou, pessoalmente, de
efetuar eu mesmo um exame mais aprofundado do mesmo.
Reconheço, de imediato, as mesmas características positivas no fato de que
“um” documento – quaisquer que sejam suas qualidades intrínsecas – sobre esse aspecto
importante da vida nacional (com repercussões internacionais) tenha sido divulgado.
Pretendo, contudo, ressaltar, ou destacar, apenas aspectos que me parecem
problemáticos nesse documento, sem desconsiderar que ele possa, de fato, apresentar
uma contribuição relevante para um debate qualificado nessa área, ademais de suas
implicações práticas para a defesa nacional e a política externa do Brasil. Meus
comentários, como já indicado no subtítulo, prenunciam uma posição mais crítica do
que favorável, e até num sentido iconoclasta, mas sem qualquer espírito destrutivo, ou
puramente negativo, preservando, ao contrário, minha tradicional honestidade
intelectual e, tanto quanto possível, minha objetividade analítica.
1. Características gerais
Uma leitura, mesmo superficial, do documento em questão, permite detectar,
antes de mais nada, uma filosofia geral, não muito diferente daquela que perpassa a vida
nacional em outras esferas de orientação política ou econômica. Trata-se de um
documento que coloca o princípio da independência nacional como vetor absoluto de
qualquer posicionamento em matéria de segurança e defesa. Independentemente,
portanto, de suas outras qualidades setoriais, e até de planejamento global dessa
287
importante interface das relações do Brasil – e essas outras qualidades existem, mas não
serão enfatizadas aqui –, cabe destacar em primeiro lugar esse elemento gaullien, ou
gaulliste, do documento, que pode ser resumido em alguns poucos conceitos: a filosofia
global do documento, a que mais revela a visão do mundo (Weltanschauung) de seus
formuladores, portanto, é a do soberanismo e, sobretudo, a do nacionalismo.
Não há muita novidade nesse particular, pois que o Brasil sempre foi, desde o
início da República, pelo menos, um país essencialmente soberanista e nacionalista; esta
última característica foi bem mais acentuada a partir da era Vargas. Esse aspecto,
normal e até ‘obrigatório’ para os defensores oficiais da pátria, apresenta outro
problema ao tratar do planejamento, produção e utilização de “bens” de defesa,
quaisquer que sejam eles, posto que o elemento básico de ‘edifício securitário e
dissuasório’ passou a ser o da autonomia absoluta, quaisquer que sejam os custos
explícitos e implícitos – ou seja, o custo-oportunidade, em linguagem econômica –
dessas opções fundamentais da estratégia ‘nacional’ de defesa (e o qualificativo central
assume aqui toda a sua carga de obrigatoriedade, em sentido estrito e lato).
Esta outra característica, econômica, deve ser sublinhada de imediato e com a
maior ênfase, pois que implicando em toda uma problemática que não tem tanto a ver
com a substância em si das escolhas básicas em matéria de estratégia, mas decisiva na
definição dos meios. Ela é a seguinte: independentemente dessas escolhas, é um fato
que o documento em si não foi feito por economistas, não recebeu uma análise de
algum ‘espírito econômico’, nem pretende prestar contas de seus custos econômicos
para o país e a sociedade. Simplificando ao extremo – mesmo sob o risco de ver o
documento transformado em caricatura dele mesmo – eu diria que o documento é
completamente antieconômico, não apenas por propor uma estratégia grandiosa,
inalcançável no plano dos recursos disponíveis, mas sobretudo por propor um caminho
de realização dessa estratégia que não leva em conta o princípio básico da escassez de
recursos, ou se o leva, o faz apenas como uma espécie de gradualismo orçamentário.
Existe, obviamente, uma razão de ordem prática, ou seja, econômica, para que a
END não possa ser aplicada; ou mesmo que, se ela for eventualmente aplicável –
viabilizada pelos procedimentos legislativos e orçamentários em um Estado
democrático normal –, ela não consiga ser colocada em vigor em toda a sua plenitude.
Para que isso ocorra, seria provavelmente necessário mais do que um PIB inteiro – sem
que um valor preciso possa ser de fato estimado – para que toda a imensa ambição da
END seja integralmente implementada. Não se pretende no espaço limitado deste
288
comentário elaborar a propósito da total anti-economicidade da END; apenas confirmar
que essa característica não se prende apenas ao documento, mas perpassa o conjunto de
atitudes e de políticas econômicas brasileiras desde muito tempo, estando, portanto,
entranhadas, na própria ‘ideologia nacional desenvolvimentista’, subjacente a todo o
documento. Qualquer que seja a postura política que se possa ter em relação a essa
‘ideologia’, e sua interação com a END (qualquer que seja ela, esta, ou uma outra) uma
abordagem metodologicamente apropriada a uma política nacional tão importante
quanto esta não poderia dispensar uma rigorosa análise econômica de sua efetividade e
adequação a uma estratégia nacional de desenvolvimento econômico e tecnológico (e,
por extensão, social).
Esta não é, contudo, a objeção maior que se possa fazer ao documento, e ao
modo de pensar de seus formuladores, ainda que ela seja decisiva no plano dos meios e
das possibilidades. Essa objeção tem a ver com a sua inocuidade ou, ao menos, a sua
inadequação aos propósitos prioritários que o próprio documento estabelece.
2. Características específicas
A outra grande deficiência do documento é o fato de que, mesmo sendo a END
hipoteticamente implementável – supondo-se que existissem meios infinitos e nenhum
constrangimento orçamentário – ela não teria os efeitos que seus propositores
pretendem, ou apenas teria ‘certos’ efeitos, característicos, precisamente, de sua
concepção fundamental: soberanista, nacionalista, autonomista no mais alto grau,
ignorando não apenas a interdependência econômica contemporânea, como também os
propósitos maiores da política externa brasileira, seja em sua dimensão regional, seja
em seus objetivos multilaterais e internacionais.
A END pretende dar prioridade a duas ‘Amazônias’, a verde e a azul, como se
os principais problemas da defesa, da segurança ou da estratégia dissuasória do Brasil
estivessem concentrados nessas duas regiões. Aliás, o documento falha em identificar
claramente onde estariam essas ameaças, como se o conceito de defesa não implicasse
em seu complemento necessário: contra o quê, exatamente, ou contra quem? As
ameaças são classificadas como difusas; mas aqui e ali perpassa a idéia de que seria
uma potência (ou uma coalizão de potências) dotada de meios ofensivos superiores (um
claro eufemismo para os EUA e países europeus). Não se considera, por exemplo, que
os centros nevrálgicos da economia e das decisões nacionais se encontram distribuídos
289
em uma faixa litorânea de 200km ao longo da costa atlântica, ou que nossas fragilidades
são bem mais internas do que externas.
Os problemas principais, contudo, derivam do fato de que, em todos os vetores
que a END considera como essenciais, o espacial, o cibernético e o nuclear, uma
estratégia puramente nacional, autonomista e soberanista, como a proposta no
documento, redundaria em custos indefinidos, prazos extremamente delongados ou
impasses ou obstáculos tecnológicos previsíveis. As dificuldades não parecem
impressionar os autores do documento, que desprezam ou minimizam a necessidade de
cooperação externa no que se refere ao know-how para os primeiros dois vetores, ou
colocam de lado os constrangimentos internacionais no que se refere ao vetor nuclear. O
documento parte da suposição de que os parceiros externos, indefinidos, saberão se
acomodar ao desejo brasileiro de obter acesso à tecnologia, sem o que essas parcerias
presumivelmente não existirão.
Em outros trechos, onde se fala de ‘parceiros’, estes são identificados a países
emergentes, com os quais se realizará outro dos objetivos prioritários do atual governo
brasileiro: a reforma das instituições internacionais, em especial dos organismos
econômicos. No plano internacional, justamente, o documento falha em vincular o outro
grande objetivo internacional do governo brasileiro: a assunção de uma cadeira
permanente no CSNU e o aumento da presença brasileira no cenário internacional. Se
este é um objetivo factível – o que parece muito duvidoso – então a END não parece
adaptada aos requisitos e necessidades de uma maior inserção do Brasil nas operações
de peace-making e de peace-keeping da ONU, ou até de uma ação independente em
determinados teatros especiais.
3. O problema regional e a questão hemisférica
O documento quase não trata das grandes prioridades da atual política externa
brasileira: o reforço do Mercosul e a integração política e física da América do Sul; mas
quando o faz, as menções são puramente retóricas, sem a perspectiva de uma integração
real, igualitária. Os vizinhos são basicamente considerados como clientes potenciais da
indústria brasileira de defesa, totalmente independente, cabe lembrar.
A integração seria algo puramente instrumental para viabilizar economias de
escala para essa indústria, diluindo assim os custos entre um número maior de clientes,
ou de dependentes (condição que se recusa para o próprio Brasil). O famoso Conselho
de Defesa Sul-Americano – que não é bem de defesa, mas simplesmente de
290
coordenação da segurança regional – parece ter sido criado para servir a esses mesmos
objetivos, e sua característica mais realçada é a de que ele seria conduzido sem qualquer
parceiro externo à própria região.
Esse ‘isolamento’ dos EUA – como se tal fosse possível – parece resultar de
dois elementos combinados, a partir de dois vetores completamente diferentes: por um
lado, a tradicional necessidade militar de definir ‘ameaças’ credíveis – e não se concebe
qualquer outra ameaça efetiva na região, depois da normalização das relações com a
Argentina – agora parcialmente coberta pela figura da ‘potência superior’; por outro
lado, o anti-imperialismo infantil, e completamente démodé, de setores políticos da base
de sustentação do governo e da esquerda acadêmica esclerosada.
Esse exclusivismo regional, à exclusão do grande irmão hemisférico, e a política
de aproximação do Brasil com parceiros ‘emergentes’ ditos estratégicos – como a Índia,
por exemplo – podem vir a ser fontes de problemas na estratégia brasileira de integração
regional, na área política e de segurança, inclusive porque isso tem implicações para os
problemas da cadeira no CSNU e da opção nuclear.
É relevante registrar que, para que o Brasil pudesse realizar seus objetivos
regionais, sobretudo o da integração sub-regional e da sul-americana – que
supostamente são os mais valorizados pela diplomacia brasileira e a própria base da
cooperação regional no terreno da segurança, e talvez da defesa –, o Brasil precisaria
utilizar-se muito mais dos elementos de soft power da economia do que aqueles de hard
power, pelo lado da defesa. Na verdade, o Brasil já possui, teórica ou hipoteticamente,
as condições potenciais para praticar soft power na região, não o fazendo, por razões
históricas e políticas.
Esse soft power estaria baseado na abertura irrestrita do seu mercado interno a
todos os vizinhos sul-americanos, de forma integral e incondicional – vale dizer, sem
qualquer exigência de reciprocidade – e na concepção e implementação de imenso
esforço de cooperação bilateral com cada um deles (acolhendo bolsistas no Brasil e
desenvolvendo projetos nesses países); cabe considerar, ademais, o papel crucial do
investimento direto brasileiro na região, essencialmente a cargo do setor privado
(eventualmente estimulado por políticas governamentais) e de uma ou outra estatal
(Petrobras). O fato é que o Brasil não exercerá esse soft power, seja porque o país é
naturalmente protecionista, seja porque os arranjos do Mercosul não o permitiriam, nas
atuais condições.
291
A questão hemisférica, por sua vez, tem a ver com as relações do Brasil com o
‘império’, atualmente considerado uma presença nitidamente não desejável na região,
sequer como parceiro (a menos que seja como fornecedor complacente da tecnologia
necessária à capacitação brasileira em defesa). Pode-se até conceber essa ‘opção’ como
uma derivação lógica – ainda que não assumida publicamente, por notórias implicações
políticas – da antiga tese do chanceler Rio Branco quanto a uma divisão de tarefas no
hemisfério: o império fica com o norte (aqui compreendendo todo o Caribe e América
Central) e o Brasil se ‘ocupa’ da América do Sul. Mesmo admitindo que esse tipo de
‘missão compartilhada’ seja admissível ou possível, na prática – com todos os
problemas ligados a uma suposta liderança brasileira na região – ela não resolve
nenhum dos demais problemas vinculados à presença internacional brasileira ou,
sobretudo, ao CSNU, que passam inevitavelmente por uma ‘boa relação’ de cooperação
ativa com o império (algo ainda não admitido até aqui).
4. Problemas residuais e conclusão provisória
Sem pretender aprofundar, neste momento, todos os problemas relevantes da
END – inclusive o das ‘ferramentas’ que poderiam, ou não, ser funcionais para essa
estratégia particular, entre elas o submarino nuclear, algum eventual porta-aviões ou
outros instrumentos de projeção externa – caberia mencionar, mesmo rapidamente, dois
outros problemas relevantes que também têm a ver mais com a ‘filosofia’ do documento
do que propriamente com os meios e fins dessa concepção de defesa.
O primeiro tem a ver com a opção confirmada por um ‘serviço militar
obrigatório’, aliás, acrescido de um recrutamento universal (quem não fosse aproveitado
no ‘equalizador republicano’, iria para um equivalente civil). Esta opção parece decorrer
mais de necessidades da força de terra, do que dos requerimentos das duas outras forças,
que aparentemente se acomodariam – ou mesmo desejariam – a alternativa de forças
totalmente profissionais e exclusivas. Opções de maior flexibilidade operacional
recomendariam, provavelmente, a consideração da estratégia profissional para alguns
tipos de missões militares (propriamente estratégicas), reservando-se o serviço universal
para essa ocupação de ‘terreno republicano’ no grande espaço do Brasil ainda
subdesenvolvido, como deseja certa ideologia pretensamente classista no documento.
Aliás, o documento trai suas origens mais sociológicas do que propriamente
institucionais ao mencionar expressamente o objetivo de incorporar todas as ‘classes
sociais” a esse projeto pretensamente republicano: trata-se, provavelmente, da primeira
292
vez que o Estado brasileiro trabalha com o conceito de classes sociais, em lugar de um
equivalente verdadeiramente universal e igualitário, o de cidadãos, ao pretender
formular uma política pública relevante.
O segundo problema tem a ver com a velha questão nuclear. Ademais de referir-
se às possibilidades energéticas e tecnológicas do vetor nuclear, a END parece lamentar,
em duas passagens, o abandono pelo Brasil dessa possibilidade ‘militar’: o Brasil
“privou-se da faculdade de empregar a energia nuclear para qualquer fim que não seja
pacífico”, e “proibiu-se a si mesmo o acesso ao armamento nuclear”, o que revela,
provavelmente, alguma inclinação dos formuladores do documento. Inconsciente ou
deliberadamente, esse tipo de linguagem pode representar uma eventual tentativa de
deixar a opção aberta, caso novos desenvolvimentos internacionais, do lado do TNP,
tornem viável ou factível alguma futura revisão constitucional no plano nacional. Esse
‘desejo secreto’ pode revelar-se problemático no plano internacional e até no regional,
inclusive porque está expressamente dito que o Brasil “não aderirá a acréscimos ao TNP
destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham
avançado na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear”. Essa
posição é uma espécie de prolongamento da recusa do TNP mantida durante 30 anos
pelos estrategistas – militares e diplomáticos – brasileiros em relação a esse vetor
considerado fundamental de qualquer estratégia dissuasória no plano mundial.
Finalmente, cabe registrar, mais uma vez, o aspecto positivo da divulgação da
END, pelo simples fato de existir e de permitir debates públicos em torno de ‘uma’
END e, sem pretender retomar um chavão que diria que ‘uma outra END é possível’,
sublinhe-se apenas que ela começa o debate sobre onde, e com que instrumentos, o
Brasil quer chegar em matéria de defesa e de segurança estratégica. Com a atual
conformação nacionalista, soberanista, autonomista e arrogantemente tutelar no plano
regional, sem mencionar a rejeição preventiva da ‘cooperação imperial’, pode-se
legitimamente perguntar se jamais o Brasil chegará ao ponto indicado na END. A
grande ambição da atual END é, provavelmente, o ideal do ponto de vista dos militares:
pergunta-se apenas se ela é factível e se é essa a END que interessa ao Brasil, como
nação integrada à região e ao mundo. O tema permanece sob exame.
293
1984. “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Brasília, 11 de
fevereiro de 2009. 7 p. Observações preliminares ao documento liberado em
dezembro de 2008 pelos ministros da Defesa e de Assuntos Estratégicos. Publicado
em Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-
nacional-de-defesa-comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Republicado em Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; link:
http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano-
47/sumariodaedicaono104-marco2009/Meridiano_104.pdf?attredirects=0), no site
da Universidade Federal de Juiz de Fora, seção Defesa (20.03.2009; link:
http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ENDCD) e no site português Jornal
Defesa e Relações Internacionais (19.03.2009; link:
http://www.jornaldefesa.com.pt/noticias_v.asp?id=689). Complementada em
novembro de 2009, pelo trabalho 2066. Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com
o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 895.
294
27. A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à END
“Vemos, então, em primeiro lugar, que em todas as
circunstâncias a guerra deve ser vista não como algo independente,
mas como um instrumento político; e é apenas tendo esse ponto de
vista que podemos evitar nos colocarmos em oposição a toda a história
militar. (…) Portanto, o primeiro, maior e mais decisivo ato de um
estadista ou de um general consiste em entender o tipo de guerra em
que está envolvido, não a tomando por outra coisa nem desejando que
fosse algo que, pela natureza da situação, nunca poderá ser. Esta é, em
consequência, a primeira e a mais abrangente de todas as questões
estratégicas.”
Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832.
Aparentemente, os estadistas do Brasil (se é que os há) e os seus generais (estes
certamente existem) ainda não conseguiram entender a natureza da ‘guerra’ em que o
Brasil estaria supostamente envolvido, se é que existe algo parecido a uma guerra na
qual o País poderia estar envolvido; do contrário, seus formuladores não teriam
concebido um documento tão idealista e tão distante dos desafios colocados ao País e
alheio à realidade efetiva das coisas – la verità effetuale delle cose, como diria
Maquiavel – quanto a Estratégia Nacional de Defesa (END). Minha intenção, no
presente trabalho, seria a de retomar a discussão em torno desse documento, esforço já
iniciado em um ensaio anterior, de natureza prioritariamente formal.30
O documento conjunto do Ministro da Defesa e do Secretário de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República, divulgado originalmente em dezembro de
2008, deveria ser, alegadamente, a base do pensamento estratégico do Brasil, mas
deveria oferecer, também, uma espécie de guia operacional e um manual de
reequipamento de suas Forças Armadas (FFAA), com vistas à consecução dos objetivos
básicos nacionais. Estes objetivos, por sua vez, poderiam ser resumidamente
apresentados assim: a salvaguarda da soberania nacional, a preservação da integridade
territorial e da independência política do país, a autonomia tecnológica e o
Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832, parágrafo 27, “Influência desta concepção sobre o
entendimento correto da história militar, e sobre os fundamentos da teoria”, do Livro I: “Sobre a
Natureza da Guerra”, da tradução de J. J. Graham, de 1873 (disponível neste link:
http://www.clausewitz.com/readings/OnWar1873/BK1ch01.html).
30 Ver Paulo Roberto de Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”,
Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-
comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/).
295
desenvolvimento econômico e social, o que caberia assegurar num contexto
internacional ainda marcado por fortes assimetrias entre os Estados, bem como por
ameaças latentes e por desafios difusos à defesa nacional.
Pois bem, sinto dizê-lo, mas a END, a despeito de seu nome e de seus nobres
objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação atual, à
defesa do país. Ela é, no máximo, nacional, aqui com toda a ênfase desejada por seus
formuladores e à exclusão de suas outras características mais esdrúxulas, que
tentaremos examinar nestes novos comentários, que se seguem às minhas primeiras
observações sobre o tema. Se ela não é nem uma estratégia e muito menos de defesa, ela
deveria ser, ao menos, um documento minimamente racional, em torno do qual
poderiam ser articulados idéias e argumentos favoráveis e desfavoráveis ao seu espírito
e objetivos. Examinaremos aqui se ela cumpre essa função primordial.
Suspeito que os defensores da END se mostrarão enfastiados, e talvez mesmo
agastados comigo, por tratar de maneira tão depreciativa um documento que eles
parecem ter em alta conta, como representativo, supostamente, de um grande referencial
teórico, uma espécie de manual prático essencial à estratégia de defesa nacional. No
entanto, a despeito de suas boas intenções, ele consiste, tão somente, de um documento
propositivo, uma assemblagem passavelmente heteróclita, dotada de algumas sugestões
úteis no terreno do reequipamento militar das FFAA, mas caracterizada por vários
problemas de concepção e, sobretudo, por uma falta de adequação ao mundo real dos
conflitos potenciais nos quais possa vir a estar envolvido o Brasil.
Em minha opinião, esse documento, em seu formato atual, não passa no teste
proposto por Clausewitz na frase destacada em epígrafe, isto é, a de uma correta
definição de qual seja o tipo exato de guerra com que poderia se defrontar o país.
Entender a guerra enquanto “instrumento político” seria a primeira missão dos
estadistas e dos generais brasileiros, mas a END deixa essa questão num completo vazio
estratégico, sem qualquer definição quanto a cenários ou ‘adversários’.
Talvez Clausewitz fosse muito exigente na formulação de padrões para o ‘seu’
tratamento da teoria militar, estabelecendo rigorosos princípios de planejamento e de
ação no terreno para os ‘seus’ generais, princípios que talvez não tenham aplicação ao
caso brasileiro. Em todo caso, o documento em exame constitui um ajuntamento pouco
objetivo de idéias vagas sobre a defesa – não sendo seguro que se trata bem da defesa
do Brasil – sendo mais bem uma coleção ou lista genérica de aquisições militares para
296
as três forças singulares nos anos à frente (se os orçamentos futuros do governo
brasileiro assim o permitirem, o que, contudo, é altamente duvidoso).
Meu propósito, nestes novos comentários dissidentes, é duplo: (a) no plano
analítico-conceitual, operar uma desconstrução intelectual das bases filosóficas – se o
termo se aplica – da END; (b) no plano prospectivo, oferecer algumas reflexões sobre o
que deveria conter uma END que constituísse, verdadeiramente, uma estratégia e que
fosse, consequentemente, de defesa, duas qualidades que, repito, a END ainda não
consegue atender. Ela se contenta, no momento, em ser nacional, como referido, no
sentido mais prosaico desse termo. Vejamos a END com maior grau de detalhe.
1. Por que a END não é uma estratégia?
A primeira pergunta que um estadista deve formular a si mesmo gira em torno
dos grandes objetivos nacionais e dos meios adequados para a sua consecução, em um
prazo razoável. Esse exercício implica, necessariamente, uma visão do mundo – que não
é a Weltanschauung abstrata de um de seus formuladores – e uma definição de possíveis
cenários de guerra, dois aspectos que não figuram, em absoluto, na END. Desse ponto
de vista, a END falha em atender essas exigências minimalistas, ou o faz apenas em
intenção. Aplicada a questão ao Brasil, o que teríamos?
A resposta é simples e ela é fornecida pela própria END: os autores começam
por confundir estratégia de defesa com estratégia de desenvolvimento.
Estratégia nacional de defesa é inseparável de estratégia nacional de
desenvolvimento. Esta motiva aquela. Aquela fornece escudo para esta. Cada
uma reforça as razões da outra. Em ambas se desperta para a nacionalidade e
constrói-se a Nação. Defendido o Brasil terá como dizer não, quando tiver
que dizer não. Terá capacidade para construir seu próprio modelo de
desenvolvimento.
Os que acreditam nesse tipo de assertiva, também acreditam que gastos com
defesa é que impulsionam o desenvolvimento, o que representa acreditar, em outro
contexto, que são os gastos do Pentágono que impulsionam a prosperidade e a inovação
dos EUA, uma notável inversão do processo real. No caso do Brasil, descontada a
ridícula retórica da construção da Nação – depois de quase 200 anos de independência
parece que o Brasil ainda não encontrou o seu caminho, ou pelo menos alguns dos seus
supostos estadistas ainda não encontraram o seu –, o que se tem aqui é uma formidável
confusão entre defesa e desenvolvimento, como se este último – que, ao que parece,
297
carece de um modelo ideal, filosófico, se podemos dizer – devesse ser definido apenas
com base naquela. Seus formuladores padecem de algum complexo de inferioridade,
implícito à posição do país no contexto internacional, pois precisam ser “do contra”.
Trata-se, manifestamente, de gente com vontade de dizer não, sem que se saiba bem a
quem ou por quê, exatamente. Dizer não em abstrato é o mesmo que lutar contra
incertas ‘forças da natureza’. Todo o documento é vago, em suas premissas e em suas
definições, quanto a que defesa se pretende: contra o quê, exatamente, ou contra quem,
mais precisamente?
Ora, a defesa é uma parte, apenas, do que constitui uma nação; essa parte pode
ser, alternativamente, mais ou menos importante em função do contexto histórico
preciso e do cenário geopolítico concreto no qual se insere essa nação: algumas terão na
defesa seu principal motivo de preocupação (nações cercadas de potências hostis ou
potencialmente conquistadoras, como, por exemplo, bárbaros batendo as portas das
cidades ou derrubando suas muralhas externas, como no caso da China e suas hordas de
mongóis e manchus conquistadores); outras nações podem ser neutras (como alguns
Estados tampões entre grandes potências), ou, então, naturalmente protegidas de ataques
inesperados, dadas suas dimensões geográficas continentais (os EUA, por exemplo, um
continente com dois oceanos, ou, talvez, o próprio Brasil; não é certamente o caso da
China, que, a despeito de suas dimensões continentais, tem como vizinhos potências
nucleares ao norte e ao sul).
O desenvolvimento, por sua vez, interessa a toda a nação, ou concerne, pelo
menos, todos os seus fatores de produção, sua capacidade transformadora, seus recursos
humanos, suas instituições de governança, suas relações exteriores (aqui, sobretudo na
área econômica), enfim, um processo múltiplo e multifacetado de transformações
estruturais e de crescimento sustentado que vai muito além do que constitui a defesa ou
uma estratégia de segurança nacional. Muitos acreditam que tudo isso depende da
definição de um “modelo de desenvolvimento”, pré-concebido por alguns ‘luminares da
nação’, apresentado e aprovado democraticamente pelo conjunto da sociedade (nos
momentos constituintes por exemplo). Trata-se de uma pretensão acadêmica, típica dos
que concebem a si mesmos como geniais formuladores da grande estratégia nacional, e
que raras vezes figurou nos planos de qualquer país hoje tido como desenvolvido.
“Modelo” é uma construção puramente conceitual, necessariamente ex-post e
geralmente constituído por uma simples racionalização analítica de alguns elementos
bem sucedidos ao cabo de um processo sustentado de crescimento e de mudanças
298
estruturais, implicando – cela va de soi – a passagem a uma sociedade capaz de gerar
respostas próprias aos desafios colocados pelo ambiente em que vive (normalmente
embutindo inovações de natureza tecnológica).
Eximindo-se de uma definição concreta de quais sejam as ameaças e desafios
externos, parece totalmente supérflua uma afirmação deste tipo contida na END:
“Difícil – e necessário – é para um País que pouco trato teve com guerras convencer-se
da necessidade de defender-se para poder construir-se”. Esse tipo de hegelianismo
militar pode agradar os militares, que estão sempre buscando motivos legitimadores de
suas existência (e gastos), mas o argumento é circular e autossuficiente: a construção da
Nação passa pela defesa, uma afirmação gratuita que se encerra em si mesma. Há uma
notável inversão do que seja o desenvolvimento: é a defesa que irá capacitar o País, não
a sua capacitação decorrente do processo de desenvolvimento que pode fornecer
elementos úteis à sua defesa.
Não existe uma verdadeira estratégia definida no documento, mas apenas
algumas formulações másculas, que constituem mera retórica vazia: “Projeto forte de
defesa favorece projeto forte de desenvolvimento.” O grande conceito unificador de
toda essa retórica vazia é o de “independência nacional”, o motivo básico da existência
da nação, que os formuladores da END dão por ameaçada, do contrário não se
preocupariam tanto com ela. Quando se invoca, repetidamente, independência e
soberania nacional é porque não se tem certeza de que elas estão asseguradas de fato e
na prática, isso traduz um desconforto psicológico quanto à fragilidade e
vulnerabilidade da nação. Mas isto não quer dizer necessariamente que ela não tenha
defesa, apenas traduz uma situação de desconforto com o não-desenvolvimento,
percepção que permeia o discurso dos dirigentes nacionais desde a formação do Estado
e a independência da nação (sim, o primeiro veio antes...).
Se Clausewitz está certo – mas ele não deve ser considerado um estrategista
infalível, muito menos eterno – os estadistas e generais brasileiros ainda não
conseguiram definir que tipo de guerra poderia afetar o Brasil e, portanto, ainda não
conseguiram definir uma estratégia nacional de defesa. A END é um arremedo do que
deveria ser uma, e certamente não deveria ser confundida com uma estratégia nacional
de desenvolvimento, mesmo se ela procura se legitimar dessa forma.
Não tenho a pretensão de formular neste espaço uma estratégia completa de
defesa (nacional ou não), e muito menos uma que seja de desenvolvimento nacional.
Mas sempre se pode reconhecer uma estratégia nacional de pura retórica quando uma se
299
apresenta de forma tão ingênua: a END está impregnada de retórica grandiloqüente
sobre quão importante deveria ser a defesa nacional para o desenvolvimento, mas ela
não diz qual é, onde está, em que consiste essa estratégia, que seria supostamente de
defesa, e, sobretudo, por que ela deveria ser estratégica – com perdão pela óbvia
redundância – para o desenvolvimento. Repetindo a questão essencial, já colocada
anteriormente: defesa contra o quê ou contra quem? Vejamos este aspecto.
2. Por que a END não é de defesa?
A primeira pergunta que um general deve formular a si mesmo, supondo-se que
ele seja chefe de Estado-Maior, é a de saber para onde, exatamente, as forças à sua
disposição devem apontar suas armas ofensivas ou dissuasórias. Da resposta a esta
questão depende a defesa efetiva do território nacional, nos pontos considerados
nevrálgicos e mais sensíveis.
Pois bem: o que nos diz a END sobre isso?
Os ambientes apontados na Estratégia Nacional de Defesa não
permitem vislumbrar ameaças militares concretas e definidas, representadas
por forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou de outros
agentes não-estatais. Devido à incerteza das ameaças ao Estado, o preparo
das Forças Armadas deve ser orientado para atuar no cumprimento de
variadas missões, em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação
política do Estado.
Esse trecho selecionado, extraído da seção “Fundamentos” da segunda parte da
END (Medidas de implementação), é surpreendente pelo seu caráter vago e pela
completa indefinição quanto ao objeto próprio de toda essa construção abstrata,
consoante, aliás, com o caráter de “não-estratégia” do documento em seu conjunto. O
Brasil parece viver, na visão dos formuladores da END, num completo vazio
geopolítico e eles não conseguem vislumbrar ameaças concretas; não se sabe bem,
portanto, quais devem ser as variadas missões das FFAA, e não se tem a mínima idéia
de que “ação política do Estado” se está falando. Se é de defesa, é preventiva contra
tudo e contra todos, o que, convenhamos, é extremamente custoso, se todas as Hipóteses
de Emprego (HE) forem consideradas, e muito pouco útil na preparação e no
adestramento adequado das tropas.
A mesma indefinição completa quanto às ameaças, as missões e os propósitos da
ação do Estado já tinha sido reconhecida na seção anterior (justamente voltada para as
300
Hipóteses de Emprego) dessa mesma parte da END (medidas de implementação). No
plano prático, ela redunda em algo absolutamente contraditório: “Entende-se por HE a
antevisão de possível emprego das Forças Armadas em determinada situação ou área de
interesse estratégico para a defesa nacional. É formulada considerando-se o alto grau de
indeterminação e imprevisibilidade de ameaças ao País.” Ou seja, mesmo sem ter a
mínima idéia de quais HE poderão determinar a mobilização das FFAA, ainda assim,
devem ser “elaborados e mantidos atualizados os planos estratégicos e operacionais
pertinentes, visando possibilitar o continuo aprestamento da Nação como um todo, e em
particular das Forças Armadas para emprego na defesa do País.”
Notável!: se pretende aprestar toda a nação mesmo sem se ter clareza quanto a
que tipo de ameaças ou desafios se colocam ao País. Jogos eletrônicos de guerra têm,
pelo menos, um ou mais inimigos declarados, algo que o Brasil não consegue ter, e que
a END não consegue definir. Quando se consegue formular uma ameaça concreta ao
território, à independência ou à soberania nacional, esta é particularmente deficiente
quanto aos cenários reais para as HE das FFAA. Deficiente é uma palavra neutra, pois a
suposição implícita é a de que o Brasil poderia ter de enfrentar – ou pelo menos
dissuadir – uma “potência hegemônica” ou uma “coalizão de potências dominantes”,
sem que se diga exatamente quais seriam essas potências “hostis” ou “ameaçadoras”.
Quem não padece de miopia geopolítica, e conhece as motivações e orientações
políticas do governo que formulou a END, pode apostar em que o alvo são os Estados
Unidos e os países europeus, as ‘únicas’ “potências hegemônicas” do planeta, pois não
se admitiria que os “parceiros estratégicos”, designados como tais pelo governo, possam
vir sequer a constituir fontes de ameaças.
A END diz, nas suas “Diretrizes”, que se deve “priorizar a região amazônica”
(sic), o que é propriamente surpreendente. Nenhuma explicação é dada para essa
“priorização” que parece contradizer os dados da realidade, quando se sabe que a maior
parte do PIB, da população, da capacitação industrial, dos centros nervosos do País se
situa em outras regiões do Brasil, mais particularmente na costa atlântica ao longo das
vertentes sudeste e do sul do território nacional. Talvez a END pretenda encarregar a
Marinha, que supostamente vigia toda a costa e o mar territorial brasileiro, e
marginalmente a zona econômica exclusiva, do monitoramento e proteção dessa faixa
de maior importância econômica, estratégica e militar para o País, mas isso não está
explicitado no documento. Na verdade, o mais provável que ocorra é que tudo continue
301
como sempre, com marinheiros instalados nas melhores praias do País e com os
soldados e aviadores fixados em suas melhores regiões.
Ainda assim não se percebe por que a Amazônia deva receber maior atenção e
mais recursos do que as regiões mais ricas e povoadas do País, talvez apenas porque
seja pobre e despovoada, justamente. Deve ser a tradicional obsessão paranoica – não
apenas de militares de direita, mas da esquerda paisana, também – quanto à
internacionalização da Amazônia, obviamente a cargo das mesmas “potências
hegemônicas” que conspiram contra o desenvolvimento do Brasil. Pode ocorrer,
eventualmente, que os formuladores da END tenham experimentado um súbito ataque
de clarividência, passando a colocar as ameaças potenciais ao Brasil lá onde eles podem
de fato aparecer, ou seja, na Amazônia; mas registre-se que ali, os cenários mais
prováveis são de pequena geopolítica, não de grande estratégia, o que reduziria
singularmente o uso das ferramentas previstas na END.31
Em resumo, assim como a END não consegue ser uma verdadeira estratégia, ela
não consegue ser um documento de defesa, ou seja, definir quais são as ameaças
credíveis e os reais desafios que pesam contra o Brasil, ou, de modo geograficamente
mais preciso, contra suas regiões estrategicamente mais importantes. As HE previstas na
END de emprego das FFAA são tantas e tão variadas, que as FFAA terão, de modo
particularmente custoso, de se preparar para absolutamente tudo e todas as HE, talvez
para enfrentar absolutamente nada. Neste caso, não se trata bem de uma manifestação
retórica de hegelianismo militar, mas talvez de um voluntarismo de tipo acadêmico
totalmente inócuo em seus propósitos substantivos.
3. Por que a END é prosaicamente nacional?
Aparentemente, a END pretende superar o velho problema que sempre colocou
em lados opostos estadistas e generais, de uma parte, e economistas, de outra; ou seja,
como conciliar, de um lado, os objetivos contraditórios da maximização do bem-estar
da nação no curto prazo – o que implica atender ao consumo imediato da população – e
os de seu desenvolvimento no longo prazo – o que implica concentrar recursos para fins
de investimentos produtivos – e, de outro lado, as necessidades de sua defesa, com suas
31 Sobre os conceitos de pequena e grande geopolítica, ver Paulo Roberto de Almeida, “Uma
paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria
C. d’Araujo e Samuel A. Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas
(Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38; disponível:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).
302
exigências em termos de desvio de recursos para a aquisição de ferramentas militares –
improdutivas por definição – mas essenciais para os fins de dissuasão, de segurança e de
defesa? A END, teoricamente, deveria reservar algum espaço, se não para a
macroeconomia do desenvolvimento brasileiro, ao menos para uma estimativa inicial de
seus custos diretos e indiretos, em termos de dotações orçamentárias anuais e
plurianuais, e de previsões aproximadas dos montantes necessários a serem apropriados
para cada uma de suas grandes rubricas ou categorias de despesas (pessoal,
equipamentos, infraestrutura, manutenção, P&D militar, etc.).
Esse tipo de cálculo elementar, a END sequer o faz de maneira impressionista
ou puramente subjetiva, ou seja, ela jamais ousa aventar qualquer cálculo estimativo,
mesmo primário, dos custos incorridos pela sua grandiosa estratégia (supostamente) de
defesa. Ela tampouco se permite considerar o custo-oportunidade de todas as suas
propostas operacionais, tanto no terreno das ferramentas militares, como no da
manutenção das instituições no formato pretendido. Parafraseando o conflito célebre
dos economistas quanto a bem-estar e defesa, quando confrontados a esse tipo de
dilema, pode-se dizer que a END pretende oferecer, ao mesmo tempo, manteiga e
canhões, sem que ela jamais consiga estimar os custos, implícitos e explícitos, desse
tipo de demanda contraditória por definição.
A ‘manteiga’, como sabemos, só pode entrar no quadro do grande projeto de
desenvolvimento que os autores da END pretendem impulsionar pelo lado exclusivo da
defesa (sem no entanto dizer como; talvez por fiat político). E os canhões, bem, eles
estão lá onde deveriam estar, mas aqui, não são apenas canhões, e sim todos os raios de
Júpiter e de seu exército de deuses auxiliares, sem esquecer Marte e Vulcano. Com
efeito, a END pretende “fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o
cibernético e o nuclear”. Ou seja, nada menos do que uma guerra nas estrelas, uma
presença na estratosfera e no cyberspace, mesmo se for para combater inimigos na área
considerada prioritária, que é a ‘esquecida’ Amazônia.
E como tudo isso será alcançado?; ou seja, como serão oferecidos a manteiga e
os canhões da grande estratégia brasileira? A END novamente responde: “Tal
desenvolvimento [a capacidade de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as
águas jurisdicionais brasileiras] dar-se-á a partir da utilização de tecnologias de
monitoramento terrestre, marítimo, aéreo e espacial que estejam sob inteiro e
incondicional domínio nacional”. Talvez coubesse sublinhar três vezes e colocar em
negrito o “incondicional”, pois ele resume toda a concepção soberanista, inteiramente
303
autárquica e estreitamente nacionalista da concepção do econômica do mundo dos
formuladores da END. Não basta ter ou dispor de ferramentas: é preciso, também, que
elas sejam genuinamente made in Brazil ou manipuladas integralmente pelos militares
brasileiros.
Esse tipo de restrição quanto a origem das ferramentas, ou o condicionamento de
sua aquisição no estrangeiro ao estrito repasse do controle tecnológico sobre as
ferramentas em questão, resume o caráter especificamente nacional da END, aliás, seu
único elemento dotado de maior consistência intrínseca, posto que os dois outros
elementos não se sustentam, nem filosófica, nem praticamente, como vimos.
Paradoxalmente, ou ironicamente, grande parte dessa transferência de tecnologia
esperada ou desejada pelos formuladores da END deveria fluir – voluntariamente,
talvez – daquelas “potências hegemônicas” que supostamente estariam na origem das
ameaças à ‘prioritária’ Amazônia (ou, quem sabe?, ao petróleo do pré-sal).
Todo o sentido da END consiste em atribuir à capacidade produtiva nacional a
principal responsabilidade pelo fornecimento de bens, serviços e provimentos diversos
às FFAA. Não sou eu quem digo; isso está explícito em tantas passagens da END que
seria fastidioso transcrever qualquer citação. Pode-se adivinhar quem ficará
extremamente satisfeito com esse tipo de preferência nacional: os industriais patriotas,
que não contentes de justificar o protecionismo em nome da defesa do emprego
nacional, vão passar a invocar a soberania (nacional) em nome da defesa (nacional,
justamente). Embora algumas associações patronais se pareçam mais com “sindicatos
de ladrões” – no sentido figurado, claro, tal a promiscuidade mantida com autoridades,
políticos e supostos defensores da lei – muitas dessas “representações de classe” vivem
justamente de reciclar dinheiro público, ou melhor, da coletividade. Obviamente, não
existe reciclagem mais extensa, “gorda” e isenta de concorrência efetiva do que essas
compras governamentais de armas, sempre monopolizadas e cartelizadas em nome de
uma suposta segurança nacional.
Em defesa da END – mas acredito que ela não necessita que a defendam, pelo
menos não de ataques como este, débil e sem audiência – pode-se argumentar que todos
os governos fazem a mesma coisa e praticam os mesmos pecados: em nome da defesa e
da soberania nacional, esses governos (sabemos quais são) mantêm, sem qualquer
economia de escala ou critérios de custo-oportunidade, custosas indústrias de defesa,
pois, obviamente, “não se pode entregar a defesa nacional a interesses alienígenas”. O
patriotismo ‘patrioteiro’ – desculpem a redundância mas ela é necessária – é a forma
304
mais fácil de arrancar dinheiro da sociedade e de entregá-lo a quem já é rico, o que
compreende, certamente, os industriais da defesa e os representantes da indústria bélica
nacional (algumas estatais, por acaso).
Contra argumentos como esse, não há fatos capazes de modificar o assalto ao
orçamento público organizado por uma coalizão de usuários e fabricantes de produtos
de defesa, razão pela qual nem pretendo gastar meus fracos conhecimentos de economia
tentando demonstrar que existem, sim, formas mais racionais de se gastar os recursos
públicos, mesmo em áreas sensíveis como defesa e segurança. Em qualquer hipótese, a
END se ajusta inteiramente à ideologia do desenvolvimento nacional, essencialmente
marcada pelo nacionalismo protecionista e pelo vezo estatizante. Não serei eu a tentar
modificar esse estado de coisas, por isso desisto.
Mais importante, porém, é constatar como esse nacionalismo instintivo pode ser
profundamente contraditório com os objetivos da END, que supostamente são os da
constituição de FFAA modernas, capacitadas tecnologicamente, aptas a combater em
todas as vertentes mais sofisticadas da guerra moderna, como está expressamente
declarado no documento: “Três setores estratégicos – o espacial, o cibernético e o
nuclear – são essenciais para a defesa nacional”.
Pois bem, essa afirmação – melhor, essa pretensão, algo ilusória, como muitas
outras no documento – é inteiramente negada por outra afirmação mais à frente, que se
refere ao serviço militar obrigatório, supostamente encarregado de realizar o
“nivelamento republicano” (seja lá o que isso queira dizer para filósofos de plantão). No
parágrafo 2 dessa seção, depois de se confirmar que “[o] Serviço Militar Obrigatório
será (...) mantido e reforçado”, vem explicitamente afirmado que “[a]s Forças Armadas
limitarão e reverterão [merece ser sublinhado três vezes] a tendência de diminuir a
proporção de recrutas e de aumentar a proporção de soldados profissionais.” [sic três
vezes e espanto figurado!!!]
Ora, não existe proposta mais contraditória com o objetivo de se ter FFAA
modernas e capacitadas tecnologicamente do que a incorporação proporcionalmente
maior de recrutas ignorantes nessas forças. Trata-se de um grave equívoco, só
explicável por populismo ingênuo, igualitarismo instintivo ou alienação acadêmica de
quem propôs tamanha incongruência; ou, então, uma mistura desses três elementos, pois
não se consegue explicar como um documento desse teor, tão modernoso em seus
outros componentes, pode cometer erro tão grave na componente mais importante de
qualquer força militar moderna, os recursos humanos (aliás, de qualquer atividade
305
organizada por uma sociedade contemporânea). Espera-se que os chefes militares não
sucumbam a essa burrice monumental. Não se trata de propor a contratação de
mercenários modernos, combatendo por dinheiro, mas sim a profissionalização
crescente das FFAA, consoante tendências detectadas na maior parte das FFAA
contemporâneas. Um soldado moderno deve ter, no mínimo, a formação de um
engenheiro (não sei se estou exagerando...).
4. O que uma END realista e razoável poderia conter?
Pergunta fácil e, ao mesmo tempo, difícil de responder. Em primeiro lugar, ela
deveria conter – e isto é o mínimo – uma verdadeira estratégia de defesa, nacional ou
não (mas sei que, aqui, toco nos brios de nossos militares nacionalistas e outros
patrioteiros, já prontos a sacar suas armas para me fuzilar, por grave atentado à defesa
nacional). Bem, deixando de lado por um momento esse fantasma do caráter
supostamente nacional da nossa defesa, vejamos prioritariamente os dois outros
elementos em pauta: a estratégia e a defesa.
O que é uma estratégia? O que deveria conter de estratégico um documento
destinado às gloriosas FFAA, que nos defendem de insidiosos ataques inimigos (ou
simplesmente externos)? Uma estratégia é, segundo meu entendimento, um conjunto de
prescrições de natureza geral quanto a valores, princípios, objetivos gerais e
particulares, metas e finalidades da ação estatal que têm a ver com a existência, a
proteção, a manutenção da segurança, a preservação da independência e da soberania de
um determinado Estado, em função da qual disposições táticas são adotadas, fatores
logísticos definidos, meios específicos constituídos, todos com a finalidade de se atingir
os objetivos gerais e particulares definidos pelos estadistas na estratégia adotada pelos
responsáveis políticos do Estado em questão. Ou seja, mesmo que uma estratégia possa
ser eventualmente preparada e oferecida por generais e outros senhores da guerra, sua
definição última e a responsabilidade suprema pela sua forma teórica final e decisões
complementares pela implementação prática sempre incumbem à autoridade política do
Estado em causa.
Daí a primeira regra no processo de elaboração de uma estratégia qualquer, no
sentido aqui definido como obra de estadistas de natureza profundamente política e de
escopo e significado essencialmente políticos, na acepção “estatal” desses termos (que
tem a ver com o conceito anglossaxão de statecraft, que poderia ser imperfeitamente
traduzido por “estadismo”). Uma estratégia não diz respeito apenas a generais e
306
senhores da guerra, e sim a toda a nação e seus responsáveis maiores. Ela precisa
ostentar, em primeiro lugar, clareza geral de concepção, precisão nos seus desígnios e
objetivos principais, profundidade similar no estabelecimento de suas finalidades
secundárias, planejamento quanto aos meios adequados e quanto ao alcance, eficácia,
possibilidades e limites de suas ferramentas privilegiadas e, também, dispor de um
compromisso firme com a sua colocação em vigor e implementação decisiva por parte
dos estadistas instalados no comando da nação, quaisquer que sejam os obstáculos e
dificuldades que se apresentem no processo de sua implementação.
É evidente, nesse sentido, que a coerência entre fins e meios da estratégia
adotada depende de uma visão clara desses responsáveis políticos – tanto civis quanto
militares, estes agindo na condição de planejadores políticos visando finalidades
militares, se a estratégia adotada é basicamente militar – quanto à capacidade relativa da
nação em sustentar essa determinada estratégia, que precisa ser minimamente
comensurável aos recursos efetivos ou potencias à disposição da nação. Sendo assim,
qualquer exercício em torno de uma estratégia nacional depende de um conhecimento
acurado de quais são as fortalezas e fraquezas da nação em causa, sem o que o exercício
conduzido poderá traduzir-se em mero esforço de objetivos ideais, ou em uma coleção
irrealista de desejos inatingíveis. Um levantamento preliminar dos recursos, das
possibilidades e limites ao estabelecimento de uma determinada estratégia configura-se
uma tarefa prévia indispensável à boa definição de uma estratégia realista e compatível
com os meios e finalidades nela estabelecidos.
Levando-se em conta esses critérios metodológicos, parece que a END falha em
cumprir requisitos mínimos de uma estratégia. Ela não diz por que, e com quais
finalidades, deseja ter para o Brasil FFAA dotadas das características apontadas em seus
vetores principais de atuação (espacial, cibernético e nuclear); tampouco diz quais
seriam os grandes objetivos da nação em face de obstáculos precisos à consecução
desses objetivos (que permanecem indefinidos); não consegue sequer dizer para o quê
ou para quem o Brasil teria de dizer ‘não’, como masculamente pretendem seus
formuladores; e falha, estupidamente, em se dotar dos recursos humanos adequados às
suas altas finalidades (que ela não se sabe dizer quais são, mas que pretende atingir, em
todo caso, muito mais com recrutas ignorantes do que com soldados profissionais e
administradores competentes, recrutados no mercado e operando em condições de
eficiência quanto aos meios e com cobrança de resultados).
307
Se com todas essas falhas a END pretende continuar a ser chamada pelo nome
pomposo de ‘estratégia’ – e ainda mais ‘de defesa’ – é evidente que ela precisa passar
por uma remodelação conceitual e um sério esforço de redefinição de objetivos e metas,
sem o que ela permanecerá o que é atualmente: uma assemblagem de conceitos vagos
sem conexão com o Brasil real, coroando três listas de compras militares para cada uma
das forcas singulares; tudo isso, cabe recordar, sem conseguir dizer o que pretende
exatamente o Brasil no contexto do mundo em que vivemos, hic et nunc, com alguma
previsão para as próximas décadas, como seria de rigor em documentos desse tipo. Sem
uma exposição clara do que é o Brasil – e do que constitui a sua defesa, se é que existe
uma, atualmente –, de suas capacidades materiais e possibilidades humanas, de seus
objetivos diplomáticos e econômicos, agora e futuramente, sem essa visão clara de
quem somos, do quê pretendemos em nossa região e no mundo, no futuro previsível,
sem uma adequação entre essas finalidades e os instrumentos disponíveis (imediatos e
mediatos), sem um planejamento acurado do que pretendemos obter com os nossos
próprios meios ou em cooperação com aliados potenciais, sem todos esses elementos
conceituais e empíricos, fica difícil estabelecer uma estratégia digna desse nome e
prover os recursos necessários à sua consecução.
Não se exige, obviamente, que os formuladores de uma grande estratégia
nacional sejam todos planejadores competentes, exímios economistas ou planejadores
experientes, mas seria conveniente que os estadistas e generais que forem conceber,
desenhar e redigir um tal documento se cerquem de assessores dotados de algumas
competências firmadas nessas áreas básicas da ação estatal. Os seus formuladores
podem ser, inclusive, filósofos ou sociólogos (sem esquecer os advogados e outros
mestres de ciências afins), mas algumas tarefas de planejamento, de cálculo econômico
e de administração, de organização e métodos seriam muito bem-vindas antes que
amadores se lancem nessa ingente tarefa. Não é possível, por exemplo, que uma
magnífica estratégia nacional se veja obstaculizada em sua implementação por uma
completa falta de correspondência entre os objetivos ambiciosos nela estabelecidos e os
parcos meios colocados à disposição das autoridades de aplicação, como resultado de
cálculos irrealistas em torno do PIB nacional – presente e futuro – e as dimensões
ambiciosas de uma tal grande estratégia.
A rigor, uma estratégia do tipo da que se concebe aqui – ou seja, bem mais
‘prussiana’ do que ‘hegeliana’ – não é obra de alienígenas trabalhando com uma
cornucópia infindável de recursos sempre abundantes. Nunca o é: aqueles que acreditam
308
que o orçamento do Pentágono e as maravilhosas máquinas de guerra que ali são
encomendadas – inclusive com grande desperdício e alguma irracionalidade nos gastos
– fluem diretamente das arcas do Tesouro (eventualmente por bondade e graça do
Congresso), por certo ignoram o papel da professorinha primária e da produtividade
sistêmica do trabalhadores americanos na montagem secular de um modo inventivo de
produção que encantou Schumpeter e deslumbraria Marx. Doses mínimas de realismo
orçamentário e uma visão adequada das capacidades econômicas nacionais – inclusive
quanto ao endividamento externo – são sempre desejáveis nessa gloriosa missão de
desenhar e escrever uma estratégia. Desse ponto de vista, creio, sinceramente, que a
END falha completamente em juntar meios e fins, em definir possibilidades e limites,
em juntar desejos com realidade. Ela parece esquecer que nossas FFAA vivem num país
real, chamado Brasil, do início do século 21, situado a centro-leste de um continente
específico, localizado no hemisfério americano, cercado por vizinhos, digamos,
peculiares, que apresentam características muito definidas, sobre as quais não é
necessário estender-se no momento (mas que convém levar em consideração na redação
dessa grande estratégia).
Pois bem, esperando que os filósofos da grande estratégia brasileira baixem à
terra, seria conveniente que eles dissessem alguma coisa em torno da defesa, ou seja,
essas “forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou (...) outros agentes não-
estatais”. Da mesma forma, seria de todo indicado que os formuladores de uma END
razoável consigam articular algo coerente em torno das “variadas missões [das FFAA],
em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação política do Estado”. Sem tratar
desses ambientes concretos, torna-se impossível combater o bom combate, ou seja, estar
aprestado para o inimigo provável, não por aquele imaginado por mentes iluminadas
que vivem nos salões acarpetados das academias e burocracias do Estado. Por exemplo:
você não manda um porta-aviões para combater guerrilheiros na selva, nem arma uma
grande esquadra quando o que se necessita é de uma Marinha de águas marrons, não
águas azuis; mísseis geralmente não são recomendados para o emprego contra
contrabandistas “pés-de-chinelo”, como parecem ser as HE mais prováveis das nossas
gloriosas FFAA.
Claro, elas têm uma necessidade psicológica de também se preparar contra esses
inimigos poderosos que figuram nas HE dos nossos anti-imperialistas oficiais, mas
conviria antes fazer um curso de ciência política e, na sequência, uma pós-graduação em
relações internacionais, para melhor programar o uso efetivo das nossas FFAA. O que
309
não é possível seria torrar os escassos – por definição – recursos da gloriosa mãe gentil,
contemplando toda a panóplia possível de ferramentas militares para todas as HE
humanamente concebíveis no horizonte histórico do relacionamento regional e
internacional do Brasil. Um pouco de razão e outro tanto de sensibilidade sempre são
bem vindos, mesmo nessas rudes matérias de defesa e segurança.
Todo exercício intelectual é bem vindo, sobretudo quando se pode revisá-lo com
base em dados da realidade, submetendo-o às armas da crítica (para que ele não padeça
sob a crítica das armas, com a licença de Marx para o uso desta sua paráfrase). Se os
formuladores originais da END padecem de vazio geopolítico, nada melhor do que
engajar novos filósofos – com alguns engenheiros e economistas em apoio – para
revisar, corrigir e melhorar o documento em questão. Todos ganhariam com isso: a
nação, em primeiro lugar, que saberia exatamente – pelo menos é o que se supõe –
quanto lhe pretendem subtrair em transparentes transações orçamentárias; as próprias
FFAA, que saberiam que tipo de inimigo combater – posto que a END atual é
totalmente vaga a esse respeito; e também, talvez seja o mais importante, a lógica
elementar e a racionalidade stricto sensu, que sempre ganham quando documentos de
tal importância atendem a seus requisitos formais e subscrevem a cânones mínimos de
coerência intrínseca e de adequação à realidade.
Nem tudo está perdido, porém, desde que se considere que a END is not the end,
se me permitem o jeux de mots inevitável. Ela representa um bom começo, posto que já
contém a shopping list desejada por cada uma das forças (ainda que, sob vários
aspectos, totalmente inadequada às reais funções presumíveis de cada uma delas, e
conjuntamente). Seria preciso que estadistas de verdade e generais experimentados –
prussianos e hegelianos, ambas as combinações são possíveis – pudessem definir as
ameaças concretas que pesam sobre o Brasil – if any – e, a partir daí, estabelecer os
parâmetros básicos de uma estratégia de defesa que faça jus a esse conceito. Talvez falte
ao documento aquelas bonitas ações cinematográficas que corresponderiam aos cenários
de grande geopolítica com que sonham nossos soldados; mas isso talvez seja
simplesmente porque o Brasil precisa ajustar seu desejo de brilhar no mundo às reais
dimensões dos desafios que se colocam concretamente em seu ambiente de atuação,
quais sejam, os cenários de pequena geopolítica na região ou a serviço da ONU.
Essa talvez seja a frustração – essencialmente teórica – dos hegelianos que
conceberam pela primeira vez o documento: eles pretendiam vislumbrar (talvez até
desejavam secretamente) enfrentamentos com potências hegemônicas e acabam tendo
310
de caçar marginais nas favelas do Haiti ou traficantes analfabetos nas selvas e morros da
América Latina; no máximo, talvez consigam separar facções guerreiras em territórios
longínquos, a serviço do CSNU, sem que talvez jamais consigam exercer seus fabulosos
dotes bélicos contra inimigos de verdade numa guerra de posições. Por mais que a
realidade não se encaixe nos planos grandiosos, é ela que precisa ser enfrentada, não os
conflitos imaginários (sobretudo contra os inimigos errados, como certamente alguns
mais alucinados podem estar cogitando no seu íntimo).
Ao fim e ao cabo, uma estratégia de defesa – deixemos o nacional de lado, pois
ele será fatalmente reinserido por nossos bravos formuladores – deve responder às
necessidades percebidas por estadistas e generais, não corresponder às angústias
teóricas de alguns ideólogos disfarçados em planejadores, como parece ter sido o caso
desta primeira experiência de redação. Os requisitos metodológicos e os componentes
conceituais são relativamente simples: o documento deve ser uma estratégia e ele deve
tratar de defesa. Para tanto seria indispensável algum trabalho preliminar de análise de
terreno – inclusive no contexto global –, de balanço de recursos, de identificação de
ameaças credíveis, de definição de ferramentas, de estimação de custos, de
estabelecimento de planos táticos e de disposição das forcas nos espaços definidos pela
estratégia. Pode-se até ser ambicioso quanto aos meios, mas não se deve deixar o
terreno no qual se pisa para passear pelo Olimpo filosófico dos deuses da guerra.
Em uma palavra, questões militares e assuntos diplomáticos não são encargos
para amadores, como soe acontecer ocasionalmente em certos meios (ou épocas). O
preço a pagar pelo idealismo nessas matérias é muito alto, e ele não tem a ver apenas
com os recursos financeiros da nação – ou seja, o meu, o seu, o nosso dinheiro – e sim
com a completa inadequação de uma estratégia qualquer – qualquer que seja o seu
conteúdo nacional – com os fins pretendidos, supostamente de defesa. A menos, é claro,
que a intenção não declarada seja a de não fazer a guerra, mesmo em última instância, o
que sempre pode ser uma escolha de civis (eventualmente diplomatas), mas que na
mente dos generais não parece ser a opção mais adequada. Back to work!
2066. “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de
Defesa”, Lisboa-Paris, 25.09.2009; transcrição: Salon-de-Provence, 28.09.2009;
redação preliminar: Brasília, voo Rio-Paris, 28.11.2009, 17 p. Análise da END do
ponto de vista conceitual e puramente estratégico, complementando análise
311
preliminar, de caráter econômico, elaborada em fevereiro (n. 1984). Divulgado no
site de estudos estratégicos da Federal de Juiz de Fora, seção Defesa (20.01.2010;
link: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ANFG.pdf). Publicada em
Mundorama (1.06.2010; link: http://mundorama.net/2010/06/01/a-arte-de-nao-
fazer-a-guerra-novos-comentarios-a-estrategia-nacional-de-defesa-por-paulo-
roberto-de-almeida/comment-page-1/#comment-1677). Republicado em Meridiano
47 (vol. 11, n. 119, junho 2010, p. 21-31; ISBN: 1518-1219; link para o boletim:
http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/08/v11n119.pdf; link para o artigo:
http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/638 ou:
http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Publicada na Revista
de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; Vol. 1, No 2; jul.-dez. 2010, p. 5-20; link :
http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2).
Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais
e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 971 (Meridiano) e
1001 (Revista de Geopolítica).
313
Quinta Parte
Ideias, cultura, problemas
315
28. O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?
1. O que restou, vinte anos depois, da tese controversa de Fukuyama?
No verão de 1989, a revista americana National Interest publicava um ensaio
teórico – mais exatamente de filosofia da História – do intelectual nipo-americano
Francis Fukuyama sobre os sinais – até então simplesmente anunciadores – do fim da
Guerra Fria, cujo título estava destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso:
“The End of History?”.32 Vinte anos depois, em vista das muitas críticas feitas naquela
conjuntura – e ainda hoje – às principais teses do autor, vale a pena retomar seus
principais argumentos e verificar se eles ainda conservam alguma validade para nossos
tempos, que poderiam ser considerados como de pós-Guerra Fria, mas que alguns
interpretam, ou consideram efetivamente, como de volta à Guerra Fria, ainda que sob
novas modalidades (com uma Rússia singularmente diminuída e uma China hesitante
em se posicionar como contendor estratégico dos Estados Unidos).
Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear desses argumentos, qualquer
que seja sua validade relativa ou absoluta para o tema que nos interessa – qual seja, o da
natureza das opções abertas aos países em termos de reforma e desenvolvimento
paralelos do sistema econômico e do regime político, que Fukuyama identificava com a
redução dessas opções à democracia de mercado – cabe chamar a atenção para uma
peculiaridade geralmente descurada no debate anterior (e talvez atual) sobre a validade
das teses de Fukuyama, sobretudo por aqueles que recusavam, in limine, a essência
mesma do argumento do autor. Esta peculiaridade tem a ver, basicamente, com um
simples sinal diacrítico: o ponto de interrogação ao final do título, geralmente ignorado
pelos críticos das teses de Fukuyama, e provavelmente também por aqueles que apóiam,
em grande medida, o sentido dos seus argumentos. Ou seja, Fukuyama não fazia uma
afirmação peremptória, mas levantava uma hipótese, a do final presumido da história,
numa análise de corte essencialmente conceitual, ainda que fortemente embasada nos
fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma sentença de caráter terminativo,
indicando um “congelamento” das formas possíveis de organização social, econômica e
32 Ver Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (Summer 1989, p. 3-
18), bem como seu livro sobre a questão: The End of History and the Last Man (New York:
Free Press, 1992).
316
política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver com a possibilidade de
alternativas credíveis às democracias liberais de mercado, ponto.
O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de desmantelar boa parte das
críticas superficiais, embora ele não elimine uma discussão responsável sobre a essência
de sua tese, que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. A tese –
vale a pena resumir desde o início – tem a ver com o caráter incontornável da
democracia de mercado como sendo uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa
época’, como poderia argumentar – mas a propósito do marxismo – Jean Paul Sartre,
um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da tese original de Hegel, através de
Alexandre Kojève.
2. O que Fukuyama de fato escreveu?
A tese principal era a de que, após um século de emergência e declínio dos
regimes fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises
econômicas, de contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de
corte ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja o do triunfo
inquestionável – an unabashed victory, nas palavras de Fukuyama – do sistema liberal
ocidental. Segundo ele, tratava-se de um triunfo da “ideia ocidental”, tornada evidente
pela exaustão das alternativas viáveis ao liberalismo ocidental. Esse triunfo era
mostrado, em primeiro lugar, pela disseminação da cultura consumista ocidental nos
dois países mais importantes do ‘mundo alternativo’, a China e a União Soviética (cabe
registrar, imediatamente, que em nenhum momento de sua análise, Fukuyama esperava
a dissolução imediata do regime monocrático e o rápido desaparecimento do próprio
império soviético). Como ele mesmo observou logo ao início do artigo, “a vitória do
liberalismo ocorreu primariamente no domínio das idéias, ou da consciência, e é ainda
incompleta no mundo real ou material”.
Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama, “há razões poderosas
para acreditar que é essa ideia que irá governar o mundo real no longo prazo” (ênfase
original). Se aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o qual, a longo
prazo, todos estaremos mortos, essa afirmação do cientista político americano o deixa
inteiramente à vontade para acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos e
econômicos imediatos e de médio prazo, retirando sua responsabilidade sobre a
validade de sua tese na perspectiva do cenário de curto prazo. Esse fato pode
transformar sua tese principal no equivalente acadêmico dessas previsões de
317
cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido a realização de seus
exercícios de futurologia amadora, mas caberia aceitar, em princípio, as premissas de
Fukuyama como uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia rigorosa.
Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma discussão em torno das
questões teóricas relativas à natureza da mudança histórica, processo que ele remonta a
Hegel e Marx, sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na história
universal.33 O fim da história, na concepção hegeliana (tal como interpretada por
Kojève), estava identificado com a afirmação dos princípios do direito universal à
liberdade e da legitimação de um sistema de governo apenas com o consentimento e a
aprovação explícita dos governados, o que foi chamado de “Estado homogêneo
universal”. Uma vez que todas as contradições anteriores já teriam sido resolvidas com
a aceitação e por meio do estabelecimento desse Estado – e como, para Hegel, o mundo
real deveria corresponder ao mundo ideal, pelo menos aquele que figurava na cabeça do
filósofo –, então não existiriam mais espaços para conflitos de maior escopo em torno
da organização política desse Estado, restando apenas encaminhar e resolver os
pequenos problemas da atividade econômica e da política corrente. O mundo se
converteria, então, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de Engels
para representar a situação das sociedades humanas na fase pós-socialista, quando
supostamente já não mais existiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação
política sobre os homens.
Obviamente, Hegel não era tão simplista como a exposição acima poderia
sugerir, sobretudo com esse ‘idealismo filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo
real. Para o filósofo alemão – mais especificamente prussiano, talvez –, as contradições
existentes no mundo real se formam a partir de um conflito de idéias, ou seja, de
diferentes concepções sobre como deveria ser organizado o mundo real da política e da
economia. As distinções entre um mundo e outro seriam apenas aparentes, posto que as
idéias que encontravam abrigo na consciência dos homens acabariam por se tornar
necessidades do mundo real, fechando assim o ciclo de realização da idéia universal.34
33 Hegel não foi o primeiro, em termos absolutos; antes dele, filósofos escoceses (como
Ferguson) e franceses (como Condorcet) já tinham debatido a idéia do progresso da civilização,
muitas vezes numa perspectiva linear, seguindo a flecha do tempo; mas foi Hegel quem deu à
idéia de progresso um sentido de necessidade histórica, que o fez situar-se no centro da
evolução possível das sociedades humanas.
34 Marx inverteu esse processo, como se sabe, mas apenas para converter o socialismo na
realização necessária, em última instância, da idéia universal, uma espécie de fatalismo pelo
lado da sucessão inevitável dos ‘modos de produção’, um conceito que ele cunhou e que ainda
318
A consequência prática dessa concepção seria a de que, posto que as
democracias de mercado provaram sua capacidade de não apenas resistir aos desafios
colocados por crises econômicas e por guerras devastadoras, mas também de atender
aos requerimentos suscetíveis de trazer prosperidade e riqueza a todos os países que
aderiram a seus princípios organizadores, elas estavam habilitadas a cumprir seu
mandato hegeliano de realizar o ‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um
ciclo completo da história. À pergunta – sempre o ponto de interrogação – de saber se
chegamos ao fim da história, deve-se agregar esta outra, sobre se existem contradições
tão fundamentais na vida humana que não possam ser encaminhadas através de
qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econômica que não o liberalismo
moderno de mercado. Não se trata de saber o que pode ocorrer, em termos práticos, na
Albânia ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos de ‘herança
ideológica comum da humanidade’.
Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do século 20, foram dois os
desafios mais importantes ao liberalismo político e econômico: o fascismo e o
comunismo. Ambos poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de
regimes anti- ou aliberais, no terreno político, e sob o conceito de sistemas coletivistas
no domínio econômico (embora o comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido
muito mais ‘coletivista’ do que o fascismo). Tendo este último sido enterrado sob os
escombros da Segunda Guerra Mundial, restava o comunismo, que, no momento em
que Fukuyama redigia seu panfleto hegeliano, ainda não tinha sido enterrado de vez.
Essa recordação é importante: afinal de contas, na segunda metade de 1988 e o início de
1989, quando Fukuyama redigiu seu ensaio especulativo, Gorbachev ainda se debatia
para implementar sua glasnost e sua perestroika, destinadas, como se sabe, não a
enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado em seu funcionamento
efetivo, de maneira que a nova NEP sob o comando de um reformista do Partido
Comunista pudesse assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro lado, a
China de Deng Xiao-Ping exibia, naquela conjuntura, apenas 20% de sistema de
mercado como locus da produção global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC
hoje é usado por discípulos, de modo geral, mas também por opositores dos próprios sistemas
hegeliano e marxista.
319
pretende, até hoje, construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com
características chinesas”.35
Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os maiores opositores do
marxismo e das economias coletivistas nos países ocidentais estão os ‘perfeitos
materialistas’ de Wall Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não
deixam de ser defensores de princípios similares aos dos marxistas. Como ele escreve:
“A inclinação materialista do pensamento moderno é uma característica não apenas do
pessoal da Esquerda, que podem ser simpáticos ao Marxismo, mas de muitos
antimarxistas passionais também. De fato, existe na direita o que se poderia rotular de
escola do Wall Street Journal do materialismo determinista, que relativiza a importância
da ideologia e da cultura e vê o homem como sendo essencialmente um indivíduo
racional, maximizador dos lucros. É precisamente esse tipo de indivíduo e a sua busca
de incentivos materiais que aparece como a base da vida econômica nos manuais de
economia.”
Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra em seguida Fukuyama, é
essa mesma escola do materialismo determinista de Wall Street Journal que aponta para
os notáveis sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como uma
evidência da viabilidade da economia de mercados livres, com a implicação decorrente
de que todas as sociedades poderiam conhecer desenvolvimentos similares se elas
simplesmente deixassem as pessoas perseguirem livremente seus interesses materiais. O
próprio Fukuyama aponta para os elementos “ideais” presentes nessa transformação e
na ulterior transição do socialismo ao capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas
fracassadas experiências do socialismo real já tinham constatado há muito tempo que o
sistema simplesmente não funcionava. Registre-se que Fukuyama escrevia antes que o
socialismo implodisse de fato e que os chineses formalizassem sua receita original de
transição do socialismo ao capitalismo, com as justificativas teóricas disponíveis, o que
foi feito apenas a partir de 1991-92.
35 Sobre essa verdadeira “contradição nos termos” como disse Marx a propósito do sistema de
Proudhon, exposto em Filosofia da Miséria, e criticado por ele em Miséria da Filosofia (1847)
–, ver meu artigo: “Falácias acadêmicas, 13: o mito do socialismo de mercado na China”,
Espaço Acadêmico (ano 9, n. 101, outubro 2009, p. 41-50; disponível:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8295/4691).
320
3. Fukuyama tinha razão?
Na terceira parte de seu ensaio, Fukuyama se pergunta se atingimos, de fato, o
fim da história. “Existem, em outras palavras, quaisquer ‘contradições’ fundamentais na
vida humana que não possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e que
poderiam ser solucionadas por uma estrutura político-econômica alternativa? Se
aceitarmos as premissas idealistas expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a
esta questão no terreno da ideologia e da consciência.” Seria verdade essa afirmação de
Fukuyama, em sua época e ainda hoje?
A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História”, apresentada com um suporte
hegeliano aparentemente consistente, é de tão fácil aceitação, do ponto de vista
intelectual, quanto desprovida de maior importância explicativa, do ponto de vista
prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece um excelente terreno de
manobras para divagações ‘inocentes’ sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo
ocidental. Quando se trata, no entanto, de – parafraseando a décima-primeira tese de
Marx sobre Feuerbach – não mais “interpretar” o mundo, simplesmente, mas de
“transformá-lo”, verdadeiramente, essa nova tese ‘jovem hegeliana’ perde-se em seu
próprio ‘pântano’ ideológico.
Em outros termos, se a História realmente aproxima-se de seu final filosófico —
isto é, se a Razão exauriu as possibilidades conceituais de explicar o Real — e se a
organização formal do mundo material confunde-se com sua atual configuração
histórica, isto não quer dizer que a história esteja perto de seu final concreto — isto é,
que o Real tenha esgotado de vez as possibilidades práticas de ordenar o mundo em
conformidade com o reino da Razão — ou que a organização material do mundo
potencial esteja limitada a um determinado sistema sócio-político. Sem dúvida alguma,
muito ainda resta a ser feito para que o homem comum possa trabalhar pela manhã,
pescar na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como queria o Marx
hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior parte da humanidade não foi ainda
advertida sobre essas novas possibilidades de épanouissement individuel.
Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente correta em sua aparente
simplicidade propositiva: não há mais contestação ideológica possível – de origem
‘socialista’, entenda-se bem – à hegemonia filosófica, política e econômica do
liberalismo ocidental. Este último emergiu claramente vencedor das contendas
ideológicas do período de Guerra Fria; mas não apenas ideológicas, as práticas também:
com efeito, o socialismo não foi ‘derrotado’ pelo capitalismo, de qualquer forma
321
concreta e visível, ele simplesmente implodiu pela sua absoluta incapacidade de
produzir, não mísseis nucleares, mas meias de nylon. Parodiando o autor da Critique de
la Raison Dialectique, até se poderia adivinhar a brincadeira outre-tombe que, a
propósito do liberalismo ocidental, Aron dirigiria contra Sartre: à diferença do
marxismo, ela, sim, a economia liberal de mercado, teria se tornado o “horizonte
insuperável de nossa época”.
É altamente improvável, porém, que Aron concordasse com a previsão de
Fukuyama sobre os états d’âme associados a um liberalismo fin-de-siècle: uma clara
época de tédio (a very sad time, prospects of centuries of boredom, como diz
Fukuyama), marcada pela preocupação quase que exclusiva com exigências materiais,
sem as experiências ‘heroicas’ ou ‘excitantes’ que todo período maniqueísta sabe
suscitar. Relativamente pessimista – dotado de um scepticisme serein, preferiria dizer
ele mesmo – no que se refere às realidades dos Estados e dos sistemas de poder
existentes, Aron não alimentaria nenhuma ilusão quanto a que o alegre ‘enterro do
socialismo’ operado na última década do século 20 pudesse conduzir a uma ‘primavera
das democracias’ razoavelmente estável ou a uma versão atualizada da ‘paz universal’
prometida em meados do século 18 por um prelado francês, e um pouco mais tarde pelo
próprio Kant.36
Em todo caso, a anarquia política característica da ordem interestatal
contemporânea, bem como os enormes diferenciais de recursos e de poder entre os
Estados, no quadro de um sistema internacional ainda fortemente hierarquizado,
parecem garantir um “fim da História” bem movimentado para os atores que
continuarem a participar desse cenário ‘pós-socialista’. De fato, não é credível que
disputas hegemônicas e conflitos de poder venham a termo apenas porque a
superestrutura ideológica do sistema mundial foi transformada pelo súbito
desaparecimento de um dos seus polos, uma ‘invenção’ mal concebida de engenharia
social, mais mal implementada ainda, que num certo momento fez ‘tilt’, deu dois
suspiros e depois morreu, sem choro e sem vela (bem, ocorreram, sim, algumas
lágrimas e condolências sentidas de algumas viúvas do comunismo e de órfãos do
socialismo, aqui mesmo no Brasil).
36 Ver, a esse propósito, meu ensaio “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era
contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria Celina d’Araujo e Samuel Alves Soares (orgs.),
Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas: II Encontro da Abed (Campinas: Mercado de
Letras, 2009, p. 19-38; disponível:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).
322
Entendamo-nos bem: Aron certamente não se importaria em que os aléas de
l’Histoire conduzissem a Humanidade a um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é,
livre de uma vez por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para ele, a
superação da Machtpolitik da era bipolar não significava em absoluto que as relações
internacionais contemporâneas – e presumivelmente as do futuro próximo – passassem
a ser desprovidas, mesmo num cenário multipolar, de todo e qualquer elemento de
‘política de poder’. A despeito da crescente afirmação do primado do direito
internacional – ou seja, da ‘força da razão’ — a Machtpolitik continuaria a existir por
largo tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de exercício puro e
simples da ‘razão da força’.
A diferença está, provavelmente, em que, no cenário otimista traçado por
Fukuyama, o desafio ideológico representado pelo socialismo – the socialist alternative,
em suas palavras – simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’au-
delà) o ‘sorriso cético’ de Raymond Aron – que, todavia, nunca reduziu o confronto
interimperial a um mero enfrentamento ideológico –, não podemos descartar, de plano,
a versão revista e melhorada por Fukuyama da tese de Bell sobre o ‘fim das ideologias’.
Para fins do argumento em espécie, isto é, para a conformação de nosso ‘retorno ao
futuro’ do socialismo, a differentia specifica representada pelo afastamento do
concorrente ideológico pode ser funcionalmente explicativa para justificar um futuro
“estado universal homogêneo” ao estilo hegeliano.
Numa época em os modernos ideólogos identificaram, repetidas vezes, sinais de
“fim das ideologias” (ou, agora, do próprio “fim da História”), perde-se facilmente a
visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo
contemporâneo. O Ocidente em geral, nos últimos setenta anos, e a Europa em
particular, nos últimos quarenta anos, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste.
Sua face mais ameaçadora produziu o que, acertadamente, ficou identificado sob o
conceito de “guerra fria”. Depois de pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa
verdadeira hantise estratégico-ideológica parece agora ter-se finalmente encaminhado
para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (como
diria Engels).
A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou indelevelmente toda a
história da segunda metade do século 20, não foi, provavelmente, apenas um produto de
ideologias conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas e militares
construídas a partir das “intenções malévolas” do concorrente estratégico que lhe deram
323
uma dimensão jamais vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios da
antiguidade clássica, seja entre os Estados-nacionais da era moderna). Mais que tudo,
foi a crença ideológica – quase religiosa, podemos dizer – em uma missão histórica
especificamente socialista, qual seja, a de enterrar não apenas o inimigo burguês, mas o
próprio modo de produção capitalista, que exacerbou tremendamente o ‘conflito
ideológico global’ (como diriam os generais da geopolítica), levando-o, em algumas
ocasiões, ao limiar da escalada nuclear.
O afastamento da “espoleta ideológica” – a iskra leninista – do socialismo,
antecipada pela tese sobre o “fim da História”, significaria agora que o mundo estaria
encaminhando-se, finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra) ?
Descartando-se a permanência dos chamados conflitos regionais e das guerras locais
conduzidas por motivos étnicos ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco
a ver com o fim do desafio socialista: o abafamento das paixões bélicas nas sociedades
contemporâneas é mais o resultado de mudanças substantivas na ordem econômica
global do que devido a motivos de natureza política ou ideológica (a falência do
socialismo, finalmente, não significou apenas a bancarrota de uma idéia, mas o
esboroamento de todo um ‘modo de produção’).
Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista pelas “guerras de
religião” contemporâneas (algo de que não se pode acusar Fukuyama) nada mais
significa senão uma racionalização filosófico-sociológica a posteriori pouco condizente
com uma realidade histórica muito mais complexa que todas as vãs “filosofias da
história”, mesmo em versão supostamente hegeliana. Num século marcado pelas
ideologias, o socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva delas,
perdendo para o fascismo em várias frentes.
Um exame imparcial da história do período anterior a 1945, mostraria que não
foi a oposição entre,’– conceda-se-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas – que
provocou o quadro de instabilidade política e militar durante a primeira metade do
século 20 e que precipitou os conflitos que retirariam definitivamente da Europa as
alavancas do poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase
“feudal” – como diria o historiador Arno Mayer37 –, latentes no continente europeu
desde finais do século 19, que permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele,
do conflito ideológico global. Basta com mencionar a ação agressiva das novas
37 A caracterização é do historiador Arno Mayer, The Persistence of the Old Regime: Europe to
the Great War (London: Croom Helm, 1981); existe edição brasileira.
324
potências da mittelEuropa para escapar ao cerco das velhas potências imperiais, ou o
papel das ideologias fascistas do “espaço vital” e da “regeneração nacional” no entre-
guerras, para dar a exata dimensão da responsabilidade do socialismo no caótico quadro
político-militar da modernidade. A ‘ameaça socialista’ sempre foi menor do que se
imaginou e poderia mesmo ter sido simplesmente irrelevante, para todos os efeitos
práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso – os famosos ifs da história
virtual – que costumam esconder-se nas já mencionadas dobras da História.
Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no
contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas
fecundo, ‘acidente’ histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes
durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques
exilados, praticamente desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em
sua terra natal. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava
apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente de guerra oriental, podendo
servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em cataclismo histórico de
proporções inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações
Leste-Oeste.
Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas intervenções das
potências ocidentais em território russo (ou soviético) contribuíram mais para alimentar
a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta “luta de
classes” em escala internacional. No segundo pós-guerra, igualmente, a busca constante
do rompimento do ‘cerco imperialista’ era mais ditada por considerações de natureza
estratégica (segurança militar) do que por reflexos de princípios ideológicos. Para
Stalin, por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o
‘internacionalismo proletário’, este último invariavelmente servindo de disfarce
ideológico aos interesses do Estado soviético. Exatamente por causa da a razão de
Estado, que prevalece sobre as ideologias, não existe um “fim da história”, como o
próprio Fukuyama reconhece ao final de seu ensaio.
4. Do fim da História ao fim da Geografia
Seja qual for o destino futuro da ‘ideologia socialista’, seu itinerário terá pouco a
ver com o ocaso da História. Na verdade, estamos assistindo, não tanto ao fim da
História, quanto, mais propriamente, aos limites da Geografia, a partir da crescente
globalização dos circuitos produtivos e da interdependência acentuada das economias
325
desenvolvidas. O próprio Fukuyama observou que o desafio da alternativa socialista
nunca esteve, realmente, no terreno das possibilidades concretas no Atlântico norte,
região de capitalismos bem estabelecidos e de democracias de mercado relativamente
estáveis – com a exceção, talvez, da periferia mediterrânea – e que o sucesso dessa
alternativa foi, na verdade, sustentado por experiências em sua periferia: na Ásia, na
África e numa simples ilha da América Latina.
De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma penetração duradoura
– hoje largamente simbólica – mas é nas universidades públicas da América Latina –
em grande medida medíocres em termos de produção humanística significativa – onde o
marxismo esclerosado ainda consegue uma ridícula sobrevivência, embora desprovido
de qualquer inovação filosófica ou de melhorias significativas nas suas propostas
econômicas relevantes.38 Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ da
liderança plutocrática chinesa constitua um sobrevivência qualquer da ideologia
marxista, ou que ela represente um desafio fundamental ao capitalismo real: os líderes
chineses, desde Deng Xiao-Ping, perceberam que a sobrevivência do ‘comunismo’ na
China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua construção eles vem se
dedicando com extraordinário esforço e o zelo engajado dos verdadeiros crentes, os
‘novos cristãos’ da verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados.
O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer o destino do
socialismo, mas pura e simplesmente o poder político nas mãos dos novos mandarins
chineses, uma nova classe basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas
que foi esperta o bastante para construir um sistema de dominação que transforma os
novos capitalistas em seus aliados permanentes, posto que, como ensina Fernand
Braudel, o capitalismo só triunfa, de verdade, quando ele transforma em Estado, quando
ele é o Estado.39 Alguns observadores já chamaram esse novo sistema de
38 Veja-se, a esse propósito, a nota crítica que fiz, a propósito de um desses exemplos
lamentáveis de marxismo esclerosado da academia brasileira, nesta texto: “Marxistas totalmente
contornáveis” [Resenha de Jorge Nóvoa (org.): Incontornável Marx (Salvador/São Paulo:
Unesp/UFBA, 2007)], Espaço Acadêmico (ano 7, n. 84, maio 2008, disponível:
http://www.espacoacademico.com.br/084/84res_pra.htm); ela suscitou, como seria de se
esperar, reações enraivecidas por parte da tribo em questão, devidamente registradas neste
artigo: “Manifesto Comunista, ou quase...: dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de
nervos (a propósito de uma simples resenha)”, Espaço Acadêmico (ano 8, n. 85, junho de 2008;
disponível: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm).
39 Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-XVIIIème
siècles (Paris: Armand Colin, 1979, 3 vols.).
326
“corporativismo leninista”,40 mas o nome, na verdade, importa menos do que a
realidade tangível do novo sistema chinês: esse sistema é essencialmente capitalista,
mesmo se ele não é democrático e muito menos liberal, no sentido político da palavra;
mas as políticas econômicas mobilizadas são, no seu sentido básico, de corte liberal.
Aliás, em vista da crise econômica mundial de 2008-2009, vários outros observadores
se perguntaram se, depois do ‘comunismo’ chinês ter sido salvo pelo capitalismo, não
seria ele agora, pela pujança da demanda e da produção manufatureira de alcance
global, a salvar o capitalismo. Ao que se sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu uma
edição revista e atualizada para poder capturar esta última ‘astúcia da Razão’, ou essa
“artimanha da História”, uma ironia suprema que seria bem recebida por Marx, mas
certamente não por Lênin e seguidores.
5. Existem opções aos órfãos do socialismo?
Não é seguro que uma alternativa credível em termos de sistema econômico e
político se apresente nos palcos da História, ainda que as viúvas do comunismo e os
deserdados da causa mantenham uma esperança quase religiosa – que se renova
febrilmente a cada crise do capitalismo – de que isso seja possível em suas vidas
terrenas. O mais provável é que as últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente
existente – que são alguns tresloucados ‘socialistas do século 21’, perdidos em seus
próprios desastres econômicos, e um punhado mais numeroso de satrapias africanas,
mas que não constituem Estados, no sentido hegeliano do termo – se juntem à
locomotiva da interdependência econômica mundial em algum momento deste século:
embora atrasados, eles também serão bem-vindos, mesmo que tenham de desempenhar
funções subalternas no trem do capitalismo, até sua própria qualificação produtiva.
Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem existir, posto que as
molas do poder respondem em grande medida mais às paixões humanas – o que os
dramaturgos gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre – do que aos
mecanismos de produção e de distribuição de ativos reais, e isto vem sendo provado a
cada instante da história mundial. Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta
pelo poder, nas comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de conflitos
globais como os conhecidos desde a era napoleônica até a ‘segunda guerra de trinta
40 Cf. Jean-Luc Domenach, La Chine m’inquiète (Paris: Perrin, 2008), p. 58 e 65-66.
327
anos’ do século 20. Nenhuma Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o
gênio do poder nuclear saiu da garrafa.
Aliás, a Realpolitik da atualidade tem um novo nome, superioridade tecnológica,
e o cenário de seu desenvolvimento é a própria Weltwirtschaft, a economia mundial,
num mundo cada vez mais borderless, ou seja, sem fronteiras. Com efeito, assiste-se
hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, menos devido à força das canhoneiras
do que ao peso dos navios cargueiros (a China, por falar nisso, possui os maiores portos
do mundo). Mais exatamente, a tendência não é mais à constituição de rivais imperiais,
mas ao estabelecimento de competidores mais eficazes, guerreiros de uma nova espécie,
que buscam não tomar de assalto velhas fortalezas, mas inundá-las com pacíficos
obuses eletrônicos, manufaturados segundo os mais modernos requisitos da tecnologia.
Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial consideram os arsenais
nucleares como catapultas pouco práticas do ponto de vista das modernas técnicas de
conquista, da mesma forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos como
querelas teológicas de reduzido poder agregador: os hábitos de consumo unificam mais
os povos, hoje em dia, do que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, mandarins ou
gurus da nova era, os novos cavaleiros da economia mundial não buscam exatamente
dominar ou converter outros povos, mas tão simplesmente extrair recursos pela via
comercial.
A estratégia econômica desses novos cruzados é verdadeiramente internacional,
no sentido mais planetário do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas,
rápido deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados, em suma,
uma globalização acabada dos circuitos produtivos e de distribuição. A característica
mais saliente dessa nova ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais
inseridos na economia de mercado. Mas, assim como na fábula orwelliana sobre a
‘igualdade’ na fazenda ‘socialista’ dos animais, nessa nova ‘fazenda capitalista’ das
nações, alguns membros são mais ‘interdependentes’ do que outros. Não se trata apenas
de saber quem é mais ‘transnacional’ nessa confraria, mas sim de determinar quem
melhor sabe maximizar os mecanismos de controle da racionalidade instrumental
própria à economia de mercado: o lucro e o investimento produtivo.
Assim, se o “fim da História” – compreendido não no sentido de que o mundo
estaria a ponto de se tornar um porto tranquilo para o exercício da democracia política,
mas no do término da busca dos princípios fundamentais que devam reger a organização
da sociedade – está ou não próximo de converter-se em realidade, esta é uma questão
328
ainda em aberto. Uma alternativa política ao liberalismo ocidental não parece, em todo
caso, perto de nascer. Isto não quer dizer que não existam alternativas práticas, reais, à
democracia burguesa, como o próprio caso da China o demonstra. O que se pretende
constatar é que o sistema chinês de dominação política não oferece atrativos para
qualquer país que se pretenda ‘normal’ no quadro da interdependência contemporânea:
ele simplesmente não constitui um modelo que possa ser replicado em caráter
voluntário por outras comunidades políticas. Não fosse assim, a plutocracia chinesa não
precisaria manter um formidável aparato de repressão, disseminar a censura pelos
terrenos sempre fugidios da internet, continuar a condenar “dissidentes” e “violadores
da legalidade” com o mesmo ardor – embora com menor brutalidade – que seus
antecessores declaradamente marxistas-leninistas. A tese de Fukuyama, em seus
contornos filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do ancien régime
leninista.
Em outros termos, a boa e velha democracia burguesa, em que pese algumas
rugas vitorianas, ainda não parece ter sido vencida por alguma “contradição insanável”,
do tipo das que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo clássico. Em
contrapartida, no terreno da economia, o ‘fim da Geografia’ parece mais à vista,
sobretudo quando se considera o escopo espacial das atividades empresariais. O mundo
material está sendo progressivamente unificado por uma ‘cultura comum’, senão da
abundância, pelo menos de consumismo, posto que jovens iranianos de uma das
teocracias mais reacionárias que possam existir, jovens chineses do “socialismo de
mercado” e jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos eles desejam
encontrar satisfação para padrões de consumo relativamente similares: filmes série B de
Hollywood, fast-food, iPhone, iPod e internet. Quem fica de fora – cubanos, coreanos
do norte – está louco para entrar...
Esse processo de constituição de um borderless-world não deve ser confundido
com o pretenso ‘declínio do Estado-nação’, tendência já desmentida pelo acelerado
ressurgimento do ‘nacionalismo’ nos mais diversos quadrantes do globo. O que ocorre,
mais exatamente, é uma combinação do policentrismo interestatal com a unificação dos
espaços geoeconômicos, nos quais as competências estritas dos Estados nacionais no
terreno econômico passam a ser exercidas por blocos de integração (zonas de livre
comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns). Em todo caso, não parece haver
muito espaço para o socialismo nesse “admirável mundo novo” do ‘fim da Geografia’.
Ele só consegue sobreviver nas academias esclerosadas de certas faculdades de ciências
329
sociais de universidades públicas de países periféricos, como mais uma demonstração
de certas profecias corrosivas (como aquela de Millor Fernandes, que dizia que quando
as ideologias ficam bem velhinhas, elas se mudam para certos países latino-americanos
que conhecemos todos).
Na prática, como as economias de mercado conseguem conviver com todos os
tipos de regimes políticos, o que se tem é que o mercado e a democracia política
convivem tranquilamente com esquemas diversos de controle social e de
intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como em diversos países periféricos do
‘capitalismo realmente existente’. Isso não representa exatamente um problema
filosófico do ponto de vista das teses de Fukuyama: se a chamada ‘democracia
burguesa’ conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente devido a seu
caráter essencialmente ‘formal, ou seja, uma democracia simplesmente política,
destituída de qualquer conteúdo real, em termos de direitos econômicos ou sociais.
Contudo, a simples garantia da igualdade jurídica e da liberdade individual representa,
ainda assim, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade civil, pelo menos para
grande parte da Humanidade. É possível, assim, que a administração da ‘coisa pública’
nesses regimes híbridos que existem no mundo real seja uma tarefa tão ‘aborrecida’ e
fastidiosa quanto, digamos, a atividade política em certas democracias avançadas do
Ocidente, algo que já tinha sido percebido por um filósofo tão pouco hegeliano quanto
Norberto Bobbio.
O fato, porém, de que nenhum sistema social humanamente concebido poderá
resolver a contento a questão da distribuição dos bens raros e socialmente valorizados –
e a mercadoria ‘poder’ é a primeira a inscrever-se nessa categoria – garante que os
palcos da História continuarão, durante muito tempo, a ser excitantes. Não há, aqui,
nenhum pessimismo de princípio quanto a que, no terreno do mundo material pelo
menos, se possa um dia realizar a conhecida utopia socialista: “de cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Mas, é altamente improvável,
conhecendo-se a natureza humana, que se possa cumprir, com ou sem ‘final da
História’, a profecia engelsiana segundo a qual, no futuro, “o comando dos homens será
substituído pela administração das coisas”.
[iniciado: 14.08.2009; terminado: 13.01.2010]
330
2101. “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Brasília, 13
janeiro 2010, 15 p. Considerações sobre a tese de Francis Fukuyama e o fim de
alternativas às economias liberais de mercado. Publicado em Meridiano 47 (n. 114,
janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link:
http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291); disponível em
Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/5949002/2101_O_Fim_da_Historia_de_Fukuyama_vint
e_anos_depois_o_que_ficou_2010_). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 949.
331
29. Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding
father do americanismo
O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado como um dos
founding fathers da moderna ciência política, assim como dessa vertente especial das
ciências sociais (que usualmente adota o método comparativo, mesmo se de forma
inconsciente), voltada para o estudo das formações nacionais, no seu caso o
“americanismo”. Com efeito, seu De la démocratie en Amérique tornou-se um clássico
praticamente desde a publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua
viagem exploratória ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores
expectativas quanto à divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho
sobre os fundamentos sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma
reputação de primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou
os degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos.
Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de Tocqueville, Hipólito
José da Costa, muito antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição
portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados
Unidos, tendo deixado um pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia,
1798-1799, encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e
publicado pela Academia Brasileira de Letras em 1955. Não se tratou, propriamente, de
um estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na
Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em
Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de
Linhares, futuro ministro dos negócios estrangeiros, tendo produzido um relatório
específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas nos
Estados Unidos.
Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do
ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia
lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos
que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Não
destinado à publicação, mas sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem
informado, seu Diário poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de
332
Baedecker de alto voo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela
pertinência e acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos
seus julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população, pela
proliferação de sua “indústria religiosa” e por uma certa “rusticidade” de sua classe
dirigente.
Recém formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da
Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no
território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na
moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande
estadista português da transição para o século XIX, dom Rodrigo de Souza Coutinho
ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública,
preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas
industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas
questões econômicas, inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada
de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica
“commercio” (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante
seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo
estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística,
ele protestava solenemente contra a velha proibição dos estudos de economia política na
Universidade de Coimbra (“Os estudos de Economia Política são proibidos na
Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se
aprendam”; cf. Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, citado por
Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, p. 44).
Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo
técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-
se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem
nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o
progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que
hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa
etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma
proteção absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava
amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos
aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras
333
matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra
comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia,
física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro
“pai da independência”, José Bonifácio, frequentador das academias europeias.
Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798,
ele era, portanto, nada mais do que um recém formado, alguém que de certa forma
completou seu “mestrado” numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos
suplementares, virtualmente inexistentes aliás. As instruções de Linhares eram no
sentido de se obter informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos
havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos
ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão
pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se
pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção
especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na
Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a
instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a
vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar
relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar
notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa
estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata,
mesmo sem autorização para tanto ou diploma legal, por motivo da ausência do
representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse
exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a
provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante
na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem
industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção
técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão
de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada
para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos
humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de
formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das
indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das
nações.
334
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do
futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja
informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia
absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção
de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas
sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e
monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que
pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor
absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente,
acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações
mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os
produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências
abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a
modalidade peculiar do capitalismo americano. Como se vê, nada de muito novo em
termos de funcionamento do sistema econômico, particularmente no que toca a
“infectious greed” (apud e copyright Alan Greenspan) que não parece ter contaminado
apenas recentemente os executivos das empresas americanos.
Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se
constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira
potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o
volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela
conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais
ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo”
americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país
de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo
“sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade
americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os
EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX –
devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas
reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e
monetários “brazilienses”.
Lido à distância de mais de dois séculos, não tanto pela sua forma mas pelo
conteúdo efetivo, o Diário de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação
com o bem mais cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para
335
expor aos franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e
societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender,
primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um
caráter de ensaismo sociológico avant la lettre, possuindo todos os requisitos literários
para figurar como obra fundadora do americanismo brasileiro, e quiçá universal. Seu
diário é uma mina de boas trouvailles e de desconcertantes antecipações da sociedade
americana, numa espécie de “planejamento utópico do futuro” (a expressão pertence ao
filósofo da história Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a
densidade analítica e o gênio de “escrevinhador” do futuro jornalista (aliás único) do
Correio Braziliense.
Recomendação de leitura:
Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de
Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. O livro possui uma segunda edição
(Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) mas mereceria, de todo modo, ser
traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos.
947. “Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do
americanismo”, Washington, 20 setembro 2002, 5 pp. Ensaio sobre o Diário de
Minha Viagem para a Filadélfia, de Hipólito José da Costa, mostrando suas
características pioneiras de primeira obra representativa do americanismo
brasileiro. Publicado no Observatório da Imprensa (nº 191, 25.09.02;
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al250920021.htm) com o
título “Hipólito José da Costa, repórter”; e na Achegas, revista de ciência política
(Rio de Janeiro, n. 9, 16.05.03; ISSN: 1677-1855; link:
http://www.achegas.net/numero/nove/paulo_almeida_09.htm). Republicado em
Meridiano 47 (Brasília: vol. 3, n. 28-29, novembro-dezembro 2002, p. 13-15;
ISSSN 1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4423/3702). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 366 e 418.
336
30. Reflexões a propósito do centenário do Barão
(ou das dificuldades de ver no plano interno as razões de nossos problemas)
Em artigo publicado na Folha de São Paulo do dia 1º de setembro de 2002, o
Embaixador Rubens Ricupero traça brilhante retrospecto da ação competente do Barão
do Rio Branco à frente da chancelaria brasileira, do final de 1902 ao início de 1912.
Está ali plenamente justificada a opção preferencial do Barão por uma estreita aliança
com os Estados Unidos, em face do agressivo imperialismo europeu, então em seu auge
expansionista. Os desafios se colocavam mais no plano global do que no regional, uma
vez que neste o Barão soube negociar todas as pendências fronteiriças com pleno
conhecimento de causa.
Na arena internacional, porém, como escreve Ricupero, “os desafios globais
tinham natureza diferente e pertenciam a outra esfera, a das relações com as grandes
potências, perante as quais estávamos inferiorizados por um diferencial de poder
tamanho que éramos obrigados a inventar um jogo defensivo mais sutil e indireto.” Daí
a tentativa do Barão, em grande medida frustrada, de multilateralizar a doutrina
Monroe, em torná-la um instrumento de defesa coletiva do continente em face da
agressividade europeia, o que não foi logrado justamente porque os EUA estavam então
adotando os mesmos métodos “civilizadores” dos europeus.
Em todo caso, a estratégia política do Barão – de construir uma estreita aliança
com os EUA – foi por Ricupero considerada como apropriada em seu contexto, sendo
consagrada como norma da política externa brasileira nas fases subsequentes do período
republicano: “As fórmulas do barão deram certo, convertendo-se por longos anos em
paradigma incontornável da política externa brasileira.” Ricupero, no entanto, coloca a
questão de saber se essa estratégia poderia ser adequada igualmente para nossa própria
época, daí o sentido do seu título interrogativo: “O que faria o Barão?”.
Diz Ricupero que, atualmente, “talvez pela primeira vez em um século,
defrontamo-nos com dilemas tão desafiadores como os de 1902. Eles apresentam
semelhanças de ordem geral com os do passado já que de novo temos de nos definir
diante de alteração radical na estrutura mundial de poder e em relação a uma fase muito
mais intensa de globalização.” A diferença, contudo, é que o império ameaçador tornou-
se aquele mesmo com o qual pretendíamos nos aliar um século atrás: “Desta vez, no
entanto, não é o sistema multipolar a incorporar novo ator principal como os EUA, mas
337
são estes últimos que engolem o multipolarismo para concentrar quase todo o poder. O
problema é saber se esse poder será exercido unilateralmente ou se será possível, em
alguma medida, colocá-lo a serviço de ordem internacional consentida, tolerante,
generosa e justa e que papel poderia ter a diplomacia brasileira nesse esforço.”
Ricupero não traz respostas à questão de como conviver com esse novo desafio,
nem especulando sobre o que faria o Barão, hoje, nem sobre o que ele mesmo propõe
como estratégia defensiva ou ofensiva do Brasil nesse novo contexto. Sua conclusão soa
quase como uma dúvida existencial do Brasil na presente conjuntura, na qual defensores
e adversários do projeto da Alca se dividem em igual número por todo o espectro
político e econômico nacional. Pergunta ele, à guisa de conclusão: “Será viável
construir um tipo de inserção internacional que compatibilize uma Alca mais
equilibrada e equânime com as oportunidades abertas pelo multilateralismo comercial
em relação à Europa, à Ásia, a todas as regiões e países, essência da genuína
globalização?”
Minha presente reflexão, longe de pretender contestar a brilhante argumentação
de Ricupero, vai no sentido de colocar uma interrogação mais profunda, vinculada à
própria orientação da política externa ou, o que me parece ainda mais fundamental, ao
problema da determinação das origens dos nossos problemas de inserção internacional e
das raízes desses mesmos problemas.
Observando o debate sobre a Alca e as demais negociações em que estamos
engajados, sobre as alternativas de políticas comercial, industrial e diplomática que
deveríamos implementar na próxima fase da consolidação econômica e democrática a
partir de 2003, não posso deixar de registrar como os diferentes interlocutores sociais e
políticos que intervêm nesse debate tendem a atribuir a fatores externos as principais
fontes de desafios para o Brasil. De certa forma, os motivos de nossos desequilíbrios
são dados, ora pelos tão vilipendiados capitais voláteis, ora pelo protecionismo europeu
ou americano, qunado não pelo unilateralismo e prepotência dos países mais ricos,
como no suposto projeto de “anexação colonial”, agora representado pela Alca.
Frente a esses desafios, o Brasil sempre tendeu a adotar uma postura defensiva e
retraída, como na luta contra a prepotência inglesa do século 19, que pretendia acabar
com o tráfico negreiro, na resistência envergonhada contra as pressões de uma das mais
velhas ONGs do mundo, a Anti-Slavery Society, à época engajada em ver acelerada a
abolição da escravidão no Brasil, reclamando oficialmente contra a propaganda
contrária que se fazia na Europa, no início do período republicano, à ida de emigrantes
338
para o Brasil – como se eles não fossem tratados praticamente como substitutos dos
escravos nas plantações de café –, bem como contra, já então, os esforços dos EUA de
constituir, no plano hemisférico, uma “customs union”, tal como proposta na primeira
conferência americana de Washington, em 1889-1890, virtual antecessora do atual
projeto da Alca.
Nos anos 40 e 50 do século passado, por outro lado, quando toda a sociedade se
mobilizava na tarefa da industrialização nacional, pretendíamos ter capitais estrangeiros
para tal, mas de preferência sem o apêndice incômodo dos capitalistas estrangeiros, isto
é, gostaríamos que os países ricos financiassem nosso esforço industrializador mediante
adequada transferência de capitais mas preservando totalmente o controle sobre vetores
e mecanismos desse processo. Tratava-se, como no século 19, de aceitar as benesses do
mundo externo sem incorporar suas obrigações, em termos de educação das massas, de
promoção de direitos sociais ou, mais prosaicamente, das obrigações e contrapartidas
decorrentes de um mundo verdadeiramente interdependente.
Em todos esses episódios e processos, o que chama a atenção é a dificuldade dos
setores dominantes no Brasil em ver a origem dos problemas no próprio Brasil, em
nossas esclerosadas estruturas sociais, em nosso deficiente aparelhamento produtivo, em
nossa incapacidade em reconhecer que a ineficiência geral do sistema econômico
deriva, essencialmente, da baixa qualificação geral do nosso povo, o que deriva,
obviamente, dos níveis ínfimos de educação formal da maioria da população. Passa-se a
imagem de que com um ambiente externo mais favorável – menos protecionismo, mais
financiamento internacional, maior estabilidade de preços nos mercados mundiais, mais
cooperação ao desenvolvimento sob a forma de transferência de tecnologia, maiores
possibilidades externas, enfim, revertendo em maiores oportunidades internas –
poderíamos impulsionar de forma decisiva e célere nosso processo de desenvolvimento
econômico e social.
Tenho um certo grau de respeito por essa visão “técnica” dos nossos principais
problemas, inclusive pela forma competente como sabemos (e sempre soubemos)
mobilizar, mediante uma diplomacia que demonstra uma certa competência técnica,
essas “possibilidades externas” para convertê-las em oportunidades nacionais. Não
posso, porém, deixar de receber com um certo sorriso de desconfiança essas tentativas
nossas de transferir para outra esfera a origem de nossos problemas seculares de
desenvolvimento, sempre postergando para depois a solução de questões cruciais que,
elas sim, estão na raiz de nosso vergonhoso atraso social. Como explicar de outra forma
339
o fato, em si bastante auspicioso, de que tenhamos conseguido conformar a décima mais
importante economia do planeta – depois de termos sido durante décadas os primeiros
fornecedores de vários produtos primários, verdadeiros monopolistas de algumas
commodities bastante transacionadas nos mercados mundiais – e continuarmos, por
outro lado, a ostentar uma das mais indecentes estruturas de repartição social da renda
que se conhece nesse mesmo planeta? Como conciliar, de um lado, a pujança de nossa
indústria – nacional e multinacional – e a tremenda competitividade de nossa agricultura
com, de outro lado, níveis tão iníquos de educação e saúde para milhões de nossos
compatriotas?
Não sei se esses fatos perturbam meus colegas diplomatas e, de forma geral,
nossos líderes políticos, mas a mim isso causa um imenso desconforto, não apenas nas
reuniões e conferências internacionais a que assisto por dever de ofício, mas como
simples cidadão brasileiro, como pessoa humana pertencente a uma coletividade. Não
posso, assim, deixar de reagir com um certo ceticismo – embora sadio, pois o
pessimismo absoluto não constrói nada de permanente – a esses belos discursos em prol
da soberania nacional e do desenvolvimento, de manutenção do tratamento preferencial
e mais favorável para países em desenvolvimento, de aumento na cooperação
internacional e do estabelecimento de regras especiais no comércio mundial para lidar
com os “problemas específicos dos países em desenvolvimento”. Sou, sim,
profundamento cético, para não dizer que sou virtualmente contrário, em relação às
possibilidades criadoras dessa pretensa “importação de desenvolvimento”, talvez por
acreditar, como já afirmava o saudoso Barbosa Lima Sobrinho, que “capital se faz em
casa”, e que ele se faz, basicamente, mediante a formação de recursos humanos.
Por isso gostaria de terminar estas reflexões repetindo a mesma fórmula de que
utilizei-me em palestra efetuada no Instituto Rio Branco, em 2 de abril de 2002, por
ocasião do lançamento de meu livro Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as
relações econômicas internacionais no Império (São Paulo-Brasília: Senac-Funag,
2001). Se eu não corresse o risco de parecer demagógico, à pergunta de saber para quê,
enfim, deveria servir nossa diplomacia, tida como excelente, eu responderia,
simplesmente, que ela deveria servir para colocar crianças na escola, algo que continua
a ser o nosso grande problema (e drama) nacional. Se admitirmos que já conseguimos
colocar a maior parte dessas crianças na escola e que o problema não é mais este (mas
ele ainda é, certamente, o do desempenho escolar), então eu diria que a diplomacia
deveria servir, antes de mais nada, para melhorarmos a qualidade de nosso sistema
340
educacional, que continua a ser extremamente deficiente. De resto, de que adianta ter
uma diplomacia avançada, mas um povo sem condições de competir na arena da
economia mundial?
Estas são, finalmente, as raízes de nosso medo diante da Alca e diante de outros
tantos desafios do cenário internacional: não temos confiança em nós mesmo, pois que
somos um povo fragilizado pela ausência, quase dois séculos depois de o País ter-se
tornado independente e da existência de um Estado constituído, de uma verdadeira
Nação, que ainda resta a construir em seu tecido social e em sua formação cultural.
Como diplomata ou como cidadão, essa anomia estrutural me traz bastante desconforto,
ao passo que os desafios apontados por Ricupero no cenário internacional nada mais são
senão meros embates de interesses setoriais que saberemos conduzir da melhor forma
possível.
Mas eu me sentirei frustrado se, ao cabo desses processos negociadores e tendo
sabido defender ao melhor possível os chamados “interesses nacionais” – com Alca ou
sem Alca, não importa muito aqui –, eu olhar novamente para dentro e constatar que,
finalmente, o cenário interno no Brasil mudou muito pouco, a despeito de um ou outra
“vitória diplomática” no plano externo.
Alternativamente, eu me sentirei sinceramente recompensado se, ao examinar
novamente o itinerário da nossa diplomacia no início do século XXI – quando, por
exemplo, completarmos dois séculos de exercício diplomático contínuo a partir do
território nacional, em 2008 – puder constatar que essa diplomacia não precisará mais
servir, ainda que hipoteticamente, para colocar crianças na escola. Se tivermos logrado
vencer a batalha interna da formação do povo e da qualificação educacional da
população eu me sentirei recompensado, como diplomata e como cidadão.
Até lá, temos muito trabalho pela frente, e não apenas no plano da diplomacia
econômica e comercial, ainda que este esforço continuado fosse apenas para manter e
justificar nossa fama de excelentes. Na verdade, não me importa muito saber o que faria
o Barão em face desse tipo de desafio, pois não o considero o mais importante que
temos. De fato, não creio que necessitemos de um novo Barão – seja ele quem for: um
diplomata genial ou toda uma categoria profissional tida por excelente – e sim de uma
consciência clara de que nossos principais problemas não são de ordem externa e sim,
todos, de natureza interna. Mãos à obra, portanto, pois tenho a impressão de que a
história não absolverá nossa geração diplomática, se daqui até lá não contribuirmos com
341
todas as nossas forças para colocarmos o País real em compasso com a suposta
excelência de sua diplomacia.
939. “Reflexões a propósito do centenário do Barão: (ou das dificuldades de ver no
plano interno as razões de nossos problemas)”, Washington, 2 de setembro de
2002, 6 p. Ensaio sobre a relação entre nossos desafios externos e os problemas
internos, em relação a texto de Rubens Ricupero sobre o centenário do Barão do
Rio Branco e os desafios atuais para o Brasil no plano internacional. Publicado no
Meridiano 47 (n. 28-29, novembro-dezembro 2002, p. 24-27; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_28_29.pdf). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o
Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
Relação de Publicados n. 358.
342
31. Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o
Brasil?
Ao ser confrontado com uma pergunta marota, no National Press Club, em sua
primeira visita a Washington como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva utilizou-
se de forma inteligente de uma antiga frase infeliz para revertê-la em seu favor.
Perguntado por que razão o PT havia estabelecido uma parceria com o Partido
Comunista da China, Lula saiu-se da seguinte maneira, tendo sido muito aplaudido,
durante e após sua resposta: “Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo
americano fez da China seu parceiro comercial preferencial. E eu pensei comigo
mesmo: ‘se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros.’ Nós vamos
trabalhar muito estreitamente com a China, porque ela é um parceiro importante para os
nossos objetivos comerciais.” (Transcrição parcial da seção de perguntas e respostas
ocorrida no National Press Club, Washington, em 10 de dezembro de 2002.)
Não tenho certeza de que essa resposta tenha sido ensaiada pelo presidente-
eleito ou se foi totalmente espontânea, mas vários observadores registraram a
recuperação, de modo inteligente, de uma antiga frase infeliz de Juracy Magalhães,
antigo tenente dos anos 1920 e militar revolucionário de 1964, que caberia reproduzir
em sua integridade e no contexto próprio. Perguntado por um repórter, em junho de
1964, com que espírito assumia seu novo posto, o então embaixador designado do
Brasil em Washington foi cândido: “O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados
Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que é o que bom para os Estados Unidos
é bom para o Brasil” (cf. Juracy Magalhães, em depoimento a J. A. Gueiros, O Último
Tenente. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 325). Ele foi, então e depois,
devidamente “massacrado” por todos, como entreguista e “sabujo” dos interesses
americanos e “sua” frase passou à história, senão ao “folclore” político, como a própria
confirmação da subserviência do governo militar à política do Império. O então
embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, esquivou-se de comentá-la de modo
negativo, mas em privado considerava-a efetivamente como uma expressão infeliz, que
em nada ajudou na conformação de uma boa imagem pública em prol do bom
relacionamento entre duas nações soberanas.
343
Antes de voltar ao contexto brasileiro, caberia agora atribuir o devido copyright
dessa frase que, como se sabe igualmente, não pertence a Juracy Magalhães, mas
procede de afirmação de um dirigente da General Motors, um dos grandes fabricantes
americanos de automóveis. Trata-se, na verdade, de uma atribuição indireta, pois que a
expressão foi empregada pelo novo presidente da GM, em 1946, Charles Wilson, a
propósito da atitude do famoso dirigente da GM entre 1923 e aquele ano, Alfred Sloan,
violentamente oposto às políticas de Franklin Roosevelt durante o New Deal. Sloan
acreditava piamente, como colocado por Wilson em sua famosa frase, que “what was
good for our country was good for General Motors – and vice versa” (cf. David Farber,
Sloan Rules: Alfed P. Sloan and the triumph of General Motors. Chicago: University of
Chicago Press, 2002). Ela tornou-se um ícone da colusão de interesses entre a grande
indústria e o governo dos EUA e, depois da recuperação infeliz de Juracy Magalhães,
um exemplo entre outros da colusão de interesses entre os governos do regime militar
brasileiro inaugurado em 1964 e os interesses da grande potência americana.
O presidente-eleito efetuou, portanto, por sua vez, uma recuperação bastante
feliz de uma frase altamente suspeita e condenável que, agora, volta portanto a ter
direito de existência numa relação bilateral que parece marcada por novos patamares de
respeito mútuo. A pergunta tinha sido aliás especificamente dirigida ao relacionamento
político entre o PT e o Partido Comunista Chinês, e ela foi respondida em sua vertente
puramente comercial, o que não estava em causa na indagação feita em Washington
(que incluía igualmente uma referência ao Foro de São Paulo). Não se pode deixar de
reconhecer, em todo caso, uma notável capacidade do novo presidente – ou de sua
equipe de imprensa – em adaptar de maneira simpática, e com bastante bom-humor,
uma frase colocada – de maneira equivocada, aliás – no índex da “sabujice imperialista”
ao novo contexto do relacionamento entre os dois maiores países do hemisfério.
Não se pretende questionar aqui a utilização dessa frase no momento preciso em
que ela foi “recuperada” para uma nova (e talvez promissora) existência política, mas
ela certamente nos oferece a ocasião para uma reflexão mais ampla sobre o seu
significado substantivo e sua adequação ao quadro das relações entre os dois países.
Parece evidente, agora e no momento em que a frase foi empregada por Juracy
Magalhães, que a despeito de qualquer boa intenção de princípio, as relações entre os
EUA e o Brasil seguem o curso natural dos interesses concretos de cada um dos países,
sem que uma expressão singela possa desviar a afirmação desses interesses do
comprometimento de cada governo com objetivos nacionais próprios.
344
Nesse sentido, a frase é inócua, sem maiores efeitos na condução concreta das
relações exteriores – bilaterais ou multilaterais – de cada um dos parceiros, ainda que
ela possa ter assumido contornos mais precisos no contexto e no momento em que ela
foi empregada, logo após o golpe militar que alinhou mais decisivamente a política
internacional do Brasil aos objetivos estratégicos dos EUA, na região e fora dela.
Assim, no ano seguinte, o Brasil participou da intervenção militar – soi-disant da OEA,
mas de fato ditada por Washington – na República Dominicana, mas ele se recusou,
logo depois, a colaborar com tropas ou outro tipo de ajuda com o esforço militar então
conduzido pelos EUA no Vietnã, a menos de uma resolução do Conselho de Segurança
a esse propósito, o que era obviamente irrealizável. Logo em seguida, o Brasil, que já
tinha tido um ensaio de “política externa independente” no início dos anos 60, voltou a
se “desalinhar” dos EUA e assim permaneceu desde então.
Deixemos de lado, contudo, o contexto diplomático para indagarmos em que
sentido a frase é válida, no entendimento mais geral dos objetivos nacionais de cada um
dos países. Aqui parece igualmente evidente que, no sentido mais amplo, a frase carece
de sentido, já que Brasil e EUA desempenham papéis diversos (não necessariamente
opostos) no cenário internacional e não cabe ao Brasil ser “garantidor” da paz e da
estabilidade internacionais, como compete aos impérios estabelecidos. Ainda assim,
parece que o que é bom para os EUA – uma ordem internacional aberta aos fluxos de
bens, capitais, serviços e pessoas, dotada de estabilidade e caracterizada por valores
comuns compartilhados, como parecem ser a democracia, os direitos humanos e a
defesa do meio ambiente – também o é para o Brasil, sem qualquer exclusivismo nesse
plano mais geral das relações internacionais.
No quadro específico das relações econômicas internacionais, não pareceria,
tampouco, existir nenhuma oposição de princípio entre ambos os países, muito embora
várias qualificações sejam utilizadas na tentativa de identificar objetivos particulares a
cada um dos países que poderiam eventualmente ser vistos em oposição ou até mesmo
em conflito. Assim, a questão da liberalização comercial, seja no plano multilateral
(OMC), seja no hemisférico (Alca), que suscita comentários por vezes passionais sobre
o “projeto globalizador americano” e a atitude mais cautelosa por parte do Brasil, em
virtude de objetivos “desenvolvimentistas” que o fariam opor-se a uma abertura muito
rápida de sua economia ou a concessões regulatórias que colocariam as grandes
empresas dos EUA, “multinacionais” quase que por definição, em posição de nítida
345
vantagem em face de companhias brasileiras necessariamente de menor porte (nos
campos de serviços, investimentos ou compras governamentais, por exemplo).
Minha opinião é a de que os interesses de ambos os países não são diferentes ou
divergentes – descartando, por um momento, o problema dos protecionismos setoriais e
do subvencionismo desleal, notadamente em agricultura – mas, sim, que a percepção
desses interesses pode diferir fortemente, em função de políticas econômicas colocadas
em situação de descompasso recíproco, o que explica, aliás, a oposição, igualmente,
entre os interesses dos EUA e da UE, já que ambas as economias, a americana e a
europeia, são altamente desenvolvidas, totalmente capitalistas e supostamente
dominantes no plano das relações econômicas internacionais. Grupos de interesse
político, em cada uma das regiões divergem quanto aos custos da conversão implícita
em qualquer processo de abertura, daí as resistências em aplicar os princípios que Adam
Smith e David Ricardo já tinham descrito, há mais de dois séculos, como absolutamente
racionais do ponto de vista do “interesse nacional” (isto é, do consumidor).
Não vejo, de minha parte, qualquer oposição de princípio entre os interesses
nacionais americanos e os interesses nacionais brasileiros na consecução de um sistema
econômico interdependente e de fato mais integrado, inclusive a ponto de literalmente
obliterar as fronteiras econômicas entre os dois países ou, numa escala mais ampla, no
contexto hemisférico. Sei que os patrulheiros de plantão vão alertar para os mesmos
argumentos “nacionalistas” ou “assimétricos” que comandariam, supostamente, uma
defesa intransigente de fortes empresas nacionais brasileiras antes de aceitar qualquer
abertura suplementar, bem como a manutenção de um poder decisório nacional em
diversos ramos econômicos, que de outra forma estariam sendo “ameaçados” pela “lei
do mais forte”. Esses argumentos não são lógicos, não são economicamente válidos –
desde que observado o livre fluxo de fatores – e não são historicamente verificáveis,
uma vez que a integração transfronteiriça sempre se dá em situação de assimetria
relativa, o que redunda, usualmente, na elevação dos padrões produtivos da economia
mais débil. Os exemplos historicamente verificáveis de integração – não estamos
falando dos velhos exemplos da “colonização”, espectro ainda agitado pelos anti-
alcalinos, por exemplo – sempre resultaram na elevação dos índices de produtividade e
de renda das economias mais atrasadas.
Que os EUA estejam querendo promover o que é “bom” para a sua economia e
as suas empresas ao propor a Alca e novos capítulos de abertura econômica no âmbito
multilateral parece tão evidente quanto a antiga luta dos “imperialistas britânicos”
346
contra o tráfico e a escravidão em economias periféricas como a brasileira do século
XIX, quando já se falava de “dumping social” e “exploração indevida da mão-de-obra”
(ao colocar o açúcar em melhores condições do que seu concorrente caribenho). Que
esse processo se coloque contra os interesses do Brasil, poderia redundar, no século
XIX ou agora, em justificar padrões menos avançados de organização da produção em
nome de menores custos produtivos, colocados assim como uma vantagem comparativa
absoluta no plano do comércio internacional. A questão parece situar-se, portanto, no
plano dos custos de conversão, em face de especializações produtivas “naturais”, e das
adaptações organizacionais e técnicas que se devem fazer no aparelho econômico da
sociedade. Tudo tem um custo, obviamente, e a grande questão dos acordos de
comércio se situa, precisamente, em como transferir esse custo para o seu vizinho.
Resumindo a discussão, poder-se-ia dizer que o que é bom para os Estados
Unidos deve ser igualmente bom para o Brasil – como argumentou instintivamente o
presidente-eleito em seu primeiro périplo americano –, mas cabe aos brasileiros
examinar atentamente, não para a qualidade do produto final, mas para a substância
desse quê, uma vez que nem todas as receitas ou remédios são bons para todos os
pacientes o tempo todo.
Alguns podem gostar de se refrescar com Coca-Cola, outros podem precisar,
ainda, de um bom Biotônico Fontoura, como recomendava o jovem Lobato na
conjuntura histórica em que o Brasil era um país “essencialmente agrário” e exportador
de café. Já não somos mais simplesmente agroexportadores – ao contrário, nossa
principal exportação para os EUA são aviões sofisticados – mas nossas indústrias são
relativamente “desmilinguidas” em relação às gigantescas companhias americanas.
Enganam-se, porém, aqueles que pretendem “fechar” o país até que nossas
indústrias cresçam e se fortaleçam e possam, assim, fazer face à concorrência
internacional. Esquecem eles, por exemplo, que o mesmo Lobato recomendava a
adoção dos métodos fordistas como solução para os eternos problemas do atraso
brasileiro, aliás defendendo, antes disso, a adoção de uma moeda sólida como garantia
de pujança econômica. Em outros termos, o que era bom para os EUA nos tempos de
Lobato já era bom para o Brasil na mesma época, e foi justamente a ausência de
políticas econômicas sólidas e consistentes com o fortalecimento da base nacional que
nos deixou um legado de atraso e de subdesenvolvimento material – em grande medida
mental, também – que arrastamos até hoje.
347
Podemos, portanto, evidenciar uma outra qualidade nesses exercício quase fútil
de comparatismo cross-national entre dois países em torno de uma frase que tem sido
usada extensivamente fora de seu contexto original e fora de seu contexto estrutural. O
que poderia ser dito, numa interpretação intranacional, seria que o que aparece como
bom para os EUA, em termos de políticas públicas e setoriais, deve ser igualmente bom
para o Brasil, uma vez que aquele país conforma a mais bem sucedida economia
capitalista de toda a história da humanidade (ainda que não socialmente mais avançada).
Não existem, obviamente, modelos “gerais” de desenvolvimento que possam ser
transplantados de um país a outro, mas existem instituições e mecanismos que podem
ser mais (ou menos) favoráveis a determinados processos de acumulação de capitais, de
inovação tecnológica ou de aperfeiçoamento cultural e educacional. Muitos
preconceitos subsistem em torno dessas políticas macroeconômicas ou setoriais e
permito-me voltar aqui à questão da percepção das políticas econômicas, tal como
indicada mais acima. Por que, por exemplo, um sistema patentário extensivo seria
benéfico à economia americana e absolutamente contraindicado no caso brasileiro? Por
que disciplina fiscal e restrições emissionistas funcionam ao norte do hemisfério e
ostentam um registro histórico tão lamentável do lado meridional? Por que um sistema
de educação universal eficiente não existe aqui, quase duzentos anos depois da
independência? Qual a legitimação moral e, mais importante, a validade econômica de
pagar mais aos aposentados do setor público do que a seus congêneres da ativa?
Se os Estados Unidos, invertendo agora a relação derivada daquela frase,
tivessem seguido o Brasil nesse tipo de “política”, certamente eles estariam copiando
aquilo que foi (e continua sendo) mau para o Brasil, independentemente das condições
efetivas sob as quais poderia ter sido feito esse hipotético processo de cross-
fertilization. Mas, o fato de que não tenhamos tido a oportunidade ou não pudemos
copiar o que era bom para os EUA – educação primária extensiva, proteção aos
contratos e à propriedade intelectual, políticas econômicas que foram, grosso modo,
benéficas e estimuladoras do ponto de vista do investimento privado, menor extração
estatal dos recursos da sociedade –, em várias épocas mas sobretudo na era da segunda
revolução industrial, quando os EUA se industrializaram, esse “fato” significou que nos
isolamos num exclusivismo nacional que perpetuou o atraso econômico e o
subdesenvolvimento cultural.
Não se deve esquecer, por exemplo, que em contextos não de todo similares,
mas relativamente contemporâneos ao do Brasil e de outros países emergentes (final do
348
século XIX), o Japão decidiu copiar absolutamente tudo o que era bom para os europeus
e americanos, inclusive um parlamentarismo “inglês” de fachada e casacas burguesas. A
partir de uma situação “feudal”, o país asiático emergiu como grande potência em muito
pouco tempo, algo não totalmente comparável ao Brasil, que recém saia (aliás de modo
relutante) de uma experiência escravista de quatro séculos sem se preocupar em integrar
sua própria população negra. Isso também ocorreu com os EUA das plantations do deep
South, mas o motor do desenvolvimento, naquele país, foi assegurado pelo “modo de
produção inventivo” do Norte, não pelo atraso agrário do Sul.
Neste sentido “civilizacional” – ou de “civilização material” – podemos afirmar
que o que foi bom para os EUA, certamente teria sido para o Brasil também, ainda que
saibamos perfeitamente que estruturas sociais funcionam segundo regras próprias, não
sendo transplantáveis como plantas ou máquinas. Ainda assim, uma reflexão comparada
entre experiências nacionais de desenvolvimento pode trazer ensinamentos úteis, como
aliás recomendava o jovem Lobato ainda antes de vir morar durante três anos nos EUA.
Talvez a frase adaptada de Juracy Magalhães (e a nova de Lula) mereça uma
nova reflexão sobre o que deu certo e o que deu errado num Brasil ao mesmo tempo tão
distante e tão próximo dos Estados Unidos. Ao trabalho, sociólogos comparatistas…
993. “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o Brasil?”,
Washington, 29 dez. 2002, 7 p. Reflexões sobre frase do presidente-eleito,
pronunciada em Washington (em 10.12.02, especulando que o que seria bom para
os EUA poderia ser também para o Brasil), fazendo um exercício de sociologia
comparada de desenvolvimento entre os EUA e o Brasil. Publicado no Meridiano
47 (n. 30-31, jan./fev. 2003, p. 30-34; link:
http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-
100_files/Meridiano_30-31.pdf). Disponível no site pessoal (link:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/992BomEUAbomBrasil.pdf). Relação de
Publicados n. 390 e 398. Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).
349
32. O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista
Brasileira de Política Internacional: contribuição intelectual, de
1954 a 2014
Em 27 de janeiro de 1954, um pequeno grupo de intelectuais, de funcionários
públicos e de profissionais liberais se reuniu no Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro,
sede do Ministério das Relações Exteriores desde o início da República, e tomou a
decisão de criar a primeira instituição brasileira especificamente dedicada ao estudo da
política internacional e de questões atinentes às relações exteriores do Brasil: o Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). Ele foi definido, nos seus estatutos, como
uma sociedade civil com finalidades culturais, com o objetivo de “realizar, promover e
incentivar estudos sobre problemas internacionais, especialmente os de interesse para o
Brasil”. Condizente com a sede que abrigava o conclave, o IBRI congregaria, ao longo
de sua existência continuada, vários diplomatas engajados em suas atividades, assim
como devotaria parte de seus esforços analíticos e das iniciativas empreendidas nos
anos e décadas seguintes ao registro, à exposição, para um público mais vasto, e à
discussão dos mais diversos temas vinculados à relações internacionais, em especial ao
pensamento e à ação da diplomacia brasileira.
Uma primeira grande iniciativa concretizou-se quatro anos depois, sob a forma
de um periódico, a Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI), o mais antigo e
o mais prestigioso dos veículos especializados em temas internacionais no Brasil (ver o
n. 1 neste link: http://cafemundorama.files.wordpress.com/2013/10/rbpi_1958_1.pdf).
Ambos, o IBRI e a RBPI, passaram por diferentes etapas em seus itinerários respectivos
de mais de meio século, em duas fases bem caracterizadas: a do Rio de Janeiro, de
1954-58 até 1992, e a de Brasília, a partir de 1993 aos nossos dias. Um pouco de sua
história, ao completar o IBRI meio século de vida, foi recapitulada por este autor na
nota comemorativa “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais: 50 anos de um
grande empreendimento intelectual” (Revista Brasileira de Política Internacional, vol.
47, n. 2, 2004, p. 223-226; link: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a08.pdf).
Este pequeno texto não tem a intenção de refazer a história da instituição e a de
seu principal veículo de divulgação nas mais de seis décadas decorridas desde as
iniciativas pioneiras, mas buscará, tão somente, oferecer um panorama, embora seletivo,
da produção intelectual em temas das relações internacionais e de política externa do
350
Brasil nesse período. Um sobrevoo geral permite constatar certas constâncias, ou seja, a
recorrência das mesmas questões ao longo desse itinerário, mas também muitas
transformações, como parece inevitável, tanto no plano propriamente doméstico, quanto
no da política internacional e da economia mundial. O Brasil e a região não parecem ter
mudado significativamente de posição no contexto dos cenários geopolíticos que se
sucederam desde 1954: Guerra Fria, distensão global, crises e derrocada do comunismo,
emergência de novos equilíbrios nos planos regional e mundial, etc. A despeito dessas
grandes alterações da ordem mundial, o Brasil e a América Latina talvez não tenham
um peso maior, atualmente, do que aquele que tinham no início do período.
Não obstante, algumas estruturas econômicas e as formas de participação do
país e da região nos assuntos da política mundial podem ter sido substancialmente
alteradas, em alguns casos para um melhor posicionamento, em outros casos apenas
confirmando o papel excêntrico, relativamente secundário, para não dizer marginal,
assumido pelo Brasil e pela região no contexto mais vasto das relações internacionais e,
sobretudo, no quadro dos grandes equilíbrios geopolíticos entre os atores determinantes
da politica e da economia mundiais. Em termos claros, o Brasil e a América Latina
contam pouco nos cenários decisivos da paz e da segurança internacionais, mas também
no das grandes dinâmicas econômicas – tecnológicas e financeiras, sobretudo – que
movimentam a interdependência global; na verdade, eles podem até ter perdido terreno
para a Ásia nessa segunda área, já sendo pouco influente na primeira.
Esta última afirmação pode parecer depreciativa do papel ou da importância que
se costuma emprestar – no mais da vezes auto-atribuída – ao Brasil nesses contextos,
uma vez que tanto as elites políticas, quanto o establishment diplomático e a corporação
militar têm por hábito ressaltar a relevância da participação do Brasil nesses cenários de
variada significação para os grandes objetivos multilaterais da preservação da paz e da
segurança internacionais, e para a promoção dos objetivos ainda mais decisivos
relativos ao desenvolvimento econômico e ao progresso social dos povos e dos Estados
membros da comunidade internacional. Se formos compulsar, porém, a obra mais
recente que trata justamente dos grandes equilíbrios mundiais e dos problemas
remanescentes para a consolidação de uma ordem internacional estável, pacífica e
promotora dos direitos humanos, da segurança e da paz, escrita por um especialista
reconhecido, teremos exatamente a confirmação do argumento defendido neste ensaio.
Com efeito, Henry Kissinger, em seu livro mais recente, World Order (New
York: Penguin Press, 2014), não devota nem mesmo um capítulo, sequer uma mísera
351
seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez grandes unidades da obra, todas elas
dedicadas aos grandes atores ou aos problemas percebidos como relevantes para o
estabelecimento ou a preservação de uma ordem que de fato não existe. Para ser mais
preciso, a América Latina não aparece sequer no índice remissivo do livro, embora nele
exista uma entrada para western hemisphere. O Brasil é mencionado duas vezes, ambas
en passant e de maneira irrelevante: a primeira para falar sobre o impacto mundial das
revoluções europeias de 1848, a segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento
mais amplo nos capítulos asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Tal
tipo de abordagem, registrando apenas os atores que contam nos equilíbrios mundiais
das relações internacionais nos últimos cinco séculos, parece realista, a despeito de
negativa para a autoestima de alguns. Não obstante a marginalidade relativa do Brasil e
do continente para a ordem mundial na concepção de Kissinger, cabe reconhecer que o
Brasil aumentou sua presença nos cenários econômico e político mundiais desde 1954,
reforçando sua posição relativa no sistema internacional nas seis décadas decorridas
desde então, tal como refletido na produção acadêmica acumulada no período.
Em todo caso, uma história intelectual das relações exteriores e da diplomacia
brasileira nas últimas seis décadas seria incompleta se deixasse de mencionar o papel
relevante desempenhado pelo IBRI, desde sua fundação, e sobretudo pela RBPI, a partir
de 1958. Uma distinção quanto à natureza dessa influência ao longo do tempo deve ser
feita no que respeita o IBRI e no tocante à revista. A associação de muitos diplomatas
lotados no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, à fundação e funcionamento do
IBRI nos primeiros anos permite estabelecer uma clara vinculação conceitual entre os
temas discutidos nas reuniões do IBRI e transplantados para a revista desde seu
aparecimento e publicação trimestral e a agenda do Itamaraty nos anos imediatamente
anteriores ao regime militar. Pode-se dizer, sem hesitação, que os membros civis e os
diplomatas ativos no IBRI, e os focos de discussão e análise na RBPI exibem uma
espécie de osmose intelectual com os grandes temas da política externa brasileira e seu
tratamento pelo Itamaraty e pela própria presidência da República.
Esses grandes temas referem-se ao relacionamento bilateral Brasil-Estados
Unidos, no contexto da Guerra Fria, aos primeiros passos da integração regional, o
lançamento da Operação Pan-Americana pelo governo Kubitschek, a criação do BID e
da Alalc, o problema de Cuba e seu encaminhamento na OEA, a emergência e
afirmação da chamada “política externa independente” – presente, implicitamente,
desde o início na revista, antes mesmo de se tornar explícita nos governos Jânio e
352
Goulart – e a mobilização ativa do Brasil e dos países em desenvolvimento em torno da
problemática do desenvolvimento, primeiro tratada no âmbito da Cepal, depois
transplantada – inclusive porque o diretor, Raul Prebisch, era o mesmo – no quadro da
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, cujo primeiro
encontro se deu, aliás, ao mesmo momento em que caia o governo Goulart e tinha início
o governo militar. Todas essas questões figuram nas páginas da revista, como uma
consulta sumária aos índices dos números relativos a esses anos iniciais pode revelar
(ver a coleção completa neste link: http://mundorama.net/category/2-biblioteca/rbpi/).
Qualquer pesquisa sobre a diplomacia brasileira no período não pode, assim,
dispensar esse recurso, muitas vezes até como fonte primária. Numa época em que o
Itamaraty publicava, se tanto, burocráticos relatórios anuais de suas atividades – e estes
não eram tão detalhados, mas ao contrário, eram bem menos copiosos do que os antigos
relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, no Império – e algumas
poucas publicações avulsas, a seção documental da RBPI invariavelmente fazia a
transcrição dos principais expedientes da diplomacia oficial: discursos, documentos de
posição, atas de reuniões, textos de tratados e de outros atos internacionais, geralmente
traduzidos pelos próprios diplomatas que colaboravam com a revista. No início do
governo militar, por sinal, os relatórios de atividades do Ministério se rarefizeram, o que
tornam ainda mais úteis esses números trimestrais da RBPI, a despeito do eventual
retraimento de alguns diplomatas ante a nova situação política e suas orientações mais
alinhadas à diplomacia tradicional da era da Guerra Fria.
Embora tenham ocorrido poucos episódios de enquadramento da corporação ao
novo Zeitgeist, e até algumas baixas entre os opositores identificados – foi o caso, por
exemplo, do embaixador Jayme Rodrigues, segundo na delegação brasileira à Unctad –,
a revista continuou a dar ênfase aos seus temas habituais. O novo editor, o historiador e
ex-professor do Instituto Rio Branco José Honório Rodrigues – que deu início a uma
revista “concorrente”, a Política Externa Independente, que sobreviveu a três corajosos
números entre 1964 e 1966 – preparou números temáticos sobre os temas econômicos
do momento, a dependência do Brasil das exportações de commodities e a reforma do
sistema multilateral de comércio; as questões da política nuclear, do direito do mar e
vários outros que estavam ativamente presentes na agenda de trabalho da diplomacia
brasileira também comparecem nas páginas da RBPI com muita frequência (ver o
número especial sobre os 40 anos da revista, em 1998, bem como o editorial assinado
353
por Antônio Carlos Lessa e Paulo Roberto de Almeida, no vol. 47-1, junho de 2004, por
ocasião dos cinquenta anos do Instituto, ambos disponíveis na plataforma Scielo).
É provavelmente esse espírito da revista, e do próprio Instituto, que explica a
relativamente rápida retomada das posições da “política externa independente” já no
segundo governo do regime militar, a despeito das limitações políticas da época e de
alguns cânones ideológicos identificados com o espírito de caserna dos dirigentes. A sua
influência foi, no entanto, sendo progressivamente diminuída depois que o ministério e
todo o corpo diplomático presente no Rio de Janeiro tiveram de operar a mudança para
a nova capital, no início dos anos 1970, o que culminou com a transferência do próprio
Instituto Rio Branco, em 1975. O IBRI e a RBPI foram perdendo realce e prestígio nos
meios que eles mais influenciavam: a própria corporação profissional do Itamaraty, o
corpo diplomático e os muitos acadêmicos e altos funcionários que sempre gravitaram
em torno desse antigo empreendimento na capital cultural do país. Seguiu-se uma
trajetória de declínio, quando o IBRI já era praticamente virtual e a revista continuava a
ser mantida – financiada, editada e distribuída – graças aos esforços solitários de
Cleantho de Paiva Leite, seu grande promotor e animador nas duas décadas restantes de
sua fase carioca. Sua morte, em outubro de 1992, sinalizou o fim de uma época e o
início de outra, tanto para o IBRI quanto para a RBPI, que se tornaram menos policy-
oriented, e mais deliberadamente voltados para o mundo acadêmico.
Essa orientação, adotada a partir da transferência – de fato a recriação, tanto no
que concerne o IBRI, fundado novamente, quanto a revista – para Brasília representou
na verdade uma dinamização e uma potencialização das possibilidades intelectuais e de
disseminação para um público mais vasto de ambos instrumentos. O IBRI passou a
organizar seminários e outros eventos tipicamente acadêmicos, firmou convênios com
outras instituições, a começar com a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty,
publicou muitos livros – geralmente em coedição com editoras comerciais ou da área
acadêmica e diplomática – e adquiriu um novo prestígio, graças à sua íntima associação
com o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, que fornece a
quase totalidade dos recursos humanos, e muitos dos recursos materiais, necessários às
suas atividades. O Professor José Carlos Brandi Aleixo, seu primeiro diretor na fase de
Brasília, permanece como presidente de honra, em vista de seu trabalho meritório nos
primeiros esforços de soerguimento da antiga instituição inaugurada em 1954.
Quanto à revista, ela não apenas recuperou suas excelentes qualidades analíticas
dos anos do Rio de Janeiro, quanto cresceu exponencialmente em prestígio e audiência
354
internacionais, o que é confirmado pela ampla gama de instrumentos de citação e de
indexação de âmbito mundial. Dois nomes foram essenciais para essa feliz evolução
institucional e intelectual: o professor emérito Amado Luiz Cervo, seu primeiro editor
durante os primeiros dez anos da fase de Brasília, e desde 2004 o professor Antônio
Carlos Lessa, que imprimiu notável modernização editorial e gráfica à revista, bem
como atuou de forma decisiva para inculcar-lhe os mais rigorosos padrões de qualidade
propriamente acadêmica (ver a coleção: http://ibri-rbpi.org/category/edicoes-da-rbpi/).
Ela é parte de um esforço mais amplo que também vem acompanhado de outros
veículos e instrumentos de pesquisa e publicação, como a antiga plataforma Relnet e,
desde muitos anos, a plataforma Mundorama. Por iniciativa do prof. Lessa, em 2000, foi
criado o Boletim Meridiano 47, cujo significado foi explicado em seu primeiro número
nestes termos: “Meridiano 47 é uma homenagem que o IBRI faz a Brasília (cidade
cortada por aquela linha), onde está funcionando desde 1993, com o que renova o seu
compromisso permanente com a análise de alto nível na área de relações internacionais,
há muito firmado com a publicação ininterrupta da Revista Brasileira de Política
Internacional - RBPI, que desde 1958 é testemunha e muitas vezes veículo preferencial
dos movimentos intelectuais e políticos que renovaram a ação internacional do Brasil,
assumindo desde logo um papel de relevo na cultura política e acadêmica do país.” (n. 1
do boletim, neste link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4774/4007)
O quadro analítico ao final deste ensaio tenta seguir esse longo itinerário a partir
de uma compilação seletiva da produção intelectual em relações internacionais e sobre a
política externa do Brasil, tal como repercutida em obras de acadêmicos, de diplomatas
profissionais e de alguns poucos analistas estrangeiros, obras que foram consideradas
relevantes para enquadrar essa rica evolução intelectual e prática do pensamento e da
própria ação da diplomacia brasileira. Ele fornece um rápido instrumento de consulta
sobre os trabalhos mais importantes publicados no Brasil nas últimas seis décadas, com
destaque para a própria RBPI, ademais de uma seleção dos livros já integrados à
literatura desses campos, e que marcaram cada um desses anos de aprofundamento
analítico e de crescimento intelectual. O IBRI e a RBPI são peças destacadas, e
certamente meritórias, desse cenário de realizações intelectuais, como tais destinados a
perdurar no futuro previsível, num ambiente certamente mais competitivo do que o das
primeiras décadas, e por isso mesmo mais estimulante em termos de rigor analítico e de
preservação dos padrões de qualidade que sempre foram os seus.
355
Compilação seletiva da produção acadêmica e profissional em relações
internacionais e em política externa do Brasil, de 1954 a 2014
1954
Fundação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, no Palácio
Itamaraty, RJ;
Cassiano Ricardo: O Tratado de Petrópolis; Lygia Azevedo e José S. da Gama
e Silva: Evolução do Ministério das Relações Exteriores;
Lançamento do Boletim da ADESG (em 1968: Segurança e Desenvolvimento).
1955
Afonso Arinos: Um Estadista da República: Afrânio de Melo Franco e seu
tempo; Álvaro Teixeira Soares: Diplomacia do Império no Rio da Prata.
1956
Revista do Clube Militar: Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro: A
Questão da Antártica.
1957
A. J. Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano; João Neves da
Fontoura: Depoimentos de um ex-ministro.
1958
Lançamento da Revista Brasileira de Política Internacional - RBPI; no Rio de
Janeiro de1958 a 1992; ano I, n. 1: Raul Fernandes: O malogro da
segurança pela união das nações e a liderança americana; Hermes Lima: A
conferência econômica da Organização dos Estados Americanos; ano I, n.
2: Oswaldo Aranha: Relações diplomáticas com a União Soviética; José
Garrido Torres: Por que um mercado regional latino-americano?; ano I, n.
4: O. A. Dias Carneiro: Interesses políticos e econômicos dos Estados
Unidos na América Latina;
Hélio Jaguaribe: O Nacionalismo na Atualidade Brasileira; Hélio Vianna:
História diplomática do Brasil; Caio de Freitas: George Canning e o Brasil;
Gilberto Freyre: Sugestões em torno de uma nova orientação para as
relações internacionais do Brasil.
1959
Carlos Delgado de Carvalho: História diplomática do Brasil; Luís Vianna
Filho: A vida do Barão do Rio Branco;
RBPI: ano II, n. 5: Barreto Leite Filho: OPA, primeiro ano de discussões e
negociações; ano II, n. 6: Cleantho Leite: Banco Interamericano de
Desenvolvimento; Georges D. Landau: Política internacional e assistência
técnica; ano II, n. 7: João Carlos Muniz: Significado da Operação Pan-
Americana; ano II, n. 8: Roberto de Oliveira Campos: Relações Estados
Unidos-América Latina: uma interpretação; Luís Bastian Pinto: A política
exterior do Brasil na América Latina.
1960
Carlos de Meira Mattos: Projeção Mundial do Brasil; Licurgo Costa: Uma
nova política para as Américas: Doutrina Kubitschek e OPA; Delgado de
Carvalho e Therezinha de Castro: Atlas de Relações Internacionais;
RBPI: ano III, n. 9: Celso A. de Souza e Silva: Operação Pan-Americana:
antecedentes e perspectivas; ano III, n. 10: Cleantho de Paiva Leite:
Associação Internacional de Desenvolvimento; Garrido Torres: Operação
Pan-Americana: uma política a formular; ano III, n. 11: Oliver Ónody:
Relações comerciais do Brasil com o Bloco Soviético.
1961
José Honório Rodrigues: Brasil e África: outro horizonte; A. J. Bezerra de
Menezes: Ásia, África e a política independente do Brasil;
Foreign Affairs: Jânio Quadros: Brazil’s new foreign policy;
RBPI: ano IV, n. 13: Alceu Amoroso Lima: Os Estados Unidos e a América
Latina; ano IV, n. 14: Josué de Castro: Uma política de combate à fome na
América Latina; ano IV, n. 15: Roberto de Oliveira Campos: Sobre o
conceito de neutralismo; Lincoln Gordon: Relações dos Estados Unidos
com a América Latina, especialmente o Brasil; ano IV, n. 16: Glycon de
356
Paiva: Problemática mineral brasileira.
1962
San Tiago Dantas: Política externa independente;
Revista Tempo Brasileiro: Cândido Mendes de Almeida: Política externa e
nação em progresso;
Revista de História: Virgílio Corrêa Filho: O chanceler imortal: o Barão do Rio
Branco; International Affairs (Londres): José Honório Rodrigues: The
Foundations of Brazil’s Foreign Policy;
RBPI: ano V, n. 17: Alceu Amoroso Lima: A posição do Brasil em Punta del
Este; ano V, n. 18: Barbosa Lima Sobrinho: O Brasil e a encampação de
concessionárias estrangeiras; José Honório Rodrigues: O presente e o futuro
das relações africano-brasileiras; ano V, n. 19: Otávio Dias Carneiro: O
comércio internacional de produtos de base.
1963
Candido Mendes de Almeida: Nacionalismo e Desenvolvimento; J. A. Soares
de Souza: A Missão Bellegarde ao Paraguai, 1849-1852; José Honório
Rodrigues: Aspirações Nacionais; Sérgio Macedo: De Tordesilhas à OPA:
um resumo da história diplomática do Brasil; Arnaldo Vieira de Melo:
Bolívar, o Brasil e nossos vizinhos do Prata: da questão de Chiquitos à
Guerra da Cisplatina; Vamireh Chacon: Qual a política externa
conveniente ao Brasil?
RBPI: ano VI, n. 21: Henrique Valle: O Brasil e a ALALC; ano VI, n. 22:
José Maria Gouveia Vieira: A economia internacional do século XX.
1964
Antônio Olinto: Brasileiros na África; M. Franchini Netto: Diplomacia,
instrumento da ordem internacional: história, transformação, atualidade;
Sylvio Monteiro: A Ideologia do Imperialismo;
RBPI: ano VII, n. 25: Octávio A. Dias Carneiro: Problemas de comércio
internacional de produtos de base; ano VII, n. 26: Relatório de Raul
Prebisch para a Unctad: Uma Nova Política Comercial para o
Desenvolvimento; ano VII, n. 27: especial Sobre Santiago Dantas: Estudos,
conferências e discursos; ano VII, n. 28: Ata Final da primeira Unctad;
1965
Pinto Ferreira: Capitais Estrangeiros e Dívida Externa do Brasil; Edmar
Morel: O Golpe começou em Washington;
Lançamento da revista Política Externa Independente (3 números);
PEI: José Honório Rodrigues: Por uma política externa própria e independente;
Maria Y. L. Linhares: Desenvolvimento e política internacional;
RBPI: ano VIII, n. 30: especial sobre a encampação das concessionárias
estrangeiras-I; ano VIII, n. 31-32: especial sobre a encampação das
concessionárias estrangeiras-II.
1966
Celso Furtado: Desenvolvimento e estagnação na América Latina; Mário
Pedrosa: A Opção Imperialista; José Honório Rodrigues: Interesse Nacional
e Política Externa;
RBPI: ano VIII, n. 33-34: Acordo de Garantia de Investimentos entre Brasil e
Estados Unidos I; ano IX, n. 35-36: Acordo de Garantia de Investimentos
entre Brasil e Estados Unidos, II.
1967
F. H. Cardoso e Enzo Faletto: Dependência e desenvolvimento na América
Latina; J. O. Meira Penna: Política externa: segurança e desenvolvimento;
RBPI: ano X, n. 37-38: Especial: Política Nuclear Brasileira; ano X, n. 39-40:
Otávio Dias Carneiro: Estruturas econômica nacionais e relações
internacionais; Jayme Magrassi de Sá: O BNDE e os financiamentos
externos; Celso Lafer: Uma interpretação do sistema de relações
internacionais do Brasil.
357
1968
J. R. Amaral Lapa: A Bahia e a carreira da Índia; Darcy Ribeiro: As Américas
e a Civilização;
RBPI: ano XI, n. 41-42: Especial: Amazônia; Arthur Cézar Ferreira Reis:
Porque a Amazônia deve ser brasileira; Robert Panero: Um sistema sul-
americano de Grandes Lagos; Herman Kahn & Robert Panero: Novo
enfoque sobre a Amazônia; General Frederico Rondon: Diretrizes de uma
planificação para o desenvolvimento regional da Amazônia; ano XI, n. 43-
44: Especial: II UNCTAD.
1969
Revista de História: Pedro Moacyr Campos: As relações do Brasil com a
Alemanha durante o Segundo Reinado;
RBPI: ano XII, n. 45-46: Especial Bacia do Prata; Clovis Ramalhete: Novos
problemas jurídicos do Prata; Oscar Camilión: Relações entre Brasil e
Argentina no mundo atual; ano XII, n. 47-48: Especial sobre Direito do
Mar.
1970
Juracy Magalhães: Minha experiência diplomática; Delgado de Carvalho:
Civilização Contemporânea;
RBPI: ano XIII, n. 49-50: Emb. J. A. Araújo Castro: Fundamentos da paz
internacional: balança de poder ou segurança coletiva e As Nações Unidas e
a política do poder; Mario Gibson Barboza: Política Brasileira de Comércio
Exterior; Mozart Gurgel Valente: Relações comerciais entre Brasil e EUA;
ano XIII, n. 51-52: Especial Produtos de Base.
1971
Delgado de Carvalho: Relações Internacionais; A. Teixeira Soares: Um
Grande Desafio Diplomático no Século Passado: navegação e limites na
Amazônia; G. E. Nascimento e Silva: A Missão Diplomática;
RBPI: ano XIV, n. 53-54: Emb. Araújo Castro: Continente americano dentro
da problemática mundial; General Rodrigo Otávio Jordão Ramos: As Forças
Armadas e a integração da Amazônia; Miguel Osório de Almeida:
Desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente; ano XIV, n.
55-56: Glycon de Paiva: Estágios do desenvolvimento econômico.
1972
Frank McCann: The Brazilian-American Alliance, 1937-1945;
Revista Brasileira de Estudos Políticos: Emb. Araújo Castro: O congelamento
do poder mundial;
RBPI, ano XV, n. 57-58: Especial sobre o Brasil na III UNCTAD; Amaury
Bier: Negociações comerciais multilaterais no âmbito do GATT à luz dos
resultados da III UNCTAD; ano XV, n. 59-60: Guilherme Arroio: Sistema
Geral de Preferências: Análise dos principais aspectos do Sistema Geral de
Preferências Tarifárias, um dos resultados mais concretos da Unctad.
1973
Celso Lafer e Felix Peña: Argentina e Brasil no sistema de relações
internacionais; Moniz Bandeira: Presença dos Estados Unidos no Brasil:
dois séculos de história;
RBPI: ano XVI, n. 61-62: Ronaldo Costa: Participação dos países em
desenvolvimento no comércio internacional; ano XVI, n. 63-64: General
Carlos de Meira Mattos: O poder militar e a política internacional.
1974
O. Ianni: Imperialismo na América Latina; Wayne Selcher: The Afro-Asian
dimension of Brazilian foreign policy, 1956-1972;
RBPI: ano XVII, n. 65-68: Ramiro S. Guerreiro: Organismos internacionais:
conceitos e funcionamento; Eduardo Pinto: Brasil: os difíceis caminhos da
energia nuclear;
1975
Stanley Hilton: Brazil and the great powers, 1930-1939: the politics of trade
rivalry; Carlos E. Martins: Brasil-Estados Unidos: dos anos 60 aos 70; José
358
Honório Rodrigues: Independência: Revolução e contra-revolução, a
política internacional;
RBPI: ano XVIII, n. 69-72: Especial: Nova Ordem Mundial: aspectos
políticos, econômicos, tecnológicos; Celso Lafer: Evolução da política
externa brasileira;
Cadernos CEBRAP: Carlos Estevam Martins: A evolução da política externa
brasileira na década 1964-74.
1976
Terezinha de Castro: Rumo à Antártica; William Perry: Contemporary
Brazilian Foreign Policy: the international strategy of an emerging power;
Luciano Martins: Pouvoir et Développement Économique: formation et
évolution des structures politiques au Brésil;
RBPI: ano XIX, n. 73-76: CPI das Multinacionais (1ª parte).
1977
Pedro Malan et ali: Política econômica externa e industrialização do Brasil
(1939-52); Celso Lafer: Comércio e relações internacionais; Ronald
Schneider: Brazil: Foreign Policy of a Future World Power; Roberto
Gambini: O Duplo Jogo de Getúlio Vargas; Carlos Meira Mattos: A
geopolítica e as projeções do poder;
RBPI: ano XX, n. 77-80: CPI das Multinacionais (2ª parte).
1978
Luis Alberto Bahia: Soberania. Guerra e Paz;
RBPI: ano XXI, n. 81-84: Clóvis Brigagão: Cancelamento do Acordo Militar
Brasil-EUA;
Lançamento em Brasília da revista Relações Internacionais: Amado Cervo: Os
primeiros passos da diplomacia brasileira;
1979
Celso Lafer: O convênio do café de 1972: da reciprocidade no direito
internacional econômico; A.A. Cançado Trindade: O Estado e as Relações
Internacionais; Ana Célia Castro: As empresas estrangeiras no Brasil,
1860-1913;
RBPI: ano XXII, n. 85-88: Especial: A Crise Energética Mundial: Amaury
Porto de Oliveira: A natureza política do preço do petróleo; Adilson de
Oliveira, João L. R. H. Araújo e Luiz Pinguelli Rosa: Impasse atual e
perspectivas a longo prazo da política energética no Brasil;
Relações Internacionais: Celso Lafer: Política exterior brasileira: balanço e
perspectivas
1980
Gerson Moura: Autonomia na Dependência: 1935-1942; Jobson Arruda: O
Brasil no comércio colonial;
RBPI: ano XXIII, n. 89-92: Hélio Jaguaribe: O Informe Willy Brandt e suas
implicações políticas; Roberto Abdenur e Ronaldo Sardenberg: Notas sobre
as relações norte-sul e o relatório Brandt; Stanley Hilton: Brasil-Argentina;
Relações Internacionais: H. Jaguaribe: Autonomia Periférica e Hegemonia
Cêntrica; R. Sardenberg: O pensamento de Araújo Castro.
1981
Amado L. Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores, 1826-
1889; Golbery do Couto e Silva: Conjuntura política nacional; Heitor Lyra:
Minha Vida Diplomática;
RBPI: ano XXIV, n. 93-96, Especial sobre relações Brasil-Argentina;
1982
Celso Lafer: Paradoxos e possibilidades: Estudos sobre a Ordem Mundial e
sobre a Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em
Transformação; R. Amado (org.): Araújo Castro; Maurício Nabuco:
Reflexões e reminiscências;
RBPI: ano XXV, n. 97-100; Henry Kissinger, Hélio Jaguaribe, Albert
Fishlow: Relações Brasil-EUA; Pedro Sampaio Malan: Sistema econômico
359
internacional: lições da História;
Revista Dados: M.R.S.de Lima e G. Moura: A trajetória do pragmatismo: uma
análise da política externa brasileira.
1983
M. R. Soares de Lima e Z. Cheibub: Relações internacionais e política externa
brasileira: debate intelectual e produção acadêmica;
RBPI: ano XXVI, n. 101-104; Geraldo Eulálio Nascimento Silva: Terrorismo
na política internacional; J. Carlos Brandi Aleixo: Brasil e América Central;
Wayne Selcher: O Brasil no Mundo; Amaury Porto de Oliveira: Óleo para
as lâmpadas das ‘Majors’
Lançamento em São Paulo da revista Política e Estratégia (PeE); Wayne
Selcher: O Brasil no sistema mundial de poder
1984
Celso Lafer: O Brasil e a crise mundial: Paz, Poder e Política Externa; A. A.
Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito
Internacional Público (6 volumes até 1988, cobrindo de 1889 até 1981);
RBPI: ano XXVII, n. 105-108; Renato Archer: Santiago Dantas e a
formulação da Política Exterior Independente; Geraldo L. Cavagnari: Brasil:
introdução ao estudo de uma potência média; Amaury Porto de Oliveira:
Reestruturação da indústria internacional de petróleo; Santiago Fernandes:
A ilegitimidade da dívida externa; Teixeira Soares: Getúlio Vargas: verso e
reverso de um estadista.
1985
Hélio Jaguaribe: Reflexões sobre o Atlântico Sul; Moniz Bandeira: O
expansionismo brasileiro e a formação dos Estados no Prata; Ricardo A. S.
Seitenfus: O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-
1942; Alexandre Barros: El estudio de las relaciones internacionales en
Brasil; Mônica Hirst (org.), Brasil-Estados Unidos na transição
democrática;
Lançamento da revista Contexto Internacional (IRI/PUC-RJ);
RBPI: ano XXVIII, n. 109-110: Gerson Moura: As razões do alinhamento:
a política externa brasileira no após guerra (1945-1950); Comissão de
Relações Exteriores da CD (1984): Tancredo Neves; Celso Lafer; Hélio
Jaguaribe; Marcílio Marques Moreira;
Política e Estratégia: Celso Lafer: A diplomacia brasileira e a nova república;
1986
Hélio Jaguaribe: O novo cenário internacional; A. L. Cervo e C. Bueno: A
Política Externa Brasileira, 1822-1985; G. Moura: Tio Sam chega ao
Brasil: a penetração cultural americana;
RBPI: ano XXIX, n. 113-114: Paulo Nogueira Batista: Dívidas externas dos
Estados; Stanley Hilton: Afrânio de Melo Franco e a diplomacia brasileira,
1917-1943; ano XXIX, n. 115-116: Rubens Ricupero: O Brasil e o Mundo
no século XXI; Paulo R. Almeida: Relações exteriores e Constituição;
Moniz Bandeira: Continuidade e mudança na política externa brasileira.
1987
Moniz Bandeira O Eixo Argentina-Brasil: o processo de integração da
América Latina; René A. Dreifuss: A internacional capitalista;
RBPI: ano XXX, n. 117-118; Celso Souza e Silva: Proliferação Nuclear e o
Tratado de Não Proliferação; Rômulo Almeida: Reflexão sobre a integração
latino-americana; Hélio Jaguaribe: Integração Argentina-Brasil; Rex
Nazareth Alves: Programa Nuclear Brasileiro; ano XXX, n. 119-120:
especial 30 anos da RBPI: reproduções de artigos já publicados.
360
1988
Sonia de Camargo e José Maria Vasquez: Autoritarismo e democracia na
Argentina e no Brasil: uma década de política exterior; Jacob Dolinger: A
Dívida Externa Brasileira: solução pela via arbitral; Winston Fritsch:
External constraints on economic policy in Brazil, 1889-1930;
RBPI: ano XXXI, n. 121-122; Rubens Ricupero: O Brasil e o futuro do
comércio internacional; Amaury Porto de Oliveira: Nas interfaces do futuro
chinês; ano XXXI, n. 123-124; Hélio Jaguaribe: América Latina no
contexto mundial; Oscar Lorenzo Fernandez: O desenvolvimento
tecnológico do Brasil e a cooperação internacional; Paulo R. Almeida:
Retorno ao futuro: a ordem internacional no horizonte 2000.
1989
Moniz Bandeira: Brasil-Estados Unidos: A Rivalidade Emergente, 1950-1988;
Gelson Fonseca Jr. e Valdemar Carneiro Leão (orgs.): Temas de Política
Externa Brasileira I; João H. P. de Araújo, M. Azambuja e Rubens
Ricupero: Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira; João Pandiá
Calógeras: A Política Exterior do Império (3 vols. ed. fac-similar);
Revista Lua Nova: especial: Relações internacionais e o Brasil (Marcílio M.
Moreira, Celso Lafer, R. Seitenfus, Tullo Vigevani);
RBPI: ano XXXII, n. 125-126; Sérgio Bath: Rui na Haia: um precursor; ano
XXXII, n. 127-128; Paulo Nogueira Batista: Mudanças estruturais e
desequilíbrio na economia mundial; José Octávio de Arruda Mello:
Historiografia e história das relações internacionais: de José Honório ao
IBRI.
1990
José L. Werneck da Silva: As duas faces da moeda: a política externa do
Brasil monárquico; Mônica Hirst: O pragmatismo impossível: a política
externa do segundo governo Vargas (1951-1954); Gerson Moura: O
Alinhamento sem Recompensa: a política externa do Governo Dutra; Tullo
Vigevani: Terceiro Mundo: conceito e história;
RBPI: ano XXXIII, n. 129-130; Celso Furtado: As duas vertentes da visão
centro-periferia; Paulo Tarso Flecha de Lima: O Brasil no panorama
internacional: desafios e controvérsias; ano XXXIII, n. 131-132; Hélio
Jaguaribe: Brasil, no advento do século XXI; José Vicente Lessa: Da
previsibilidade histórica; Paulo R. Almeida: Retorno ao futuro, parte II;
Contexto Internacional: Celso Lafer: Reflexões sobre a inserção do Brasil no
contexto internacional
1991
G. Moura: Sucessos e Ilusões: relações internacionais do Brasil durante e
após a Segunda Guerra Mundial; Rubens A. Barbosa: América Latina em
perspectiva; José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New;
RBPI: ano XXXIV, n. 133-134; Celso de Souza e Silva: A posição relativa do
Brasil no quadro estratégico mundial; Rubens A. Barbosa: A importância da
integração e da cooperação regional e internacional para o desenvolvimento
latino-americano; ano XXXIV, n. 135-136: Paulo R. Almeida: 1492 e o
nascimento da moderna diplomacia;
Contexto Internacional: P. R. Almeida: Relações internacionais do Brasil:
introdução metodológica.
1992
A. L. Cervo e C. Bueno: História da Política Exterior do Brasil; Helder Gordim
da Silveira: Integração latino-americana: projetos e realidades;
Lançamento da revista Política Externa (SP: Ed. Paz e Terra-NUPRI/USP);
Lançamento dos cadernos Premissas (NEE/Unicamp);
RBPI: ano XXXV, n. 137-138; Celso Amorim: Quem tem medo de Stefan
Zweig? ou os caminhos da autonomia tecnológica; Paulo R. Almeida:
361
Retorno ao Futuro, Parte III: agonia e queda do socialismo real; ano XXXV,
n. 139-140: Sérgio Bath: Cleantho de Paiva Leite; Emb. Ramiro Saraiva
Guerreiro: Repercussões das mudanças da estrutura mundial do Direito
Internacional; [Último número da RBPI no Rio de Janeiro]
Contexto Internacional: P. R. Almeida: Os partidos políticos nas relações
internacionais, 1930-1990.
1993
IBRI-RBPI: Constituição do IBRI em sua fase de Brasília, com eleição do
primeiro presidente, Professor José Carlos Brandi Aleixo, ulteriormente
presidente de honra;
Moniz Bandeira, Estado Nacional e Política Internacional na América Latina:
O Continente nas relações Argentina-Brasil (1930/1992); P. R. Almeida: O
Mercosul no contexto regional e internacional;
1º número da série de Brasília da RBPI, vol. 36, n. 1: Paulo R. de Almeida:
Estudos de relações internacionais do Brasil: produção historiográfica,
1927-92; vol. 36, n. 2; Stanley Hilton: Brasil e Argentina: da rivalidade à
entente; Clodoaldo Bueno: A diplomacia brasileira e a formação do
Mercado Comum Europeu; Flavio M. De Oliveira Castro: As relações
oficiais russo-soviéticas com o Brasil (1808-1961);
Política Externa: Celso Lafer, P. N. Batista: A política externa brasileira do
governo Collor.
1994
J. A. Lindgren Alves: Os direitos humanos como tema global: Gelson Fonseca
Júnior, Sérgio Henrique Nabuco de Castro (orgs.): Temas de Política
Externa II; Amado L. Cervo (org.): O Desafio Internacional: a política
exterior do Brasil de 1930 a nossos dias; Roberto Campos: A Lanterna na
Popa; Vasco Leitão da Cunha: Diplomacia em Alto Mar; Ricardo Seitenfus:
Para uma Nova Política Externa Brasileira;
RBPI: vol. 37, n. 1; Eugênio V. Garcia: A candidatura do Brasil a um assento
permanente na Liga das Nações; Thomaz G. da Costa: Política de defesa:
uma discussão conceitual e o caso do Brasil; vol. 37, n. 2: Eiiti Sato: Do
GATT à Organização Mundial do Comércio: as transformações da Ordem
Internacional e a harmonização de políticas comerciais; Moniz Bandeira: O
nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria; Francisco
Doratioto: Há 130 anos o Tratado da Tríplice Aliança;
Política Externa: Paulo Nogueira Batista: Cláusula social e comércio
internacional;
Contexto Internacional, vol. 16, n. 2: P. R. Almeida: O Fim de Bretton-
Woods?: a longa marcha da OMC.
1995
José H. Rodrigues e Ricardo Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil);
MRE: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995; Moniz
Bandeira: O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados na Bacia
do Prata; R. Ricupero: Visões do Brasil; C. Bueno: A República e sua
Política Exterior; P. Vizentini: Relações internacionais e desenvolvimento;
C. Brigagão: Margens do Brasil; S. Miyamoto: Geopolítica e Poder no
Brasil; . Luiz Felipe de Seixas Corrêa: A Palavra do Brasil nas Nações
Unidas: 1946-1995;
RBPI: vol. 38, n. 1; M. Hirst e L. Pinheiro: A política externa do Brasil em
dois tempos; Antônio Carlos Lessa: A estratégia de diversificação de
parcerias no contexto do Nacional-desenvolvimentismo (1974-1979);
Premissas: S. Miyamoto & W. Gonçalves: A política externa brasileira e o
regime militar;
362
Política Externa: Celso Amorim: O Brasil e o Conselho de Segurança da
ONU.
1996
J. A. Guilhon de Albuquerque (org.): Sessenta anos de política externa (vols. 1
e 2); Renato Baumann (org.): O Brasil e a Economia Global; Antônio S.
Brandão e Lia V. Pereira (orgs.). Mercosul: perspectivas da integração;
Sérgio Florêncio e Ernesto Araújo: Mercosul Hoje; Gonçalo Mello Mourão,
A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história
diplomática;
Lançamento da revista Parcerias Estratégicas (CEE-SAE; em 2001: CGEE);
RBPI: vol. 39, n. 1: Samuel Pinheiro Guimarães: Aspectos econômicos do
Mercosul; Paulo R. Almeida: A economia da política externa: a ordem
internacional e o progresso da Nação; vol. 39, n. 2: Alcides G. R. Prates: O
Brasil e a coordenação entre os países de porte continental na perspectiva
atual; Paulo R. Almeida: O legado do Barão: Rio Branco e a moderna
diplomacia brasileira.
1997
Flavio S. Saraiva (org.), A. L. Cervo, W. Döpcke e Paulo R. de Almeida.
Relações internacionais contemporâneas: 1815 a nossos dias; Ricardo
Seitenfus: Manual das Organizações Internacionais; Odete M. de Oliveira
(coord.): Relações Internacionais & globalização; Demétrio Magnoli, O
Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-
1912); José Manoel Cardoso de Oliveira: Atos Diplomáticos do Brasil:
tratados do período colonial e vários documentos desde 1492;
RBPI: vol. 40, n. 1: Eugenio V. Garcia: O pensamento dos militares em
política internacional (1961-1989); Everton V. Vargas: Átomos na
integração : a aproximação Brasil-Argentina no campo nuclear e a
construção do Mercosul; vol. 40, n. 2: Paulo R. de Almeida: A
democratização da sociedade internacional e o Brasil: ensaio sobre uma
mutação histórica de longo prazo (1815-1997).
1998
Celso Lafer: A OMC e a regulamentação do comércio internacional; Gelson
Fonseca Jr.: A Legitimidade Internacional; Paulo R. de Almeida: Relações
internacionais e política externa do Brasil e Mercosul: fundamentos e
perspectivas; Paulo Vizentini: A política externa do regime militar
brasileiro; Irineu Strenger: Relações internacionais; Moniz Bandeira: De
Marti a Fidel: a revolução cubana e a América Latina; Amado L. Cervo e
Mario Rapoport (orgs.): História do Cone Sul; Carlos Delgado de Carvalho:
História Diplomática do Brasil (ed. fac-similar);
RBPI, número especial, 40 anos, 1958-1998: Paulo R. de Almeida: RBPI: a
continuidade de um empreendimento exemplar; Eiiti Sato: 40 anos de
política externa brasileira, 1958-1998: três inflexões; Antonio Carlos Lessa:
A diplomacia universalista do Brasil: a construção do sistema
contemporâneo de relações bilaterais; Antônio J. R. Rocha: O tratamento de
temas multilaterais na RBPI: 1958-1998.
1999
Sérgio Danese: Diplomacia presidencial; Paulo R. de Almeida: O Brasil e o
multilateralismo econômico; PRA: O Estudo das Relações Internacionais
do Brasil; Samuel Pinheiro Guimarães: Quinhentos anos de periferia; Yves
Chaloult e Paulo Roberto de Almeida (orgs.): Mercosul, Nafta e Alca: a
dimensão social; Rafael Duarte Villa: Da crise do realismo à segurança
global multidimensional; Marcelo de Paiva Abreu: O Brasil e a economia
mundial, 1930-1945; Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura: O Brasil
e as operações de manutenção da paz das Nações Unidas; Celso Lafer:
363
Comércio, desarmamento, direitos humanos; Luiz Felipe Lampreia:
Diplomacia brasileira: palavras, contextos e razões;
RBPI: vol. 42, n. 1; Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Brasil e o mundo no
limiar do novo século: diplomacia e desenvolvimento; vol. 42, n. 2: Raúl
Bernal-Meza: Políticas exteriores comparadas de Argentina e Brasil rumo
ao Mercosul; Pio Penna Filho: A pesquisa histórica no Itamaraty.
2000
Criação do boletim Meridiano 47 por iniciativa do prof. Antônio Carlos Lessa
(Irel-UnB);
Eugenio Vargas Garcia: O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926); Paulo R.
Almeida: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud;
Valerio Mazzuoli: Direitos humanos e relações internacionais; Rubens
Ricupero: Rio Branco: o Brasil no Mundo; Gelson Fonseca-Sérgio Nabuco
(orgs.): Temas de política externa brasileira II; Samuel Pinheiro Guimarães
(org.): Argentina: visões brasileiras; Paulo A. Pereira Pinto: A China e o
Sudeste Asiático; Marcos C. Lima e Marcelo Medeiros (orgs.): O Mercosul
no limiar do século XXI.
RBPI: vol. 43, n. 1: Mario Rapoport e Rubén Laufer: Os Estados Unidos
diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da década de 1960; João
Fábio Bertonha: A questão da Internacional Fascista no mundo das relações
internacionais: a extrema direita entre solidariedade ideológica e rivalidade
nacionalista; Shiguenoli Miyamoto: O Brasil e as negociações multilaterais;
Eiiti Sato: A agenda internacional depois da Guerra Fria: novos temas e
novas percepções; vol. 43, n. 2: Francisco Doratioto: A política platina do
Barão de Rio Branco; Frederico Lamego de Teixeira Soares: Análise
econômica da parceria Brasil - Alemanha no contexto das relações entre o
Mercosul e a União Europeia.
2001
IBRI livros: José Flávio Sombra Saraiva (org.): CPLP – Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa: solidariedade e ação política; José Flávio
Sombra Saraiva (org.): Relações Internacionais – dois séculos de história.
Vol. I: Entre a preponderância europeia e a emergência americano-
soviética (1815-1947); idem: Relações Internacionais – dois séculos de
história. Vol. II: entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos
dias); José Augusto Lindgren Alves: Relações internacionais e temas
sociais: a década das conferências; Amado Luiz Cervo: As Relações
Internacionais da América Latina – velhos e novos paradigmas;
Paulo R. de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil;
Fernando Mello Barreto: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do
Brasil, 1912-1964; Alberto da Costa e Silva (org.): O Itamaraty na cultura
brasileira; José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.): Sessenta anos de
Política Externa Brasileira (1930-1990), vols. 3 e 4; Marcílio Marques
Moreira: Diplomacia, Política e Finanças; Rubens Ricupero: O Brasil e o
Dilema da Globalização; Funag: Revista Americana (1909-1919) (edição
fac-similar).
RBPI: vol. 44, n. 1: Fernando Henrique Cardoso: A política externa do Brasil
no início de um novo século; Paulo R. de Almeida: A economia
internacional no século XX; um ensaio de síntese; vol. 44, n. 2: Antônio
Carlos Lessa e Frederico Arana Meira: O Brasil e os atentados de 11 de
setembro de 2001.
2002
IBRI livros: Alcides Costa Vaz: Cooperação, integração e processo
negociador: A construção do Mercosul; Estevão Chaves de Rezende
364
Martins: Relações internacionais – cultura e poder; Carlos Pio: Relações
Internacionais: economia política e globalização; Antônio Jorge Ramalho
da Rocha: Relações Internacionais: teorias e agendas;
Paulo Roberto de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as
relações internacionais contemporâneas; Amado Cervo e Clodoaldo
Bueno: História da Política Exterior do Brasil (2ª ed.); Francisco Doratioto:
Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai; Rubens A. Barbosa
Marshall Eakin e Paulo R. Almeida (orgs.): O Brasil dos Brasilianistas: um
guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000; Carlos
Henrique Cardim e João Almino (orgs.): Rio Branco, a América do Sul e a
Modernização do Brasil; Welber Barral: O Brasil e a OMC; Luis Claudio
V. G. Santos: O Império e as repúblicas do Pacífico; Reinaldo Gonçalves:
Vagão descarrilhado: o Brasil e o futuro da economia global; Raul M. da
Silva e Clovis Brigagão (orgs.): História das Relações Internacionais do
Brasil.
RBPI: vol. 45, n. 1: Amado L. Cervo: Relações internacionais do Brasil: um
balanço da era Cardoso; vol. 45, n. 2: Norma Breda dos Santos: A dimensão
multilateral da política externa brasileira: perfil da produção bibliográfica;
Paulo R. Almeida: A Política Externa do novo Governo do Presidente Luís
Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática;
Contexto Internacional: Mônica Herz: O Crescimento da Área de Relações
Internacionais no Brasil.
2003
IBRI livros: Estevão Chaves de Rezende Martins (org.): Relações
Internacionais: visões do Brasil e da América Latina; Antônio Carlos
Lessa: A Construção da Europa: a última utopia das relações
internacionais; José Flávio Sombra Saraiva (org.): Foreign Policy and
Political Regimes; Gabriel O. Alvarez (org.): Indústrias culturais no
Mercosul;
Clodoaldo Bueno: Política externa da Primeira República: os anos de apogeu;
Paulo Vizentini: Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula; Luiz
Augusto Souto Maior: O Brasil em um mundo em transição; Tullo Vigevani
e Marcelo Passini Mariano: Alca: o gigante e os anões; Moniz Bandeira:
Conflito e integração na América do Sul: Brasil, Argentina e Estados
Unidos (Da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003); Valerio Mazzuoli e
Roberto Luiz Silva (orgs.): O Brasil e os acordos econômicos
internacionais; Ricardo Seitenfus: O Brasil vai à Guerra: o Processo do
Envolvimento;
RBPI: vol. 46, n. 1: Luiz A. P. Souto Maior: Desafios de uma política externa
assertiva; vol. 46, n. 2: João Paulo Soares Alsina Jr.: A síntese imperfeita:
articulação entre política externa e política de defesa na era Cardoso; Eiiti
Sato: Conflito e cooperação nas relações internacionais: as organizações
internacionais no século XXI.
2004
IBRI livros: José Flávio S. Saraiva & Pedro Motta Pinto Coelho (orgs.):
Fórum Brasil-África: Política, Cooperação e Comércio;
Paulo R. de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil (2ª
ed.); Francisco Carlos Teixeira da Silva (org.): Enciclopédia de Guerras e
Revoluções do Século XX; Clovis Brigagão: Relações internacionais no
Brasil: instituições, programas, cursos e redes; Mônica Herz e Andrea
Hoffman: Organizações Internacionais: histórias e práticas; Heloisa C.
Machado da Silva: Da Substituição de Importações à Substituição de
365
Exportações: a política de comércio exterior brasileira de 1945 a 1979;
Moniz Bandeira: As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a
Lula, 1990-2004); Luís Claudio V. Gomes Santos: O Brasil entre a América
e a Europa: o Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à
Conferência de Washington; Demétrio Magnoli: Relações Internacionais:
teoria e história;
RBPI: vol. 47, n. 1: Uma política externa engajada: a diplomacia do governo
Lula: Paulo R. de Almeida; vol. 47, n. 2: Eduardo Viola & Hector Ricardo
Leis: Unipolaridade, governabilidade global e intervenção unilateral anglo-
americana no Iraque; Luiz A. P. Souto Maior: A crise do multilateralismo
econômico e o Brasil; Paulo R. Almeida: Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais: 50 anos de um grande empreendimento intelectual.
2005
IBRI livros: José Flávio Sombra Saraiva & Amado Cervo (orgs.): O
crescimento das Relações Internacionais no Brasil;
Eugênio Vargas Garcia: Cronologia das relações internacionais do Brasil;
Paulo R. de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (2ª
ed.) e Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências
(coeditado com Rubens A. Barbosa); Mônica Hirst: The United States and
Brazil: a long road of unmet expectations; Moniz Bandeira: A formação do
Império Americano; Henrique Altemani Oliveira: Política Externa
Brasileira; Ricardo Seitenfus: Manual das Organizações Internacionais;
Williams Gonçalves e Guilherme Silva: Dicionário de Relações
Internacionais; Gilberto Sarfati: Teorias de Relações Internacionais;
Eduardo Felipe P. Matias: A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado
soberano à sociedade global; José Augusto Lindgren Alves: Os direitos
humanos na pós-modernidade;
RBPI: vol. 48, n. 1: Maria Regina Soares de Lima: A política externa
brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul; Alessandro Candeas:
Relações Brasil-Argentina: uma análise dos avanços e recuos; vol. 48, n. 2:
Henrique Altemani de Oliveira e Gilmar Masiero: Estudos Asiáticos no
Brasil: contexto e desafios; Marcelo Fernandes de Oliveira: Alianças e
coalizões internacionais do governo Lula: o Ibas e o G-20; Hélio Franchini
Neto: A Política Externa Independente em ação: a Conferência de Punta del
Este de 1962; Luís Claudio Villafañe G. Santos: A América do Sul no
discurso diplomático brasileiro.
2006
IBRI livros: Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa (orgs.):
Relações internacionais do Brasil: temas e agendas (vols. 1 e 2);
Amado Cervo e Clodoaldo Bueno: História da Política Exterior do Brasil (3ª
ed.); Francisco Doratioto: Maldita guerra: nova história da Guerra do
Paraguai (2ª ed.); Eugênio Vargas Garcia: Entre América e Europa: a
política externa brasileira na década de 1920; Samuel Pinheiro Guimarães:
Desafios brasileiros na era dos gigantes; Fernando Mello Barreto: Os
Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1964-1985; Paulo R. de
Almeida: O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (2ª ed.); Marcelo
Raffaelli: A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e
Estados Unidos durante o Império; Henrique Altemani de Oliveira e
Antônio Carlos Lessa: Política Internacional Contemporânea: mundo em
transformação; Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no
período colonial; Leonardo Carneiro Enge: A Convergência
Macroeconômica Brasil-Argentina; João Clemente Baena Soares: Sem
366
medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc; José Oswaldo de Meira Penna:
Polemos: Uma análise crítica do darwinismo;
RBPI: vol. 49, n. 1; Paulo R. Almeida: Uma nova ‘arquitetura’ diplomática?:
Interpretações divergentes sobre a política externa do Governo Lula (2003-
2006);
Registro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), criada
em 2005: primeiro encontro nacional em Brasília (julho de 2007).
2007
IBRI livros: Amado Luiz Cervo: Relações internacionais da América Latina:
velhos e novos paradigmas (2a. ed.); Estevão Chaves de Rezende Martins:
Cultura e Poder;
Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores): A Abertura dos
Portos; Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil
no Mundo; Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política
externa de Jânio Quadros; João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o
primeiro Chanceler do Brasil; Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem
Injusta; Everton Vieira Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e
Hispanidade no Pensamento Social Brasileiro e Latino-Americano;
Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento
Jurídico;
RBPI: vol. 50, n. 1: Domício Proença Júnior & Érico Esteves Duarte: Os
estudos estratégicos como base reflexiva da defesa nacional; Dawisson
Belém Lopes: A ONU tem autoridade? Um exercício de contabilidade
política (1945-2006; Leandro Freitas Couto: O horizonte regional do Brasil
e a construção da América do Sul; Rogério de Souza Farias: Relações
internacionais do Brasil em um mundo em transição; vol. 50, n. 2: Antônio
Carlos Lessa: RBPI: cinquenta anos; Paulo R. de Almeida: As relações
econômicas internacionais do Brasil dos anos 1950 aos 80.
2008
Amado Luiz Cervo: Inserção Internacional: formação dos conceitos
brasileiros; Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud:
Chronique d’une guerre secrete 1930-1950; Vasco Mariz: Temas da
política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas;
Eugênio Vargas Garcia (org.): Diplomacia Brasileira e Política Externa:
Documentos Históricos 1493-2008;
RBPI: vol. 51, n. 1: Tullo Vigevani et alii: O papel da integração regional para
o Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites; Andrés Rivarola
Puntigliano: Going Global: an organizational study of Brazilian foreign
policy; Suzeley Mathias et alii: Aspectos da integração regional em defesa
no Cone Sul; vol. 51, n. 2: Antônio Carlos Lessa: Há cinquenta anos a
Operação Pan-Americana; Amado Luiz Cervo: Conceitos em Relações
Internacionais; Gilmar Masiero & Heloisa Lopes: Etanol e biodiesel como
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1979-2008; Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de
1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática; Luiz Felipe
de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902;
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vol. 52, n. 2: Marcelo Dias Varella: Efetividade do Órgão de Solução de
Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os
seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu
aperfeiçoamento; Shiguenoli Miyamoto: O Brasil e a comunidade dos países
de língua portuguesa (CPLP); Pio Penna Filho: O Itamaraty nos anos de
chumbo: o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no
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21st century; Antônio Carlos Lessa: Brazil's strategic partnerships: an
assessment of the Lula era (2003-2010); vol. 53, n. 1: Gunther Rudzit & Oto
Nogami: Segurança e Defesa Nacionais: conceitos básicos para uma análise;
Matias Spektor: Ideias de ativismo regional: a transformação das leituras
brasileiras da região; vol. 53, n. 2: Ariane Figueira: Rupturas e
continuidades no padrão organizacional e decisório do Ministério das
Relações Exteriores; João Fabio Bertonha: Brazil: an emerging military
power? The problem of the use of force in Brazilian international relations
in the 21st century; Marcos Aurélio Guedes de Oliveira: Sources of Brazil's
Counter-Hegemony.
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antiglobalização; Luiz Fernando Ligièro: A Autonomia na Politica Externa
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momentos diferentes, políticas semelhantes?; San Tiago Dantas: Política
Externa Independente (edição atualizada); Alberto da Costa e Silva (coord.):
História do Brasil Nação: 1808-2010; vol. 1: Crise Colonial e
Independência: 1808-1830; Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro
Permanente: o Brasil e a criação da ONU; Gelson Fonseca: Diplomacia e
Academia; Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações
Exteriores do Brasil; Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio
Internacional e Crescimento Econômico no Brasil; Ademar Seabra da Cruz
Junior: Diplomacia, desenvolvimento e sistemas nacionais de inovação;
Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas; Rubens Barbosa: O
Dissenso de Washington: Notas de um observador privilegiado sobre as
relações Brasil-Estados Unidos; Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos
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busca da Diplomacia;
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Villafañe Gomes Santos (curador): Rio Branco: 100 anos de memória;
Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do
Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização; Rubens
Antônio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro; Luiz Felipe de
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reaproximação (1889-1954); Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da
Ponte Ribeiro: pionero de la diplomacia y amistad entre Brasil y Perú;
Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre personalidades e
episódios controvertidos da história do Brasil e de Portugal; Fernando de
Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização )2 vols.); Luís
Cláudio Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a
identidade brasileira; Antônio Augusto Cançado Trindade: Repertório da
Prática Brasileira do Direito Internacional Público (nova ed.); André
Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação e a
política externa brasileira; Maria Feliciana Nunes Ortigão de Sampaio: O
Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT);
RBPI: vol. 55, 1: Eiiti Sato & Susan E. M. Cesar: A Rodada Doha, as
mudanças no regime do comércio internacional e a política comercial
brasileira; vol. 55, 2: Clodoaldo Bueno: O Barão do Rio Branco no
Itamaraty (1902-1912); vol. 55, Special issue: Environment: Eduardo Viola
& Antônio Carlos Lessa: Global climate governance and transition to a low-
carbon economy; Eduardo Viola, Matias Franchini & Thaís Lemos: Climate
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Mariz: Nos bastidores da diplomacia: memórias diplomáticas; Rogério de
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(1946-1994); Guilherme Frazão Conduru: O Museu Histórico e Diplomático
do Itamaraty: história e revitalização; Fernando Guimarães Reis: Por uma
academia renovada: formação do diplomata brasileiro; João Augusto Costa
Vargas: Um mundo que também é nosso : o pensamento e a trajetória
diplomática de Araujo; Eugênio V. Garcia: Conselho de Segurança das
Nações Unidas; Carlos Márcio B. Cozendey: Instituições de Bretton Woods;
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colonial ao reconhecimento do Império (1500-1825); Elias Luna Almeida
Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses
369
brasileiros; Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas; Antônio
Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos;
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Goes Filho: As Fronteiras do Brasil; André Amado: Por Dentro do
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Pensamento Político de Maquiavel (3a. ed.); Fernando Cacciatore de Garcia:
Como Escrever a História do Brasil: Miséria e Grandeza;
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world; Jose León-Manríquez; Luis F. Alvarez: Mao's steps in Monroe's
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triangular relation?; RBPI, vol. 57, n. 1: Andrea Q. Steiner et alii: From
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Fontes: Elaboração de Paulo Roberto de Almeida, com base nos arquivos do
IBRI/RBPI (http://ibri-rbpi.org/), do boletim Meridiano 47
(http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive) e do Scielo
(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0034-
7329&lng=en&nrm=iso); 02/12/2014.
Nota: Versão completa deste quadro analítico, sob o título “Política internacional,
contexto regional e diplomacia brasileira, acompanhada de listagem seletiva da
produção acadêmica em relações internacionais e em política externa do Brasil, de 1954
a 2014”, encontra-se disponível na plataforma Academia.edu, sob o seguinte link:
https://www.academia.edu/9617558/2723_Produ%C3%A7%C3%A3o_intelectual_sobr
e_rela%C3%A7%C3%B5es_internacionais_e_pol%C3%ADtica_externa_do_Brasil_19
54-2-14_.
2724. “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de
Política Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Hartford, 3
dezembro 2014, 17 p. Versão sintética dos trabalhos 2722 e 2723, para publicação
em Meridiano 47 (vol. 15, n. 146, novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-
1219; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881;
boletim completo, link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880); reproduzido
anteriormente em Mundorama (n. 88, dezembro de 2014; ISSN: 2175-2052; link
para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-
dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/23/o-instituto-
brasileiro-de-relacoes-internacionais-e-a-revista-brasileira-de-politica-internacional-
370
contribuicao-intelectual-1954-a-2014-por-paulo-roberto-de-almeida/);
disponibilizado em Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/9963550/2724_O_Instituto_Brasileiro_de_Rela%C3%A7
%C3%B5es_Internacionais_e_a_Revista_Brasileira_de_Pol%C3%ADtica_Internaci
onal_contribui%C3%A7%C3%A3o_intelectual_de_1954_a_2014). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de Publicados n. 1155.
371
Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados
no Boletim Meridiano 47
Livros publicados pelo autor
Nota sobre o autor
373
Relação cronológica dos ensaios publicados no Boletim Meridiano 47
Arquivo completo do boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/archive
Colaborações de Paulo Roberto de Almeida
Na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação, desde o ano de 2001.
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Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Meridiano 47 (vol. 15, n.
146, novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim
completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880).
Relação de Originais n. 2724; Publicados n. 1155.
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para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/76; link para o
artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Relação de
Originais n. 2066; Publicados n. 972.
53) “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”, em
Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-1219; link para o
boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/93; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/643/386). Relação de Originais
n. 2124; Publicados n. 956.
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(vol. 11, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/77; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291). Relação de Originais
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Relação de Originais
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/82; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/520/337). Relação de Originais
n. 2044; Publicados n. 922.
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/90; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/741/456). Relação de Originais
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374
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http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/).
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ISSN: 1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/100; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584). Relação de Trabalhos
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para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/101; link para o
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/102; link para o artigo:
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02-06042-2; vol. 2: 508 p., ISBN: 85-02-06040-6), Meridiano 47 (n. 85, agosto
2007; p. 14-22; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/137; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1126/795). Relação de
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/129; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1084/745). Relação de
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1432/1068). Relação de
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41) “O contexto geopolítico da América do Sul: visão estratégica da integração”,
Meridiano 47 (n. 76, novembro 2006, p. 15-23; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/181; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1440/1075). Relação de
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048-1), publicado em Meridiano 47 (Brasília, n; 75; outubro 2006, p. 22-26; link
para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/182; link para o
artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1448/1082). Relação de
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http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/182; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1444/1078). Relação de
Originais n. 1500; Publicados n. 716.
38) “A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano
47 (Brasília, n. 74, setembro 2006, p. 20-30; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/183; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1457/1089). Relação de
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2006, p. 4-9; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/193; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1636/1259). Relação de
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boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/195; link para o artigo:
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boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/199; link para o artigo:
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o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/329; link para o
artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2574/2130). Relação de
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boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/330; link para o artigo:
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Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 61, agosto 2005, p. 16-17; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/332; link para o artigo:
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mudaram o mundo (São Paulo: Editora Arx, 2004, 400 p.; ISBN: 85-7581-147-9),
Meridiano 47 - Boletim de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais
(Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 60,
julho 2005, p. 17-18; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/336; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2677/2225). Relação de
Originais n. 1411; Publicados n. 567.
29) “As relações entre o Brasil e os Estados Unidos em perspectiva histórica, 1. da
República Velha à redemocratização”, Meridiano 47 - Boletim de Análise da
Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 60, julho 2005, p. 6-8; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/336; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2672/2220). Relação de
Originais n. 1461; Publicados n. 570.
28) “Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada”, Resenha de Boris Fausto e
Fernando J. Devoto, Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada (1850-
2002) (São Paulo: Editora 34, 2004, 574 p: ISNB: 85-7326-308-3), Meridiano 47 -
Boletim de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 59, junho 2005, p. 15-16;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/337; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2683/2234).
Relação de Originais n. 1390; Publicados n. 558.
377
27) “A China e seus interesses nacionais: algumas reflexões histórico-sociológicas”,
Brasília, 20 junho 2005, 4 p. Reelaboração do trabalho 1429. Meridiano 47 - Boletim
de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro
de Relações Internacionais, ISSN 1518-1219, n. 59, junho 2005, p. 10-12; link para o
boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/337; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2681/2232). Relação de
Originais n. 1443; Publicados n. 565,
26) “Ensaios sobre o capitalismo no século XX”, Resenha do livro de Luiz Gonzaga de
Mello Belluzzo, Ensaios sobre o capitalismo no século XX (São Paulo: Unesp;
Campinas: Unicamp-Instituto de Economia, 2004, 240 p.). Publicado em Meridiano
47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 20;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2692/2246).
Relação de Originais nº 1397; Publicados n. 550.
25) “O Poder Americano”, Brasília, 24 janeiro 2005, 3 p. Resenha do livro organizado
por José Luis Fiori, O Poder Americano (Petrópolis: Editora Vozes, 2004, 456 p.;
ISBN: 85-326-3097-9). Publicado em Meridiano 47: boletim de análise de
conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 18-19; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2691/2245). Relação de
Originais n. 1380; Publicados n. 551.
24) “Tática do avestruz: a antiglobalização à procura do seu mundo”, Meridiano 47:
boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 58, maio 2005, p. 13-15;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/338; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2689/2243).
Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 554.
23) “No meio do caminho tinha um mercado: tropeços dos antiglobalizadores”,
Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília:
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 57, abril 2005,
p. 8-9; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/341;
link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2695/2249).
Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 546.
22) “Concentração da renda e desigualdades: a antiglobalização tem razão?”, Meridiano
47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; nº 56, março 2005, p. 9-10;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/342; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2702/2256).
Relação de Originais n. 1297; Publicados n. 539.
21) “A antiglobalização e o livre-comércio: angústia existencial”, Meridiano 47:
boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 55, fevereiro 2005, p. 6-
378
7; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/345; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2714/2290).
Relação de Originais nº 1297; Publicados n. 543.
20) “Contra a antiglobalização”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em
relações internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais;
ISSN: 1518-1219; n. 54, janeiro 2005, p. 10-12; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/346; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2749/2307). Relação de
Originais n. 1297; Publicados n. 527.
19) “A antiglobalização tem ideias concretas sobre temas concretos?”, Meridiano 47:
boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 50-51, setembro-outubro
2004, p. 15-17; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/543; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4194/3511). Relação de
Originais n. 1297; Publicado n. 476.
18) “Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”,
Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais
(Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; nº 49,
agosto 2004, p. 9-11; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/544; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4205/3517). Relação de
Originais n. 1297; Publicados n. 471.
17) “Uma agenda sobre o quê não fazer: os equívocos da “sociedade civil”, Meridiano
47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 48, julho 2004, p. 14-18;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/545; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4214/3527).
Relação de Originais n. 1287; Publicados n. 458.
16) “Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47:
boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais; ISSN: 1518-1219; n. 47, junho 2004, p. 12-15;
link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/546; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4228/3539).
Relação de Originais n. 1274; Publicados n. 456.
15) “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”,
Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais
(Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 44-45, março-abril 2004, p. 13-15; link para o
boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/548; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4253/3563). Relação de
Originais n. 1252; Publicados n. 443.
14) “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”,
Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais
379
(Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 42-43, janeiro-fevereiro 2004, p. 11-14; link para o
boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/549; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4258/3568). Relação de
Originais n. 1227; Publicados n. 439.
13) “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Meridiano 47: boletim de análise
de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 32-33,
março-abril 2003, p. 17-18; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/556; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4373/3672). Relação de
Originais n. 999; Publicados n. 396.
12) “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil?”, Meridiano
47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN:
1518-1219, n. 30-31, janeiro-fevereiro 2003, p. 30-34; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/557; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4389/3685). Relação de
Originais n. 992; Publicados n. 389.
11) “Reflexões a propósito do centenário do Barão (ou das dificuldades de ver no plano
interno as razões dos nossos problemas)”, Meridiano 47: boletim de análise de
conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29,
novembro-dezembro/2002, p. 24-27; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4429/3706). Relação de
Originais n. 938; Publicados n. 359.
10) “Uma longa moratória permeada de ajustes: a lógica da dívida externa brasileira na
visão acadêmica”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações
internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29, novembro-dezembro/2002, p.
18-21; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558;
link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4427/3704).
Relação de Originais n. 954; Publicados n. 370.
9) “Um Tocqueville avant la lettre: Hipólito da Costa como founding father do
americanismo”, Meridiano 47: boletim de análise de conjuntura em relações
internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 28-29, novembro-dezembro/2002, p.
13-15; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/558;
link para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4423/3702).
Relação de Originais n. 947; Publicados n. 367.
8) “A América Latina e os Estados Unidos desde o 11 de setembro de 2001”, Meridiano
47: boletim de análise de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN:
1518-1219, n. 27, outubro 2002, p. 3-5; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/559; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4507/3762). Relação de
Originais n. 933; Publicados n. 357.
7) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Meridiano 47: boletim de análise
de conjuntura em relações internacionais (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 25, agosto
380
2002, p. 1-11; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/561; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4528/3782). Relação de
Originais n. 907; Publicados n. 355.
6) “O Boletim do Império”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 23-24, junho-
julho 2002, p. 9-15; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/563; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4538/3792). Relação de
Originais n. 896; Publicados n. 345.
5) “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1995-2001”, Meridiano 47 (Brasília:
ISSN: 1518-1219, n. 22, maio 2002, p. 12-13; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/564; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4548/3802). Relação de
Originais n. 874; Publicados n. 333.
4) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN:
1518-1219, n. 17, novembro 2001, pp. 1-8; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/568; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4574/3826). Relação de
Originais n. 813; Publicados n. 291.
3) “Mercosul e Alca: liaisons dangereuses?”, Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219,
n. 14-15, agosto-setembro 2001, p. 11-17; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/570; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4634/3884). Relação de
Originais n.792; Publicados n. 281.
2) “Cenário econômico e político do debate hemisférico”, Meridiano 47 (Brasília:
ISSN: 1518-1219, n. 13, julho 2001, p. 2-6; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/571; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4642/3886). Relação de
Originais n.792; Publicados n. 298.
1) “Relações Internacionais e política externa do Brasil: uma perspectiva histórica”,
Meridiano 47 (Brasília: ISSN: 1518-1219, n. 10-11-12, abril-maio-junho 2001, p. 2-
11; link para o boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/572; link
para o artigo: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4676/3918).
Relação de Originais n. 782; Publicados n. 274.
Início da colaboração com o boletim Meridiano 47: abril 2001
381
Livros próprios de Paulo Roberto de Almeida
26) Volta ao Mundo em 25 Ensaios: Relações Internacionais e Economia Mundial (Kindle
book (file size: 809 KB; ASIN: B00P9XAJA4; disponível em Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/9126863/26_Volta_ao_Mundo_em_25_Ensaios_Rela%C3%A
7%C3%B5es_Internacionais_e_Economia_Mundial_2014_). Relação de Originais n.
2712. Relação de Publicados n. 1150.
25) Rompendo Fronteiras: a Academia pensa a Diplomacia (Amazon Digital Services:
Kindle Edition, 2014, 414 p.; ASIN: B00P8JHT8Y; disponível em Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/9108147/25_Rompendo_Fronteiras_a_academia_pensa_a_dip
lomacia_2014_). Relação de Originais n. 2710. Relação de Publicados n. 1148.
24) Codex Diplomaticus Brasiliensis: livros de diplomatas brasileiros (Amazon Digital
Services: Kindle Edition, 2014, 326 p.; disponível no link:
http://www.amazon.com/dp/B00P6261X2; e na plataforma Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/9084111/24_Codex_Diplomaticus_Brasiliensis_livros_de_dip
lomatas_brasileiros_2014_ ). Relação de Originais n. 2707. Relação de Publicados n.
1147.
23) Polindo a Prata da Casa: mini-resenhas de livros de diplomatas (Amazon Digital
Services: Kindle edition, 2014, 151 p., 484 KB; ASIN: B00OL05KYG; disponível no
link: http://www.amazon.com/dp/B00OL05KYG; e na plataforma Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/8815100/23_Polindo_a_Prata_da_Casa_mini-
resenhas_de_livros_de_diplomatas_2014_). Prefácio e Sumário disponíveis no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/mini-resenhas-de-
livros-de-diplomatas.html). Relação de Originais n. 2693. Relação de Publicados n. 1145.
22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (book reviews; Edição de Autor; Versão de:
16/07/2014, 663 p.); (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edicao_d
e_Autor_2014_). Relação de Originais n. 2533. Relação de Publicados n. 1136.
21) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não
convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8);
Hartford, 30 março 2104, 312 p. Relação de Originais n. 2596. Relação de Publicados n.
1133. (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/6999273/21_Nunca_Antes_na_Diplomacia_a_politica_extern
a_brasileira_em_tempos_nao_convencionais).
20) O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro 2013,
226 p. Revisão atualizada do livro de 2010) Publicado em formato Kindle (disponível:
http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os_cont
emporaneos_2013_Kindle_edition). Relação de Originais n. 2512; Relação de Publicados
n. 1111.
19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN: 978-85-
02-19963-7; site da Editora:
382
http://www.saraivauni.com.br/Obra.aspx?isbn=9788502199637). Relação de Originais
ns. 2996, 2998, 2300, 2303, 2304, 2313, 2316, 2317, 2373, 2383, 2431, 2438 e 2449.
Divulgado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/integracao-regional-novo-livro-
enfim.html). (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32644653/download_file). Relação de Publicados
n. 1093.
18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto
da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-216-2001-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642402/download_file).
Relação de Originais n. 2280. Relação de Publicados n. 1058.
17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen
Juris Editora, 2011, xx+272 p.; Inclui bibliografia; ISBN: 978-85-375-0875-6; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/107Globalizando.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642383/download_file).
Relação de Originais n. 2130. Relação de Publicados n. 1044.
16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (versão impressa: edições do Senado Federal
volume 147: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-
7018-343-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95MaquiavelRevisitado.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642375/download_file).
Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 1014.
15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição
eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8; R$ 12,00; disponível para aquisição
no seguinte link: http://freitasbas.lojatemporaria.com/o-moderno-principe.html).
Anunciado no site pessoal (link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html) e no
blog Diplomatizzando (21.12.2009; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/12/1591-novo-livro-pra-o-moderno-
principe.html), com livre disponibilidade do Prefácio, da Dedicatória, da carta a
Maquiavel e das Recomendações de Leitura. (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546980/15_O_Moderno_Principe_Maquiavel_revisitado_20
09_e-pub). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 940.
14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a
academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/93EstudoRelaIntBr2006.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642184/download_file).
13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/80FDESenac2005.html).
(Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642332/download_file).
383
12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia
brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004,
440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/74UFRGS2004.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642325/download_file).
11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São
Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546940/11_A_Grande_Mudanca_consequencias_economica
s_da_transicao_politica_no_Brasil_2003_).
10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de Queiroz
Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-6; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/48HistoireBresil2002.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642309/download_file).
09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-219-0435-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/45SeculoXXI2002.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642303/download_file).
8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/44FDESenac2001.html).
(Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642297/download_file).
7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: L’Harmattan, 2000, 160
p.; ISBN: 2-7384-9350-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/40Mercosud2000.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642281/download_file).
6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade São
Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/31EstudoRelaIntBr1999.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546888/06_O_estudo_das_relacoes_internacionais_do_Brasi
l_1999_).
5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, na
coleção “Direito e Comércio Internacional”, 1999, 328 p.; ISBN: 85-7348-093-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/30Multilateralismo1999.html).
(Academia.edu, link: http://www.academia.edu/attachments/32642262/download_file).
4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez
de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642256/download_file).
384
3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-
7322-548-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/26MercosulLTr1998.html).
(Academia.edu, link: https://www.academia.edu/attachments/32642244/download_file).
2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização
(Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5); link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/25RelaIntPExtUFRGS1998.html).
(Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642231/download_file ).
1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993,
204 p.; ISBN: 85-7129-098-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/09MSulAduan1993.html).
(Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642206/download_file).
Para os capítulos do Autor em livros coletivos, consultar o site ou ver esta lista:
https://www.academia.edu/9068537/List_of_AUthors_chapters_in_collective_books_Nov._2
014_
Lista elaborada em 16/04/2015
385
Nota sobre o Autor:
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em
Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto
Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de
Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília
(Uniceub). Como diplomata, serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas
delegações em Genebra e Montevidéu e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em
Washington (1999-2003). Foi também Assessor Especial no Núcleo de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Desde janeiro de 2013 é Cônsul
Geral Adjunto do Brasil em Hartford, Connecticut, EUA.
É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de
comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas
centenas de artigos publicados. Dispõe de um site pessoal (www.pralmeida.org) e de um
blog voltado para os mesmos temas que configuram seus interesses intelectuais, mas
que considera ser mais para divertissement do que para a pesquisa
(http://diplomatizzando.blogspot.com/).
386
Redigido em MS Word 2011,
Composto em MacBook Air
Por Paulo Roberto de Almeida
Em 16/04/2015
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
Tel.: (1.860) 989-3284

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